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O Inferno

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IV
A maldição

Não aceitou Deus as desculpas de Adão e Eva. De tal modo o irritou a desobediencia, que, no auge da sua ira, amaldiçoou-os e com elles a terra que os continha: dupla maldição que abrange alma e corpo, espirito e materia, eternidade e tempo – o homem todo na intimidade de seu ser immortal e nas condições exteriores da sua existencia transitoria.

De feito, foi Adão condemnado á morte. O corpo reverteu ao pó e a alma cahiu no inferno. Esperando, porém, este ultimo castigo, foi-lhe forçado soffrer outro n'este mundo. Cahiu sob o poder de Satan. Os miraculosos conhecimentos, que elle tinha, perdeu-os para sempre.

Repulso do Eden, nada sabia do que tinha sabido n'aquelle lugar; e, como a terra tambem se havia transformado, caminhava elle inexperiente atravez dos estorvos d'uma vida nova. Precisões, lavor ingrato, enfermidades, padecimentos de toda a natureza, desconfianças, medos, saudades inuteis, desejos inquietos acompanhavam o vagabundo par. Satanaz seguia-os, julgando-os ainda bastante felizes sobre a terra maldita, onde, se elle não fosse, o soffrimento seria expiação, e a morte resgate.

Penetremos mais dentro n'este mysterio, e consideremos com os theologos quaes foram e ainda são hoje as deploraveis consequencias d'aquelles successos.

V
Consequencias da maldição

Os filhos de Adão que ainda não eram nascidos no momento da culpa, e os filhos de seus filhos até á derradeira geração foram condemnados com elle, como se tivessem peccado. Comprehende-se que elles não fossem melhores que seus pais: peiores é que elles se tornaram. O mais velho d'esses reprobos matou seu irmão, e a impiedade humana foi crescendo até ao diluvio para recomeçar, ao sahir da arca, durante o somno de Noé.

Uma tal punição não podia gerar outros effeitos.

Considerai que nascemos aviltados, pervertidos, embriagados do vinho que outros beberam, escravos d'um poder occulto e maligno, odiados de Deus, odiando a Deus, só bastantemente livres para praticar maldades e merecer por isso novos castigos; incapazes todavia de praticar o bem. Está Satanaz no manancial onde bebemos a vida; está nas fontes que a nutrem, no seio de nossa mãe e no seu leito; a si nos attráe, encorporando-se na luz, na agua, nos alimentos, no ar que respiramos, na voz que nos encanta o ouvido, na fragrancia que as auras nos trazem, no amigo que nos abre os braços. Comnosco se identifica e nos enche de seus cavilosos e insaciaveis appetites.

De fóra chama-nos com uma doce voz, e com um interno aguilhão nos esporêa para onde nos chama. Então nos cerca, invade-nos, possue-nos, e isto não é ainda senão parte do nosso castigo. O inverno que nos engorgita os membros, a fome que nos prostra, a trovoada que arrebata as sementeiras, a febre paludosa que nos mata os filhos, as forças que se vão quando a experiencia chega, estes flagellos todos da natureza contra nós desenfreados, estas necessidades inexoraveis, amargas privações, e exulcerantes desenganos são tambem parte do nosso castigo. Mas ainda não é tudo: a nossa insanavel ignorancia, orgulho, fraqueza, toda a corrupção do nosso ser é parte integrante do mesmo castigo, não do peccado original, cumpre notar, mas do castigo, pois que a transmissão do peccado original é já de si um castigo. E não pára aqui a maldição; pelo contrario, quando ella se nos mostra mais terrivel é n'este estado a que nos reduziu, manietados pelas cadeias que nos forjou, porque as culpas que resultam d'esta corrupção natura e involuntaria que é um castigo, d'esta possessão diabolica que é um castigo, e de tantas dores accumuladas que são castigo – taes culpas chamam sobre nós outros castigos. Qualquer lapso é reprehensivel; o menor deslize é espiado e marcado; o minimo murmurio é uma offensa.

Taes são, consoante a theologia dos hebreus, adoptada e assignada pelos padres, as relações do homem com Deus e de Deus com o homem.

Detestam-se. Desde a sahida do Eden que se digladiam em duello sem fim, posto que desigual. Um primeiro crime gerou a colera divina; mas do primeiro acto da colera divina surtiram outros crimes, os quaes geraram novas coleras, e continuamente, em face um do outro, a colera e o crime se fecundam e reproduzem sem descanso. Os homens n'esta lucta são incansaveis como Deus, e, posto que trespassados e sanguinolentos e esmagados, ameaçam e conspiram ainda.

De semelhante espectaculo não ha nome condigno! Está o odio por toda a parte, na terra, no inferno, no ceo, nas creaturas e no Creador.

Accrescentemos que o que melhor se comprehende neste systema é a rebellião do homem, porquanto a nossa sorte é mais miseravel que a sorte de Adão, e cem vezes mais miseravel que a de Satanaz. Mas faz-se mister esclarecer este ponto, antes de passar além.

VI
Comparação da nossa sorte com a de Adão e de Satanaz

Em verdade nenhuma similhança temos com os habitantes do paraiso terreal; não lhes herdamos o saber adquirido sem trabalho, nem a pureza, nem a liberdade, que se agitava a bel-prazer em um tão vasto circulo, tendo um só limite perfeitamente distincto; nem tão pouco lhes herdamos a tranquilla felicidade. Para nós é tudo trevas, servidão, limite, trabalho e dôr. Apezar do peccado, outra vantagem nos levavam. Puniu-os Deus d'uma maneira que nos espanta; mas puniu-os pelo mal que propriamente fizeram. Comnosco não é assim. Primeiramente, aquelles actos, que Deus tão severamente castigou n'elles, continuam-se em nós, que não temos conhecimento d'elles senão por este proseguimento vingativo; depois, sem attender á nossa infermidade nativa, nos faz elle expiar nossas proprias faltas com tamanho rigor como se as nós tivessemos commettido na liberdade, na sciencia, e nos jubilos do Eden.

Se podeis, comparae agora a sorte do homem n'este mundo maldito á de Satanaz no ceo; e os peccados d'aquella creatura debil, ignorante, decahida, envolta em carne e sangue, cercada de precipicios e trevas, criminosa porque nasceu, e em perigo porque vive; – comparae isto, se podeis, ao inexplicavel peccado do anjo. Similhança não ha ahi nenhuma. Entre nós e aquelle espirito bemaventurado vae a differença de noite a dia, e entre a sua culpa e a nossa a distancia da terra ao ceo. Sem embargo disso, as penas são iguaes. Espera-nos o mesmo inferno. A unica desegualdade que se nota n'este logar de soffrimento é que o homem ahi será a eterna victima, e Satanaz o eterno algoz.

É evidentissimo que é a mesma a pena applicada a seres que prevaricaram em tão oppostas condições de actividade. Esta pena infinita só tem relação com o poder infinito do juiz offendido; não tem alguma com as faculdades diversamente limitadas dos culpados, e augmenta de gravidade á medida que desce sobre peccadores d'uma natureza mais fragil, de Satanaz sobre Adão, de Adão sobre a sua posteridade.

Quando procuramos n'isto a justiça, dizem-nos que ella ahi está, mas escondida. Oh! sim, meu Deus! Bem escondida, e a razão tambem, e a piedade tambem!

VII
O povo de Deus

Entretanto parece que a piedade se manifesta na formação do povo de Deus, e em verdade ahi se denota, mas como excepção, privilegio e favor.

Havia no Egypto uma raça de escravos; toma-os Deus pela mão, e atravez de mil obstaculos os leva ao paiz de Chanaan; dá-lhes leis, ministros e prophetas; illustra-os, defende-os, castiga-os, restaura-os, disputando a Satanaz, com successivos milagres, essa nesga de terra onde quer ser adorado. Não obstante, estas revelaçõens e sobrenatural assistencia não impedem que os judeus idolatrem, que se prostituam, que usurem e se precipitem numerosissimos em todas as voragens do mal. Por aqui se avalie a desgraça dos povos que occupavam o resto da terra e a quem faltavam taes soccorros. Pezava n'elles sem contrapezo o peccado original. Os que a maior grau de perfeição tinham levado artes e sciencias estavam tão remotos da verdade como o selvagem mais embrutecido. Não porque uns ou outros fossem atheus – pelo contrario, em seus soffrimentos, levantavam olhos ao ceo; mas como procuravam a divindade nas estrellas, nas altas montanhas, no concavo dos bosques, e nas mil imagens compostas de materia impura, debalde rogavam, e inutilmente sacrificavam. Salvante a de Moysés, todas as religiões eram engodo de Satanaz e conductoras d'almas ao inferno, similhantes ás lumieiras que as hordas assalteadoras accendem á beira das restingas, durante as noites tempestuosos, afim de que os navegantes se percam. E Deus abandonava os gentios á sua ignorancia; detestava-os em tanto extremo que prohibia o seu povo de os tratar, sobretudo de misturar ao d'elles o seu sangue, excepto nas batalhas. Occasionado o ensejo, era obra piedosa exterminal-os; mas attrahil-os ao seu coração, era, em todos os lances, um acto abominavel, por maneira que o leproso de Jerusalem recearia manchar-se, se recebesse na sua enxerga infecta a mais pura donzella de Sidon.

Tal é substancialmente o ultimo dogma que nos convém estudar. É certo que elle nos revela a bondade de Deus; mas á similhança de pallida restea de luz em espessa treva. O que nos ella esclarece é um ponto imperceptivel do espaço. Está meio velada no ponto onde brilha, e tanto ahi, como no restante do mundo, razão e justiça de Deus jazem de todo em todo escurecidas. Sobre a terra foi Jacob o unico justo? Se houve mais, porque não fez Deus alliança com elles e seus descendentes? Por que adoptou sómente os judeus, por que liberalisou a estes luzes que negou aos outros? Se lhe aprazia dar á humanidade cabida e obcecada pelo peccado meios de salvação, porque abençoou o sangue e a carne de um só homem, amaldiçoando o sangue e a carne dos mais homens? Se isto é verdade, força nos é exclamar com os theologos: – Razão impenetravel! Impenetravel justiça! – Sendo que tudo isto essencialmente diverge das idêas que podemos formar da pura razão e da verdadeira justiça.

 

A lei do genero humano, em toda esta historia, é a lei ditada pela colera, e, ainda quando a bondade ahi reluz, dá ares de um capricho.

Os primeiros christãos, judeus de origem, não adoptaram menos estas idêas por mais avessas que fundamentalmente sejam, não só á revelação interior, ás luzes da consciencia, mas tambem a tudo que mais luminoso do ensino de seu divino mestre nos transmittiram. A Egreja, dilatando-se fóra de Jerusalem, conservou o sinete da sua educação rabbinica1, permanecendo meio judaica. Não mudou um til aos dogmas sombrios e crueis da synagoga, mas transformou o dogma do povo de Deus; ampliou-o espiritualisando-o, sem tirar ainda assim á clemencia divina, como logo veremos, aquella mystica e excepcional indole que tinha entre os judeus. Admittiu os gentios ao beneficio das graças de que Moysés os excluira, e tornou judeus, mediante o baptismo, os que de sangue o não eram. Ao mesmo tempo, repulsou do seu gremio os que só por sangue eram judeus, e o não eram por baptismo, formando, com tal exclusão, outro povo de Deus, e ficando o antigo a representar a figura carnal do novo. Em summa, a Egreja moldurou quanto em si coube, o espirito christão nas fôrmas antigas, que ella sempre venerava e considerava expressamente feitas para o receber. Consoante a parabola, envasilhou o vinho novo no tonel velho, onde ferve até estalar as aduelas; cuidado, porém, que a velha vasilha póde fender-se; o vinho contheudo é o sangue de Christo; e o genero humano, em prol de quem tal sangue ha manado, não deixará que uma gotta se perca.

Ha pouco disse eu que a egreja, adoptando as crenças da Judéa, não havia modificado a indole estranha e excepcional que taes crenças argúem á bondade de Deus. Por egual razão deixou ella condensarem-se as mesmas trevas sobre a sua justiça. É facil demonstral-o.

VIII
A egreja e o novo povo de Deus

Hoje em dia faz-se mister nascer em paiz catholico para ainda se crêr na possibilidade de não ir infallivelmente ao inferno. Contra o espirito do mal inda lá se encontra aquella miraculosa assistencia que outr'ora protegia apenas o districto não grande do Oriente. Alargou-se o territorio da clemencia, mas ainda assim não mede a quarta parte do globo. Além d'isso entre os novos, do mesmo modo como entre os antigos judeus, perdem-se muitos, porque Satanaz está sempre comnosco, na carne de Adão, e a maldição sobranceia-nos sempre.

Se o baptismo destróe esta maldição, não o faz completamente, salvo quando o baptisado morre ao sahir do baptisterio; senão, nem nos dispensa das penas eternas, nem nos arranca das prezas da necessidade das affeições, das tentações, dos enganos innumeros que são os effeitos temporaes da maldição.

Cresce, pobre creança, e se podes, cerra os ouvidos ás alegres cantilenas da tua ama; foge ás caricias de tua mãe e a todas as seducções que já te rodeiam. Não toques no bello fructo que a tua fome anceia. Na tua edade, sem que o saibas, já Satanaz te falla; na bebida e na comida estão venenos d'elle; com o mal te familiarisas, e perdida está a innocencia baptismal. Feito o primeiro peccado, desluziu-se a graça; a maldição meia delida revive inteira; a Egreja vem ainda com outros mysteriosos meios em nosso auxilio; porém, como n'este mundo não ha destruir attracção e inclinação e a liberdade do mal, muitos dos seus filhos se perdem, apesar d'ella, e para, melhor o dizer, em seus braços.

Attendendo aos perigos a que estão sujeitos ainda os filhos da luz n'esses paizes favorecidos, considere-se em que estado de desesperação vivem os filhos das trevas, isto é a maxima parte do genero humano. Em mil milhões de homens, pouco mais ou menos, que actualmente soffrem na terra, o mais que póde haver é duzentos milhões de catholicos. O remanescente vive sem confissão, e o maior numero sem baptismo, na ignorancia ou no odio da Egreja, e d'aqui vão como vieram sob o poder de Satanaz. Tem elles culpa? Nasceram no abysmo e longe de soccorros. Familia, tribu, cidade, patria, protectores naturaes, primeiros guias, ultimos amigos, lições, exemplos, leis e costumes, tudo os engana. Quem é que póde escolher o seu berço? Pois a nossa salvação póde depender de circumstancias e successos que não dependem de nós? A nossa rasão corrompida absolve-os; o velho Adão encontra sempre alguma desculpa ao peccado; mas a fé essa não. A fé decreta a reprovação final dos gentios, dos infieis, dos hereticos e até a reprovação final e eterna d'um grandissimo numero de catholicos; crê n'isto como no peccado original, como na hereditariedade do crime e do castigo, bem como na graça da salvação – coisas correlativas e de todo o ponto inseparaveis. Adora em silencio todas estas apparentes iniquidades, convicta de que ellas são sómente apparentes, e que um dia virá em que os proprios gentios hão de confessar que Deus fez bem amaldiçoando-os: tão profundamente justo, equitativo e rasoavel é na essencia aquillo que exteriormente tão pouco é.

Não ha pois duvidar que milhões de milhões de creaturas humanas estão no inferno. As almas despenham-se ahi de todos os lados, densas e rapidas como a chuva, chuva que dura ha mais de seis mil annos, e não acabará nunca. Todos nós temos no inferno uma immensa familia: todos os nossos antepassados pagãos, durante quatro mil annos, e Deus sabe quantos avós christãos!

Os parentes e amigos de quem nos apartamos a chorar, o que fazem é ir adiante de nós; os netos d'elles e os nossos, pela maior parte, lá vão ter comnosco, e para tão horrivel fim é que nós nos reproduzimos.

IX
Como se prova a verdade dos dogmas hebraicos, e com especialidade a eternidade das penas

Todos estes dogmas estão ligados; porém, quando surge uma duvida, não basta um para demonstrar o outro. Próvem-nos que Satanaz foi expulso do céo, e o homem do Eden; e, quando o tiverem provado, nem por isso lhes cabe o direito de concluir que Deus nunca perdoará a Satanaz nem aos homens. Um castigo que tira aos pacientes a esperança, e ao divino juiz a piedade, é mais incomprehensivel ainda que a fragilidade dos anjos: por consequencia, um tal castigo carece de ser justificado por pessoas eguaes, senão melhores. Estes antigos mysterios não derivam um do outro naturalmente; e, seja qual for o castigo que Deus reserve em sua justiça ás prevaricações das creaturas livres, é certo que nós o soffreriamos, ainda que Satanaz e Adão não tivessem peccado. A principal questão é saber se este castigo será eterno, e a tal respeito a corrupção original, a reversibilidade das culpas, o poder do tentador augmentam nossas duvidas em vez de diminuil-as.

O que ahi ha para nós não são provas, são objecções. O inferno poderá ainda sem isso não satisfazer nossa razão; mas não a offenderá tanto. É urgente, pois, provar que elle existe.

Prova-se pela revelação, isto é, pelas escripturas santas e pela auctoridade da Egreja, interprete infallivel d'ellas. Porém revelação biblica e infalibilidade de Egreja são já de si outros dogmas a favor dos quaes se escrevem todos os dias grossos volumes; e seria desviar-me grandemente do meu assumpto suscitando aqui similhante discussão. O pouco que a tal respeito hei de dizer vem no appendice que está no fim d'esta obra, sendo tanto para o leitor como para mim grande a pressa que temos de sahir d'este labyrintho de mysterios. Investigo provas d'outra ordem, mais especiaes, mais directas, mais apontadas ao bom senso, ao coração, á intelligencia, e que se prestam facilmente a ser entendidas e livremente discutidas. Se taes provas não existissem, não emprehenderia eu similhante trabalho; mas sustenta-se que existem, e em todas as apologias são invocadas como auxiliares das provas sobrenaturaes, e do ensinamento da Egreja, argumentos puramente philosophicos, dos quaes parece que a fé mesmamente está carecida. Dir-se-hia de vontade a respeito do inferno, o que Voltaire disse de Deus: que se elle não existisse, mister seria invental-o. Pois que podemos em verdade provar a existencia de Deus pela necessidade moral d'esta crença, pelo mesmo theor se intenta provar a existencia do inferno perpetuo: intenta-se fazer d'isto uma necessidade moral tão clara e evidente, quanto é evidente e clara a necessidade moral da crença em Deus, e é usual fundamentar tal raciocinio sobre o testemunho de todos os povos, que tanto importa a tradição chamada universal.

A mim me basta a primeira prova; d'ella pende a meu vêr a questão capital. Se o inferno, ou sómente a idêa do inferno é moralmente util, existe o inferno, é necessario, e é divino. Porém, como quer que a evidencia d'esta utilidade não seja dogma, assiste-nos o direito de examinar com plena liberdade. Tal é a tarefa que me impuz. A tradição universal de que tratarei depois, é apenas a primeira face do problema.

PARTE PRIMEIRA

O INFERNO CONSIDERADO ÁQUÉM DA CAMPA, OU O HOMEM E A SOCIEDADE EM PRESENÇA DO INFERNO

CAPITULO PRIMEIRO
TRADIÇÕES

I
A tradição universal é a prova do inferno?

Quando nos querem fazer comprehender a necessidade da revelação christã, esforçam-se em requintar phrases aviltantes, para bem caracterisar o estado do mundo sob os reinados de Augusto e Tiberio.

Não peço que se suavisem as pinturas. Todavia, se se tracta de nos incutir algum antigo dogma hebraico tenebrosissimo, repellentissimo, tal como o peccado original, a malicia dos diabos, o eternal inferno, então é vêr como esse genero humano tão vilescido se transfigura subitamente em oraculo. Claro é que a moral se lhe varrêra de todo; mas a theologia ficou. Eil-os a cavar no lodaçal das superstições orientaes, as mais putridas de quantas ahi houve, e querem entrever n'ellas uns certos vestigios de lá se haver conhecido Adão e Noé. Se se trata simplesmente do inferno, isso então acha-se em toda a parte. Um paria vagabundo, um pagão abjecto, um negro, um hottentote tremente em face d'um fetiche, eis as testemunhas, os consultados, os doutores. É mais que certo que taes miseraveis haviam perdido as noções todas do bem; dormiam com as servas e até com as irmãs; vendiam na feira as filhas e ás vezes as mães; profanavam os hospedes; eram ladrões, eram antropophagos; adoravam pedras, serpentes, sapos, e, peor que tudo, homens, facinoras ensanguentados; mas criam no inferno. Clarão de consciencia não lampejava n'elles só um; não estremavam raia entre virtude e vicio; e, posto que taes distincções lhes houvessem sido reveladas, tinham-nas esquecido. Vêde, porém, o prodigio: quanto ahi havia incomprehensivel para nós e ainda mais para elles; tudo que transcende a alçada da experiencia; tudo quanto a simples razão não póde revelar – tudo, em fim, que, pelo conseguinte, mais facilmente se desluz da memoria, oh! tudo isso lhes ficou na lembrança!

Que argumento a pró do inferno!

Quem ousa impugnar verdade tão de fundamento provada? Cafres, Papus, Saabs, Bushmans creram no inferno! Patagões, Muskogis, Algonquinos, Chipperrais, Sioux creram no inferno! Hunos, Alanos, Ostrogodos, Gepidas, Vandalos creram no inferno! Tambem creram n'isso Cananeos, Philisteos, Ninivitas e Babylonios! Sodoma e Gomorra tambem! Sardanapalo, Balthazar, Herodiada, Cleopatra, Nero, Attila, Gengiskhão, Tamerlão creram tambem no inferno! Querem prova mais concludente?

Eu não sei se semelhante demonstração do inferno é bem feita para edificar uma assemblêa de fieis; receio muito que os incredulos se riam. Quer-me parecer que, se tentassem insinuar-nos reverencia a tal dogma, deveriam contentar-se com dizer-nos que aquellas raças degeneradas, aquellas nações estupidas, aquellas hordas faccinoras, aquelles sacerdotes embaidores, aquelles reis devassos, em fim, todos esses selvagens e monstros, nem criam na eternidade das penas, nem d'isso tinham vislumbres. Tal argumento, se fundado fosse, figurar-se-hia melhor que nenhum. Presumir-se-hia que esses homens, se tivessem á mão e perante os olhos barreira tal, não se infamariam tanto. Mas, da laia que elles são, darem-no'l-os como crentes no inferno, é mandar-nos descrer. Horrorisa-nos a immortalidade d'elles. Vão lá trazer taes arbitros para uma questão de altissimo interesse moral! Dizeis que elles creram no inferno? Oh Deus meu! é por isso mesmo talvez que elles tão mal comprehendiam a justiça, e tal vida viveram!

 
1No concilio feito pelos apostolos em Jerusalem, questionou-se sobre se se devia circumcidar os judeus. Muitos pensaram que esta operação fosse indispensavel á salvação, por isso que Moysés a ordenára; Paulo e Bernabé não foram d'esta opinião; a duvida, porém, era tamanha que sahiram deputados para Jerusalem, afim de combinarem com os apostolos e os padres. O concilio discutiu longo tempo. Pedro fallou de harmonia com Paulo; mas as duvidas subsistiram. Thiago fallou por sua vez, não invocando a palavra de Christo, mas repetindo algumas palavras dos antigos prophetas; o que fechou a pendencia. Decidiram que a circumcisão era desnecessaria á salvação. Todavia, logo adiante, Paulo, que contribuira para este accordo, circumcidou Timotheo, «em razão de estarem judeus n'aquelle logar, e saberem que seu pae era gentio.» Vid. Actos dos Ap., cap. XV e XVI.