Uma Luz No Coração Da Escuridão

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— Eu nunca o odiei.

— Ele sabe que não — disse Kamui, levando o Kotaro na direção do único lugar seguro que conhecia... o mago, a casa de Shinbe. Ele precisava contar para o amigo sobre o destino de Toya e de Kyoko. Shinbe de alguma forma sabia o que fazer, ele sempre sabia.

— Eu vou matar aquele bastardo do Hyakuhei! — rosnou Kotaro enquanto lutava contra a restrição de Kamui, sua natureza de licantropo indo à superfície. — Ele a matou... ele matou Toya por causa dela. Quando eu o encontrar, ele desejará nunca ter nascido humano.

Como se o vento tivesse sido arrancado de si, o corpo de Kotaro estremeceu. Ele sabia que Toya era muito mais forte do que ele jamais reconhecera, mas sem Kyoko para proteger, Toya perdeu a vontade de lutar. Hyakuhei sabia disso antes da luta ter começado.

O sofrimento de Toya o fez ficar irritado, impaciente. — Se ele tivesse esperado mais alguns momentos, Kyou poderia tê-lo salvado. — A tristeza pendia em todas as sílabas enquanto Kotaro limpava as lágrimas com raiva, lágrimas que silenciosamente deixavam trilhas em seu rosto.

— Eu queria salvar os dois... Kyoko. — A dor em seu corpo enfraquecido era demais quando ele fechou os olhos azuis brilhantes e cedeu ao nada que acalmaria a dor por um curto período de tempo.

Kamui assentiu enquanto levantava o corpo mole de Kotaro e o carregava.

— Você já fez o suficiente. Descanse agora — sussurrou ele. — É minha vez de salvar as pessoas.

Capítulo 2

Perto da hora do amanhecer, Kamui pairava acima de uma sepultura não marcada. Os dois homens de cada lado dele eram tudo o que ele tinha. Ele observou Shinbe usar seus poderes telecinéticos para remover a terra do túmulo de Toya e ampliá-lo o suficiente para dois corpos.

Shinbe e Kotaro tinham a mesma expressão agora... tristeza e uma força teimosa. Kamui sabia que eles estavam tentando parecer fortes para ele, mas ele podia ver a melancolia que ambos escondiam.

Todos olharam para o túmulo... a realidade dolorosa de tudo aquilo sendo absorvida. As coisas não deveriam acabar assim... o lado bom não deveria perder... ou morrer. Shinbe os ajudou a tomar uma decisão sobre o que fazer. Buscando o corpo de Kyoko, eles o levaram para o túmulo onde Kyou colocou seu irmão e enterrou-os juntos.

Toya teria querido assim... era a única coisa que fazia sentido.

Kamui tinha sido incapaz de levar o corpo de Kyoko para o túmulo quando o encontraram. O sangue que a rodeava não era o que o incomodava. Era apenas muitíssimo doloroso ver alguém tão gentil e puro, carregando tanta luz dentro de si, estar ali agora, deitada na escuridão, com os olhos abertos, mas vazios. Isso é que doía ver.

Percebendo o choque de Kamui e vendo suas mãos tremendo, Kotaro interveio e ergueu Kyoko amorosamente em seus braços, tentando ignorar a rigidez no corpo dela. Ele não conseguia sentir nada exceto raiva e tristeza naquele momento. Se ele se permitisse sentir o resto das emoções, o quanto ele a amava, seus joelhos se curvariam. A dor pesava muito sobre ele.

Ver o olhar no rosto de Kamui foi suficiente para ajudá-lo a controlar suas próprias emoções e a dormência que havia se estabelecido também ajudou. Kamui não era humano nem era criatura, o que quer que ele fosse, seu coração estava em destroços. Kotaro decidiu que seria sua missão cuidar dele de agora em diante, mesmo que o garoto provavelmente não precisasse disso.

Kamui limpou a trilha de lágrimas de seus olhos, tentando ser forte como Kotaro e Shinbe. Seu cabelo roxo indomado sacudiu ao vento enquanto ele olhava para a terra recém-revirada. Ele tirou seu próprio manto e gentilmente envolveu-os para aumentar o poder do feitiço que ele estava prestes a lançar.

Ao fechar os olhos brilhantes, ele cruzou os dedos enquanto as asas iluminadas brotavam de suas costas em um turbilhão de penas. Elas brilhavam com cores tão intensas que o olho humano desconhecia.

Shinbe e Kotaro, assustados, deram um passo para trás, de repente entendendo o que Kamui era. A palavra anjo pairava em seus lábios, mas ele parecia tão triste. Como um anjo com um coração partido... um anjo caído.

Com dedos gentis, Kamui tirou uma pena de sua asa direita e segurou sua mão com a palma para cima. A expressão triste e serena em seu rosto não vacilou. Seus olhos brilharam com um vislumbre de esperança enquanto ele rapidamente deslizou a pena afiada em sua palma causando um corte raso.

O líquido carmesim se acumulou em sua palma e Kamui fechou lentamente o punho antes de se dirigir ao túmulo não marcado. As gotas sagradas do sangue de sua vida caíram sobre a terra, fazendo o solo brilhar com um poder azul elétrico sobrenatural.

Chocados, Shinbe e Kotaro só podiam ficar de pé e assistir enquanto tudo acontecia. Eles não se atreveram a se mover por medo de perturbar o rito que Kamui estava realizando. Ambos compreenderam que estavam testemunhando algo incrível e, sem dúvida, nunca mais veriam algo assim novamente.

O ar em torno de Kamui girou em um vórtice que o rodeava em uma luz azul fluorescente. Sua voz ecoante deixou seus lábios parecendo mais velhos e sábios do que um dia já foram. A voz ricocheteou pelos céus, um som assustador que viajava por quilômetros, fazendo com que tudo que a ouvia ficasse imóvel em reverência ao seu poder:

Mil anos serão necessários.

Desta vez, obedeceremos para o seu próprio bem.

Quando o sangue de um guardião derrama

É hora desta profecia se cumprir.

Só então duas almas irão reviver.

Trazendo-as para a luz,

Fadadas a combater a magia negra da noite.

Com essa promessa, nós imortais tomaremos as armas,

Protegendo contra o mal aqueles que renasceram.

Nas mãos da pedra e do mármore, ao nosso inimigo daremos

O único desejo que ele anseia... dentro da luz para viver.

À medida que o vórtice circundava Kamui, uma pluma incandescente de cada asa iluminada se soltou e voou para a frente dentro do ciclone, girando como duas pequenas adagas e pousando diretamente no túmulo. As penas brilhantes ficaram presas no solo suave por alguns breves momentos antes de se afundarem na terra para fundirem-se com as almas de seus amigos.

Os joelhos de Kamui se chocaram com o chão quando o feitiço se dispersou, enviando uma onda de choque em todas as direções.

— Até que nos encontremos novamente, Kyoko... Toya — murmurou Kamui ao sentir a solidão lhe cercar. — Talvez a próxima vida seja em um tempo melhor e muito mais iluminado.

Shinbe permaneceu em silêncio ao lado dele, sem querer nada além de derramar suas lágrimas, mas ele não podia se dar a este luxo. Hyakuhei ainda estava por lá e ele sabia que o vampiro de coração negro acabaria por vir atrás dele. O inimigo saberia o que tinham feito. Por enquanto, ele apagaria todos os traços que podia.

Alcançando seu bolso, Shinbe tirou uma pequena garrafa ametista cheia de um pó mágico intemporal. Pulverizando levemente o solo, ele circundou o túmulo para protegê-lo de todos os olhos curiosos. O solo imediatamente se tornou sólido para esconder a localização da nova sepultura.

Os olhos de Shinbe iluminaram-se com a mesma cor ametista, enquanto sussurrava palavras que apenas ele podia entender.

Ele sentiu um velho vínculo entre irmãos que haviam lutado uma batalha eterna contra a escuridão atravessar sua alma para se tornar um símbolo de proteção sobre a sepultura. Acima do lugar de descanso de seus amigos flores surgiram sem que fossem plantadas sementes. Flores de cinco cores apareceram em vinhas espinhosas: prata, ouro, azul gelo, ametista e pó cintilante do arco-íris.

— Estou me despedindo — disse Shinbe depois de um longo silêncio. Ele não queria que sua presença indicasse a localização dos outros e sabia que era hora de seguir em frente. Seu olhar voltou para o arbusto de flores estranhamente colorido. Toya e Kyoko agora estavam protegidos de Hyakuhei e o feitiço não seria perturbado.

Por enquanto, era tudo o que ele poderia oferecer além da tristeza.

Kamui olhou para o mago, chocado com este novo desenrolar.

— O quê? Mas... por quê? — Seus olhos se arregalaram em um momento de pânico... todos iriam deixá-lo agora? Já não era ruim o bastante perder Toya e Kyoko?

Sentindo o medo de Kamui emergir, Shinbe colocou uma mão firme no ombro de seu amigo e tentou explicar:

— Você sabe tão bem quanto eu que Hyakuhei acabará sabendo o que fizemos aqui. — Olhou para Kotaro sobre o ombro de Kamui, sabendo que o licantropo entenderia seu abandono.

— Você será capaz de escapar dos olhos sempre vigilantes de Hyakuhei, mas eu não tenho esse tipo de poder. No entanto, eu poderei me esconder, mas não tenho certeza por quanto tempo. — Shinbe soltou um longo suspiro e olhou para a lua indo baixa no céu. — Meus dias são contados agora... — Um sorriso suave inclinou os cantos de seus lábios como se ele soubesse um segredo. — Então, que seja! Vou embarcar no próximo navio indo para o oeste, sobre o oceano. Lá, terei uma chance melhor de manter minha identidade a salvo de Hyakuhei e talvez até encontre um caminho para a minha própria alma reencarnar ao mesmo tempo que nossos queridos amigos. — Ele esperava que o que ele dizia fosse a verdade. Eles precisariam dele quando chegasse o momento.

Kamui olhou para o túmulo embaixo dele e depois para o amigo com mais calma do que havia sentido desde que esta noite de pesadelo havia começado. Ele não queria que Shinbe fosse a próxima vítima, então, sim, ele entendeu. Gentilmente arrancou uma pena cor de arco-íris de sua asa direita e pressionou-a no pescoço de Shinbe.

 

Shinbe ofegou quando a pena começou a brilhar intensamente antes de ser absorvida em sua pele. Olhou para baixo e viu o contorno mais suave da pena logo abaixo da gola de seu manto.

— Isso irá ajudá-lo quando chegar a hora — disse Kamui com um sorriso e deu um abraço apertado em Shinbe. Ele não perderia Shinbe durante muito tempo, custasse o que custasse.

— Nós nos veremos novamente, meu amigo — sussurrou Shinbe antes de se afastar do abraço de Kamui. Ele assentiu com a cabeça para Kotaro, sabendo que o licantropo cuidaria de Kamui por todos eles. Shinbe olhou de novo para o túmulo, depois afastou o olhar, deixando sua franja cair no rosto para esconder sua tristeza.

— Então, que seja assim — sussurrou ele novamente, desaparecendo na escuridão.

— Você está pronto, garoto? — perguntou Kotaro baixinho enquanto mantinha as costas para o túmulo. Ele sabia que não poderia ficar. Shinbe estava certo, quanto mais longe ficassem, mais protegido ficaria o feitiço.

Kamui queria se zangar pelo apelido que Kotaro acabara de lhe dar, mas não tinha energia. Seu coração estava sepultado na terra a seus pés e, mesmo se demorasse até o fim dos tempos, ele veria Hyakuhei pagar por seus crimes.

— Sim — disse Kamui, passando o braço nos olhos. — Estou pronto.

Kotaro colocou um braço em volta dos ombros e o conduziu. O licantropo descobriu que não poderia derramar mais lágrimas pela mulher que ele amara com todo o seu ser. Sua alma sentiu como se alguém a tivesse arrancado de seu corpo, rasgando-a em pedaços e só devolvido metade dela.

Se o feitiço que Kamui e Shinbe fizeram funcionasse, ele veria sua amada Kyoko novamente. Ele não podia deixar de sorrir diante das palhaçadas que ele e a reencarnação de Toya iriam inventar para ganhar o afeto de Kyoko. Ele teria prazer em lutar por ela mais uma vez se Toya pudesse voltar. Afinal, ele amava os dois.

Ele lutou contra o desejo de olhar para o túmulo de novo.

— Mil anos é muito tempo para esperar, mas eu estarei lá por você, Kyoko.

*****

Mais de mil anos no futuro.

Dias atuais.

Uma figura solitária estava em um telhado do prédio mais alto, avistando a cidade populosa abaixo. Seus traços nunca traindo a dolorosa lembrança de seu único irmão, deitado sozinho e sem vida na terra fria e dura, séculos atrás. Seu coração, uma vez quente e pulsando, preso pelas garras do monstro sádico que criara ambos os irmãos.

Ele tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para se separar do mal que o rodeava silenciosamente. Assim como os humanos deste mundo, ele só se alimentava dos animais que a natureza fornecia. Mesmo que a escuridão fosse tudo o que lhe era permitido, como é a maldição de um vampiro, ele nunca se tornaria o demônio que seu tio tinha pretendido.

Nos últimos anos, algo dentro dele se agitou. Uma saudade que ele não conseguia entender e que não sentia em mais de mil anos.

Memórias nunca esquecidas, relembradas na mente de Kyou, de um jovem inocente, que havia enchido sua vida de felicidade, mesmo dentro de um mundo de trevas. Toya... ele era tão cheio de vida, com olhos dourados risonhos e a ignorância de uma criança. Mais uma vez essas lembranças trouxeram dores de culpa ao seu coração por não ter conseguido proteger seu irmão mais novo.

Olhos dourados que se tornaram endurecidos devido a centenas de anos de solidão, sangraram vermelho com a lembrança de uma promessa que ele ainda não havia cumprido. Kyou ficava cada vez mais forte a cada década que passava. Muitas vezes ele chegou bem perto, mas o objeto de seu ódio e ira o eludia toda vez.

Ele não descansaria até que a vil criatura que procurava se contorcesse em agonia aos seus pés e sua alma fosse lançada ao inferno onde pertencia.

O olhar de Kyou foi atraído para o único lugar sereno em toda a cidade, o parque tranquilo no centro.

— Tais lugares não devem estar perto de tanto mal — murmurou ele na noite.

Saltando do prédio, Kyou continuou sua busca como fazia por tantos séculos. Hyakuhei pagaria com a própria vida por roubar o único ser com quem Kyou se importava e sempre se importaria. Seu irmão estava perdido para sempre e nunca mais retornaria.

— Toya... — sussurrou Kyou enquanto desapareceu na noite, deixando para trás a imagem de um anjo vingador.

*****

O parque era sempre pacífico nesta hora do dia. Ainda era tarde e o sol estava alto no céu. Kotaro passeava vagarosamente pelas árvores perto do centro onde havia um enorme bloco de mármore. Ele não tinha ideia de onde o bloco havia vindo, estava lá desde que ele se lembrava e era ainda mais velho que a própria cidade. Tudo o que ele sabia com certeza era que ele sentia uma sensação de paz cada vez que estava perto dele.

— Quem pensaria que uma pedra quadrada traria pensamentos tranquilos? — murmurou Kotaro para si mesmo.

Tomando outro caminho entre as árvores, ele dirigiu-se até a pedra para que pudesse olhar para ela. Mesmo que ele estivesse completamente feliz naquele dia, só o fato de se certificar que ela ainda estava lá o fazia se sentir melhor.

Kotaro parou quando entrou no centro onde a pedra estava e franziu a testa para o indivíduo que estava sentando no estilo indiozinho no topo dela, com os cotovelos nos joelhos e o queixo preso em suas mãos. Os cabelos curtos e roxos balançavam com a suave brisa, fazendo o jovem parecer muito infantil.

— O que diabos está fazendo aqui? — exigiu Kotaro.

Kamui sorriu sem olhar para ele. Em vez disso, ele assentiu na direção da faculdade à distância.

— Esperando que a aula comece.

Kotaro balançou a cabeça e seguiu em frente antes de parar de novo e virar o rosto para encarar Kamui.

— Do que você está falando? Você nem frequenta aquela escola.

Kamui deu uma piscada de olhos antes de desaparecer lentamente em um turbilhão de pó de arco-íris cintilante.

— Eu sei.

Kotaro olhou para o pó girando antes dele desaparecer completamente.

— Às vezes, esse garoto é um enigma — informou ao espaço agora vazio, depois seus olhos se moveram mais para baixo, como se acariciando a pedra. Ele ouviu o som de pés correndo no pavimento, mas na verdade não notou até que alguém o tocou no ombro. Ele literalmente pulou e girou para ver Hoto e Toki curvados com as mãos apoiadas nos joelhos tentando recuperar o fôlego.

— O que tirou o fôlego de vocês dois? — perguntou Kotaro com um sorriso malicioso enquanto recuperava a compostura.

Hoto acenou com um pedaço de papel na frente dele.

— Para você... da polícia... importante.

Kotaro pegou o papel.

— Da polícia, hein? Deve ser realmente importante para fazer vocês correrem uma maratona.

Toki assentiu antes de cair ao seu lado para descansar. Hoto simplesmente afundou em seus joelhos e apoiou a cabeça na grama.

— Vocês são os maiores chorões que já vi - reclamou Kotaro com benevolência.

— Este lado dói — gemeu Toki. — Preciso voltar... para... ar condicionado... escritório.

Kotaro suspirou resignado e deixou-os assarem sob o sol quente antes de abrir o bilhete. Sua mão fechou, enrugando o papel que acabara de receber da delegacia de polícia, não muito longe do campus. Outra menina desapareceu sem deixar vestígios. Ele havia passado muito tempo investigando os desaparecimentos de muitas meninas, que por fim o levaram à faculdade onde agora era chefe de segurança.

Seus pensamentos imediatamente se voltaram para sua amada Kyoko. Ele a encontrou novamente e, assim como esperava, Toya não estava longe. Uma coisa que o surpreendeu foi o fato de Toya ter renascido normal, humano, ou assim parecia.

Às vezes, ele podia sentir o verdadeiro Toya sob a superfície, desconhecendo sua própria existência, mas, até agora, essa parte permanecia adormecida.

— Graças a Deus por pequenos favores. — Kotaro passou uma mão agitada em seus cabelos sacudidos pelo vento.

Era bom para ele que nenhum deles se lembrasse do passado. Era uma lembrança melhor esquecida. Ele desejou ter o mesmo privilégio de esquecer, mas para ele, a lembrança permaneceu, muitas vezes acordando-o de noite com um suor frio.

Deixando o parque, ele viu-se parado na calçada de pedra em frente ao campus. Kotaro ergueu os olhos azuis gelo na direção em que Kyoko morava. Ele franziu o cenho quando a preocupação entalhou seus traços e teve o súbito desejo de ver "sua mulher".

A parte longa de seus cabelos escuros em camadas foi presa para trás em um rabo de cavalo baixo. O resto de seu cabelo, da franja ao topo, ficava em um estado que parecia constantemente esvoaçado pelo vento, dando-lhe a aparência de um menino mau punk, mas isso lhe caía bem. Essa aparência lhe ajudou mais de uma vez nos últimos anos.

Seu corpo era alto com músculos esbeltos, mas as aparências podiam enganar. Ele não tinha um pingo de gordura de sobra e era mais forte do que cinquenta homens humanos juntos. As únicas pessoas que conheciam sua força inumana eram aquelas que escolheram lhe chatear ou ousaram cruzar seu caminho. E aquelas poucas estavam muito amedrontadas para dizer sequer uma palavra. Ninguém no campus conhecia o lado secreto de Kotaro e ele queria continuar assim.

Kotaro era responsável pela segurança de todas as pessoas que caminhavam no campus: visitantes, alunos ou membros do corpo docente. As jovens começaram a desaparecer desta área há cerca de um mês, a um ritmo alarmante e, principalmente, da área que cercava os campos da faculdade.

Um grunhido baixo formou-se profundamente em seu peito enquanto ele inalava os aromas ao seu redor. O ar se contaminou com um cheiro antigo... mal. Ele estava se aproximando daquele que era responsável por mais do que apenas o sumiço das meninas, ele conseguia sentir isso. Deixando esses pensamentos de lado por hora, ele começou a caminhar rapidamente para os apartamentos vizinhos que abrigavam muitos universitários inocentes.

Ele iria ver Kyoko e se ela o deixasse, seus olhos escureceram atraentemente, ele não sairia de seu lado pelo resto do dia, ou da noite. Ele só esperava que Toya não estivesse com ela novamente hoje. Ele a queria toda para si. Afinal, na verdade ela era sua mulher e aquele "menino" teria que se mancar.

Seus passos diminuíram um instante com a ironia disso. Ele estava contente por Toya pelo menos ter vida agora. Um sorriso quase divertido apareceu quando ele mentalmente ameaçou aquela vida se Toya não parasse de perseguir Kyoko o tempo todo.

Só o pensamento dela sentada ao lado dele em seu confortável sofá, comendo pipoca e vendo um filme bobo parecia uma noite perfeita. Eles faziam algo assim pelo menos uma vez por semana e para ele essa era a parte favorita da semana. Ele aproveitava seu tempo ininterrupto com a bela dos cabelos castanhos. Não importava se estavam assistindo um filme ou simplesmente sentados em seu sofá conversando. Ele simplesmente amava a sensação dela estar aconchegada ao seu lado.

Kotaro sorriu para si mesmo com satisfação enquanto se perguntava como seria estar sempre ao lado dela, dia e noite.

O sorriso dele desapareceu com seu próximo pensamento. Kyoko ainda não o escolhera ao invés de Toya. Pelo menos, não durante sua vida.

— Algumas coisas nunca mudam. — Ele olhou para cima como se enviasse um silencioso e sarcástico "obrigado por toda a ajuda com isso" para quem estivesse ouvindo. Algo lhe disse que os deuses deveriam ter o mais perturbador senso de humor.

*****

As provas finais finalmente terminaram e Kyoko passou a tarde cantando essas palavras. Ela tinha sido uma boa garota e estudara até ficar doente, mas tudo valeu a pena. Ela sabia que tinha gabaritado estes testes cruéis. Só de pensar nisto a fazia querer dançar feliz durante todo o caminho de volta para seu apartamento.

De fato, a primeira coisa que fez assim que atravessou a porta foi jogar seus livros pela sala de estar como se estivessem infestados de doenças e, finalmente, sucumbiu à vontade, realizando uma "dança feliz" improvisada na entrada, parecendo que ela tinha talento para dança, afinal.

 

Isto foi imediatamente seguido por sua própria versão de uma dança que ela tinha visto Toya fazer uma vez, sacudindo o bumbum por todo o corredor até o banheiro, para que ela pudesse tomar um banho quente de espuma. Kyoko então decidiu que, se ia fazer isso, teria que fazer direito, e foi ligar o aparelho de som e pegar algumas velas.

Ela ainda estava fazendo barulhinhos fofos de vitória quando a banheira se encheu e ela mal se deu ao trabalho com suas roupas, tirando-as e jogando-as onde quisesse. Provavelmente vou encontrar minha calcinha pendurada no ventilador de teto quando eu acabar — pensou consigo mesma, depois sacudiu os ombros e entrou na água.

Ela deslizou mais para dentro da banheira para deixar as bolhas flutuantes acariciarem seu pescoço e ombros. Seus olhos verde esmeralda, que às vezes eram conhecidos por se tornarem tempestuosos a cada momento, estavam brilhando de satisfação.

Suas ondas de cabelo castanho-avermelhadas estavam soltas ao acaso e sua pele lisa e sedosa estava escondida agora sob as bolhas. Ela era uma garota feliz e tudo o que realmente queria fazer era relaxar pelo resto do dia. Um pouco de música suave ao fundo, algumas velas com cheiro doce acesas em todo o banheiro e estava pronto o cenário perfeito.

Ela fechou os olhos, sabendo que a imagem dele logo entraria em foco, como se estivesse esperando por ela. Este era seu segredo.

Os olhos azuis gelo a observavam dentro de sua mente. Ela sonhava com ele tantas vezes durante a noite que agora podia convocar estes sonhos, mesmo quando acordada. Quanto mais profundamente ela se engrenhava no sonho, mais real ele se tornava, até parecer que ele estava realmente lá, ajoelhado ao lado da banheira.

Os lábios dele formaram um sorriso sensual ao estender a mão e tirar a toalha dela. Seus olhos se tornando tão brilhantes quanto a chama azul.

— Os sonhos são agradáveis — sussurrou ela enquanto rolava a cabeça para o lado, deixando-o fazer o que ele quisesse.

Trimmm!

Um dos sons mais irritantes do mundo ecoou em todo o apartamento. Kyoko se ergueu na banheira, derrubando a água sobre a borda e sobre o chão de cerâmica. Levantando a mão na bochecha, sentiu o calor e corou quando o telefone tocou novamente.

— Droga!

Ela se levantou rapidamente sabendo que o telefone estava na sala de estar. Saindo da água, ela pegou o robe de seda da bancada e a envolveu enquanto corria para atender.

Percebendo que estava deixando umas pegadas de água, ela fez uma nota mental para lembrar de levar o telefone sem fio ao banheiro na próxima vez.

Na outra extremidade do toque irritante, Suki batucava as unhas na bancada da cozinha, desejando que Kyoko se apressasse e atendesse o telefone. Ela teve aquela sensação inquietante de que Shinbe chegaria a qualquer momento e não queria que ele soubesse nada sobre o que ela estava planejando.

Ela ouviu o clique na outra extremidade.

— Até que enfim!

Kyoko tirou o telefone da orelha para encará-lo com raiva e colocou-o de volta.

— Suki, eu estava no banho! — quase choramingou Kyoko enquanto olhava ansiosamente para a porta do banheiro, onde sabia que a água ainda estava quente e perfumada com jasmim. A banheira a chamava para que ela voltasse e curtisse... e o sonho também. Ela mordeu o lábio inferior enquanto desviava os olhos do que ela ansiava.

— Você está parada aí, nua? — riu Suki sabendo que Kyoko corava facilmente.

— Suki! — gritou Kyoko no receptor. Sua amiga simplesmente tinha um senso de humor pervertido, o que provavelmente se deve ao fato de passar muito tempo com Shinbe. Ela sorriu maliciosamente enquanto respondeu:

— Você precisa de alguma coisa? Estou com uma banheira quente e vaporosa chamando meu nome e você está interrompendo meu pequeno encontro.

— Encontro? — Suki olhou para o telefone e revirou os olhos. — Você definitivamente precisa de ajuda, Kyoko. Quem já ouviu falar em se sentir romântica na banheira sem alguém lá para acompanhar? Pelo menos, tenha uma centelha de imaginação e pense em um homem sexy para lavar as costas quando estiver lá - suspirou ela com um tom exasperado, inconsciente de que acabara de surpreender Kyoko em cheio em quão perto sua imagem mental realmente era.

— De qualquer forma, você e eu vamos ter uma noitada para celebrar o fim das provas — chilreou Suki. Ela não estava querendo deixar Kyoko dizer não. — Também não aceitarei um "não" como resposta, então comece a se arrumar. E use aquela roupa que compramos no último fim de semana. Vou fazer o mesmo. — Suki inalou profundamente e logo começou a falar antes que Kyoko pudesse dar um pio. — Esteja pronta lá pelas 7:30. Te amo. Tchauzinhoooo!

Kyoko piscou quando o telefone desligou. Seus lábios ainda estavam abertos porque ela estava prestes a dizer “não” em sua primeira oportunidade. Ela enviou um olhar silencioso e zangado para a parede mais distante da sala de estar que separava os apartamentos das duas garotas, se perguntando se Suki havia telefonado de lá ou de seu celular em algum outro lugar.

Olhando para a identificação de chamada, ela suspirou.

— Celular, certo. Não preciso ir bater na parede, então. — Mas a imagem de suas mãos em volta do pescoço de Suki trouxe um sorriso para o rosto dela. — Mas, posso fingir.

Lançando o telefone sem fio na bancada, Kyoko olhou para o robe de seda agora agarrando-se ao seu corpo úmido e gemeu. A água morna ainda na sua pele agora tinha ficado fria, causando arrepios. Rapidamente, ela se virou para voltar ao banho.

Trimmm! Trimmm!

Kyoko se contraiu.

Girando enquanto a sobrancelha esquerda se erguia em frustração, disse:

— Espero que seja Suki para que eu possa dizer o quanto gosto de ser incomodada! — Agarrando o telefone, ela falou um pouco mais alto do que o normal.

— Alô.

Toya sorriu com a saudação de Kyoko:

— Qual é? Sua mãe nunca te ensinou a ser educada ao atender o telefone?

Kyoko se sentiu calmamente caminhando até a janela, abrindo-a e deixando o telefone escorregar de sua mão para o desconhecido.

— Por que é que ninguém quer me deixar terminar meu banho? — choramingou ela, batendo os pés, mas sentindo o ar condicionado entrar sob seu robe.

O sorriso de Toya desapareceu quando sua imaginação extrapolou e visões explícitas começaram a dançar em sua mente.

— Você está pelad... — parou, de repente sem fala, antes de perguntar se ela estava lá nua. Sacudindo o pensamento de sua cabeça, Toya respirou profundamente para se acalmar e esperou que seus hormônios agora furiosos ficassem sob controle. — Droga, esta era uma linda imagem...

Kyoko franziu a testa, se perguntando se Toya estava de pé ao lado de Suki naquele momento.

Toya tentou novamente.

— Deixa para lá. Olha, eu estou indo aí para a gente ir ao cinema esta noite, então se arrume.

Kyoko estreitou os olhos, se perguntando sobre quem havia dito que hoje era o "Dia dos Chatos".

— Ah, tenho planos esta noite. — Claro que seus planos tinham sido transformar-se em uma ameixa no banho, ficar no sofá e ver um filme. Talvez até adormecer durante o banho, sem ter ninguém no mundo para incomodá-la dizendo "saia".

— Quê? Cancele tudo, pois você vem comigo! - Toya praticamente ordenou, ficando irritado por ela não estar fazendo o que ele queria que ela fizesse, como se ela alguma vez ela fizesse.

Kyoko fechou os olhos e afastou o telefone, cantarolando:

— Não vou jogá-lo pela janela, não vou jogá-lo pela janela.

Toc, toc.

Kyoko se virou para encarar a porta pensando: — Mas eu vou JOGÁ-LO na cara de quem estiver na maldita porta! Ela podia ouvir um riso demente vindo de algum lugar no fundo, onde residia seu gênio do mal.