Za darmo

A agua profunda

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– «Porque me fallas assim?» disse Chalinhy, estremecendo como quem acaba de ser tocado n'um ponto muito doloroso. «Sabes muito bem que não ha para mim nada mais desagradavel…»

– «Porque?» – interrompeu ella. – «É porque te amo e porque te quero só para mim, entendes, só para mim!..»

E o beijo que acompanhou esta exclamação apaixonada nada tinha de commum com as caricias ternas que precederam a visita ao quarto de Valentina.

Sem poder reconhecer a verdade completa, sentiu, comtudo, durante a curta entrevista que estava eminente uma catastrophe. Os poucos minutos passados n'esse quarto, ligeiramente illuminado, bastaram para lhe dar a impressão de mudança nos acontecimentos que denunciavam a approximação do desenlace nas tragedias latentes, como são as que apresentam certas ligações antecipadamente destinadas a produzirem complicações violentas.

O que lhe importava de Valentina ou de si, se o conflicto entre as duas chegasse ao periodo agudo que via tão proximo, e em que estava já com effeito, por motivos muito differentes do que a sua descoberta da vespera lhe fazia prever? A evidencia de uma crise decisiva no longo duello que sustentava contra a prima, no seu proprio pensamento, e, havia um anno, no coração de Chalinhy, fez repentinamente reviver a energia, por um momento adormecida, do seu antigo odio.

– «É a guerra, pois seja», ia dizendo consigo ao deixar o palacio, cuja imponente fachada, com as suas largas pilastras de capiteis jonicos, que acompanham os dois andares, observou durante algum tempo. E pareceu-lhe ter visto á direita, por detraz d'uma das janellas do quarto de Valentina, apparecer uma cabeça em atitude de observação.

Era bem verdade que a pobre senhora, ficando só, desvairou de novo com a idéa d'uma conversa, sem testemunhas, entre o marido e a prima, e fez o esforço de se levantar para constatar ella mesmo o momento em que terminaria.

Retirou-se logo que viu a outra voltar a cabeça rapidamente. Joanna surprehendeu-a na espionagem, bem innocente, comparada com a perseguição em carruagem desde o «boulevard» dos Invadídos até á rua Lacépède. Uma e outra espionagem egualaram-se no seu espirito, e a sensação d'uma batalha travada tornou-se ainda mais intensa.

– «Esta tão doente como eu», pensou Joanna. «O meu instincto tinha razão. A enxaqueca é fingida… O que quererá ella? Não vejo claro nos seus designios. Em todo o caso é forçoso tomar-lhe a dianteira. Entre mim e Norberto ha apenas um obstaculo, acabei de o reconhecer ainda ha pouco: as illusões que tem a seu respeito. Ella sabe-o tambem como eu… Que eu seja inepta! Foi para adivinhar se tinhamos fallado a seu respeito que me chamou ao seu quarto. Comtudo se reconhece que me calei, vae proceder… Ah! tanto peor para ella; é a guerra». E repetiu com uma profunda accentuação: «É a guerra!»

A inveja inconsciente, amontoada n'ella por innumeras impressões da infancia e da juventude, renovou-se com grande intensidade. Esqueceu, por isso, as regras mais elementares da probidade feminina e as observações que fizera para comsigo mesmo, em face da sua consciencia, depois do encontro no grande armazem, na outra semana, e na vespera, quando voltava da investigação policial. Eis ahi a rasão porque n'essa noite, ao regressar, proximo da meia noite, do club, o marido de Valentina encontrou entre a correspondencia da ultima distribuição uma carta, cujo endereço, escripto em lettra tombada e evidentemente disfarçada, o impressionou logo. Trazia a marca da estação da praça da Bolsa.

Abriu-a com o presentimento justificado pela infame carta anonyma, que continha sómente as seguintes palavras, traçadas com a mesma lettra disfarçada: «Um amigo do Conde de Chalinhy convida-o a vigiar o n.º 11 da rua Lacépède. A marquesa de Chalinhy esteve ali ainda hontem ás tres horas da tarde. Com quem? É o que sem duvida interessa ao marquez… A bom entendedor…»

Trazia como assignatura: «Alguem do Club…»

VI
Orgulho de homem

O primeiro movimento de Chalinhy, depois de ler e reler a abominavel carta, foi amarrotal-a com a repugnancia desdenhosa que merecem taes missivas, e deitou-a no fogo quasi extincto do fogão do quarto. O seu segundo movimento, como ouvisse approximar o creado, que havia chamado, foi tornar a apanhar o papel denunciador que as brazas do fogão tinha apenas enegrecido nas extremidades e metel-o na gaveta da banca de cabeceira, d'onde a tirou de novo logo que ficou só. Sabe-se que o auctor d'uma carta anonyma, tornando-se culpavel d'uma tão despresivel acção, destruiu de golpe todo o credito do seu testemunho, e, por isso, a melhor maneira de o punir é annular a sua preversidade, desprezando-a.

Mas, apesar d'isso, noventa por cento das vezes é essa preversidade que vence a nossa razão. Essas phrases escriptas propositadamente para nos ferirem n'um ponto bem vulneravel, e que, pelo facto de não terem assignatura não deviamos ler, lemol-as palavra por palavra.

Deixamos cada syllaba injectar-nos o seu mortal veneno, sentimos rugir dentro em nós a impotente e dolorosa cholera do homem ultrajado, que não sabe d'onde vem a tempestade, e que, não tendo a faculdade de se vingar d'ella, não tem força para a esquecer.

– «Mas o que é isto?.. O que é isto?..» É naturalmente a primeira pergunta suggerida pela cholera. Foram tambem as palavras que o marido de Valentina repetiu, com uma energia de furor sempre crescente, á medida que as phrases, que insultavam mais vivamente a sua honra de esposo, se tornavam cada vez mais nitidas. Analysou, depois, demoradamente, todos os caracteres d'essas phrases e não chegou a descobrir um unico traço que correspondesse a uma lettra sua conhecida, tão grande foi a habilidade de Joanna ao confeccionar essas funestas linhas. Levou a sua precaução até empregar meia folha de papel do usado no club de Norberto, porque entre a correspondencia do marquez encontrou uma carta que d'ali lhe havia escripto, com a terceira e quarta paginas do papel completamente em branco. Chalinhy reconheceu logo o papel, e viu n'elle o indicio de que o insulto provinha d'um dos consocios com quem se encontrara todos os dias.

Teria estado com elle n'essa mesma noite?

Talvez que no momento em que atravessava os salões, á sahida, esse homem o seguisse com o olhar, sorrindo de antemão do papel deitado na caixa e que caminhava ao seu encontro, sem que, sequer, de tal suspeitasse.

A realidade da existencia da mão que tocou esse papel, do cerebro que pensou essas phrases, do inimigo desconhecido que lhe vibrou o golpe, perturbava-o. É uma das duas imagens que a carta anonima naturalmente suscita: a do odio que a dictou.

A outra imagem é a do facto denunciado por esse odio. Podemos duvidar de tal facto, o que não devemos é duvidar do odio.

Olha-nos occulto pela sua mascara; e é assim que nos ameaça e nos fere. E porque?

Um arrepio percorre a fibra mais intima da nossa alma ao contacto d'esse rancor encoberto, mas muito forte para ter descido a tão grande baixeza para se saciar. É então que da sensação d'uma pessoa que contra nós se dirige na sombra, passamos sem querer á segunda: uma suggestão emanada do papel que nos representa essa pessoa. Para que, odiando-nos tanto, tenha escolhido entre todas as injurias precizamente aquella, é porque lhe liga uma capital importancia.

«É porque a julga fundada n'um facto real.»

– «Rua Lacépède? Onde fica esta rua?..» perguntou Chalinhy depois de ter passado pela imaginação todos os seus consocios do club com os quaes estava n'uma situação mais equivoca, e não conseguindo fixar as suspeitas sobre um determinado. Como se vê, procurava uma pista: começava a meditar, não sobre a origem da carta, mas sobre o seu contheudo. Foi ao escriptorio buscar um annuario onde podia encontrar a nomenclatura de todas as ruas de Paris com a indicação do bairro em que ficam e quaes as arterias differentes que com ellas communicam. Confiou em que ali descubriria as informações que procurava: «Rua Lacépède, quinta circumscripção administrativa. – Rua Geoffroy – Saint-Hilaire». E a seguir como primeiro endereço: «1, Hospital da Piedade».

Esta indicação permittiu-lhe pelo menos precizar a situação da casa que o denunciador anonymo ironicamente lhe indicava que vigiasse.

Á ideia do hospital associou-se logo a do Jardim das Plantas, que conhecia por ter alli ido umas quatro vezes na sua vida, se tanto.

A impressão que fizera hesitar Joanna, quando a sua carruagem seguiu a de Valentina, avivou-se no parisiense elegante, ao recordar-se do miseravel aspecto d'aquelle bairro.

Só o imaginar a figura da esposa n'um tal meio, pareceu-lhe um absurdo tão grande, que encolheu os hombros n'um gesto de incredulidade. Amachucou de novo a carta anonyma, e, tomando-a entre os dois ramos da tenaz, pouzou-a sobre as achas quasi consumidas, esperando d'esta vez que o papel ardesse completamente.

– «É uma mystificação imbecil», disse, acabando de desfazer com a tenaz os destroços enegrecidos; «devia tel-o pensado logo».

Deitou-se impressionado por esta conclusão, que lhe parecia decisiva, e adormeceu, tão tranquillamente, quanto lho permittia o seu estado de agitação.

Apezar da certeza de Joanna, e, posto o facto de esta ter sido recebida no quarto da esposa, o levasse a crer que a sua doença era effectivamente physica, um invencivel presentimento continuava a dar-lhe como suspeita a visita da velha senhora de Nerestaing e a attitude de Valentina depois d'ella.

Foi este pensamento que o decidiu no dia seguinte, pela manhã, quando a encontrou já levantada e vestida, mas ainda visivelmente incommodada e muito palida, a referir-lhe, gracejando, o teor da carta anonyma recebida na vespera. Calculou que a ligeira allusão feita a esse documento nenhuma importancia teria, se nada houvessem anteriormente dito a Valentina, e que, pelo contrario, se lhe tivessem feito quaesquer revelações, talvez encontrasse no tormento que o gracejo lhe causaria motivo para a interrogar.

 

– «É verdade», continuou elle, depois de ter começado por lhe declarar que ia contar-lhe uma historia que a devia fazer rir.

«Imagina tu que tens inimigos que não recuam deante d'uma carta anonyma. Recebi hontem uma á noite, convidando-me a vigiar-te, quando sáes.

«Parece,» continuou elle, «que tens entrevistas. Vejamos, procura bem… Não encontras?.. 11, rua Lacépède…»

Não tinha ainda acabado de pronunciar estas palavras e já o sorriso se lhe apagava nos labios, deante do aspecto de terror que vio na physionomia da esposa. Uma onda de sangue inundou repentinamente o seu rosto fatigado, que se tornou logo d'uma palidez mortal. Por um movimento de supplica, que não poude reprimir, poz as mãos. Depois passando-as por sobre a fronte, como quem soffre muito, disse: «Ah! vou-me embora» e retirou-se.

Estes evidentes signaes d'uma tão estranha emoção fizeram naturalmente suppor ao marido que o nome da rua e o numero da casa indicados na carta anonyma correspondiam a um segredo na vida da esposa. Depois d'isso, os carinhos que lhe prodigalisava por humanidade, eram tão claramente misturados com o desejo evidente de a interrogar que ella com facilidade o adivinhou. Foi por isso que as primeiras palavras que lhe disse equivaliam a uma supplica, para lhe não infligir essa tortura no estado nervoso em que se encontrava:

– «Perdoa-me, meu amigo», disse tratando-o por tu e com uma grande ternura, tratamento que poucas vezes empregava mesmo na intimidade «perdoa-me se não soube dominar-me quando me falaste d'essa infame carta que te dirigiram contra mim, senti profundamente a crueldade do mundo, e isso fez-me muito mal, um extraordinario mal, porque acabava tambem de a experimentar, e d'uma maneira muito cruel para mim, n'uma outra occasião. – Não procures saber quando». Pousou a mão sobre o braço do marido para lhe implorar que não a interrogasse mais.

«Não to diria nunca… Então quando vi que a calumnia tambem procurava realisar a sua obra junto de ti, todos os desgostos porque tenho passado nos ultimos dias se me concentraram no coração, e as forças trahiram-me…»

Estava tão tocante assim, de todo o seu ser emanava uma tal certeza de lealdade e de delicadeza, que Norberto, sentindo acordar em si tudo o que tinha de honesto e bom, apezar das suas criminosas fraquezas, não lhe resistiu. Elle que na vespera tinha vibrado de cholera ao ver que havia quem se tivesse permittido escrever o nome da marqueza de Chalinhy n'uma phrase de accusação tão clara, acabava agora de observar o effeito de espanto produzido por essa accusação e ficou physicamente incapaz de a interrogar, de a forçar á explicação d'uma transformação tão singular. Era que ao vel-a no proprio momento em que um enygma tão completamente inexperado lhe surgia deante, não podia mais duvidar d'ella como se não duvida da luz do dia. Era tambem que, ao ouvir as palavras: «Acabava tambem de experimentar a crueldade do mundo…» comprehendeu que tudo adivinhára, e que a sua ligação com Joanna de Node fôra denunciada a Valentina. Eis pois o motivo porque estava doente havia quarenta e oito horas. O seu soffrimento constitue a prova de que estava innocente, ao contrario do marido, – e que o amava.

Chalinhy não percebeu distinctamente todas estas coisas, principalmente a ultima, que tocava o fundo mais obscuro do seu viver conjugal. Mas sentia-o e respondia a este lamento tratando tambem por tu a esposa, pela primeira vez, havia, talvez, muito tempo.

– «É verdade. Estás ainda tão pallida. Talvez te seja necessario mais um dia de repouso… Se tens tido desgostos, contarmos-has quando estas miserias passarem. Encontrar-me-has sempre prompto a auxiliar-te e a proteger-te nos momentos mais difficeis.»

Olhou-o com o olhar cheio d'um infinito reconhecimento pela prova de affeição que acabava de dar-lhe, respeitando a susceptibilidade do seu coração.

Depois, como se esta conversa lhe fosse tambem muito incommoda, levantou-se, dizendo:

«Creio que tens razão e que devo deitar-me… Até logo, e obrigada…» Imprimiu a esta ultima palavra, acompanhada d'um sorriso forçado, tanta graça enternecida que Chalinhy ficou commovido e admirado ao mesmo tempo.

Ficando só, começou a pensar, no pequeno gabinete, absorvido em reflexões tão contradictorias que sómente a sua incoherencia era para elle um soffrimento. Muitas impressões oppostas, e hypotheses variadas, lhe passavam pelo espirito, e sobre tudo muitas coisas confusas para a sua propria sensibilidade, começavam a desvendar-se sem que podesse comtudo torna-las nitidas.

Depois que se deixou enlevar pelas seduções que a coquette e intelligente Joanna lhe exercia no animo, as suas relações com Valentina tornaram-se cada vez mais automaticas, se assim se póde dizer, e convencionaes.

É o grande perigo para os casaes que vivem constantemente no grande mundo. O marido e a mulher cumprem ali uns deveres de etiqueta que acabam por modelar o seu viver intimo e conjugal pelo mesmo typo da existencia exterior e social.

Quando se veem, pela manhã, é para fallarem das mais insignificantes questões que se prendem com as sahidas constantes: quem se deve convidar para jantar, para ir ao theatro, que convite se deve acceitar.

Alguns acontecimentos dos salões que frequentam e do club, e passou-se uma hora sem se trocar uma palavra verdadeira.

Almoçaram e ainda mesmo que não esteja presente nenhuma pessoa das relações, os creados na constante permanencia junto d'elles para os servir, evitam aquella familiaridade que faz a bonhomia, um pouco vulgar, mas tão propicia á boa harmonia, á união, das modestas mezas burguezas.

Mais tarde quando os filhos são já crescidos a professora e o preceptor constituem mais um elemento de retrahimento, durante a refeição. Logo que termina, o marido vae, sem demora, tratar dos seus negocios, fazer visitas, ao club; a esposa passa o tempo na rua, em cumprimentos e diversões compativeis com o circulo sempre crescente das suas relações parisienses.

Jantam fóra, ou teem convidados para jantar. Vão ao theatro.

Podiam contar-se as noites que passam em casa, só, na verdadeira intimidade conjugal, e teem até aposentos separados – como os marquezes de Chalinhy.

Regressam silenciosos e concentrados, sem mesmo quererem saber um do outro.

Esta ignorancia reciproca de dois conjuges que vivem debaixo do mesmo tecto, recebem juntos e representam juntos na figuração quotidiana d'uma existencia da moda, é um dos phenomenos mais incomprehensiveis para os observadores de fóra.

Só assim se explica, principalmente da parte dos homens, determinadas cegueiras que seriam deshonrosas se não fossem produzidas pela mais poderosa das causas de illusão: a cohabitação sem sinceridade, sem franqueza.

Assim se explicam, pelo contrario, certas mudanças cuja falta de logica desconcerta a maledicencia d'esses observadores estranhos: um marido que durante annos desprezou a mulher, volta para junto d'ella, tão apaixonado, como se acabasse de a conhecer, de a descobrir. Conheceu-a effectivamente, por um acento de voz, por um gesto. Feliz quando a que por tanto tempo desconheceu, se lhe não revelou por qualquer virtude despertada pela ternura d'um outro!

Estas observações, d'uma ordem bem pouco elevada, bem horrivel, cuja triste verdade será reconhecida por muitos menages invejados pelo brilho do seu luxo, deviam ser recordadas para completa intelligencia do seguinte monologo de Chalinhy. Era como se n'alguns simples momentos de conversação Valentina se lhe tivesse revelado uma mulher que não conhecia. Ó contradição dos falsos sentimentos! O marido perfido tremia pelo futuro da sua ligação com a amante e, ao mesmo tempo, esforçava-se por esquecer a suspeita a respeito da esposa, sugerida pela carta anonyma e confirmada pela sua agitação quando lhe falou de ella.

– «Como estava commovida ainda agora; e como vale bem mais do que eu! Não pude resistir a fallar-lhe d'essa infame carta; a citar-lhe a rua e o numero da casa!

«É uma calumnia ignobil, abjecta, e o que a tia lhe contou, uma verdade irrefutavel, pois apesar d'isso nada me disse.

«Ter-se-hia calado semanas, annos, sempre, sem o golpe que lhe vibrei, repetindo semilhante vilania. Como ficou assombrada! Mas era naturalissimo, desde que tinha no coração o peso de esta outra denuncia!

«Que havemos de fazer, eu e Joanna? Ainda que no momento actual Valentina se recuse a acreditar o que se passa entre nós, de futuro, mesmo contra sua vontade, observar-nos-ha, e depois Joanna é tão audaciosa! Se tivesse aceitado o convite para ir na sua carruagem á sahida da Opera, e que Valentina o soubesse, teria uma pequena prova em favor da accusação… Como as suspeitas nascem rapidamente! Quando lhe mencionei o numero 11 da rua Lacépède, que a vi empallidecer, e que me olhou um segundo, suspeitei que esta ignominia podia ser verdadeira. Estava louco!

«Não se mente com aquelle olhar, com aquella voz!

«Não se dão suspiros de dôr, quando se é culpado!.. Como estava bella!

«Como eu, ella é sempre tão fria, tão reservada. Se me tivesse, portanto, enganado a seu respeito? Julguei-a sempre uma mulher honesta, mas com preconceitos; muito seria, muito circumspecta mas sem affectos, sem os impetos apaixonados da outra!..

«É quasi impossivel encontrar na mesma mulher tantos predicados: o ardor e a seriedade; o amor e a estima. N'esse caso as iniquidades do mundo deixariam de existir. E ellas são enormes! Que a tia me denunciasse, comprehende-se, ainda que seja bem custoso.

«Mas accusarem-na a ella? Porque uma tal precisão? Para me obrigarem a ir á rua Lacépède, inspecionar a casa indicada? E com que fim?.. Ah! Nem pensar n'isso! Pensarei mas é em impedir que a sua desconfiança se transforme em certeza. Não quero tornal-a a ver com aquella pallidez d'esta manhã, e aquelles modos…

«Joanna deve tambem procurar, por seu lado, que as suspeitas se desvaneçam para que o nosso amor não redunde n'um medonho escandalo…»

Taes eram os pensamentos, estremamente discordantes, que se agitavam no espirito d'este homem, ao qual o destino deu a felicidade, na pessoa da mais nobre e mais delicada das mulheres… E não sabiam, ella manifestar-se, e elle reconhecer-lhe o merecimento.

As peripecias finaes d'esta aventura darão talvez aos partidarios da hereditariedade o motivo das incoherencias sentimentaes de que Chalinhy era victima.

Se pode sustentar-se que os pensamentos dos paes teem influencia no caracter dos filhos, devia Chalinhy ter sido concebido em horas de bem intima inquietação para ser assim, indeciso e inaccessivel, susceptivel de se deixar arrastar e comtudo apaixonado pelas coisas elevadas, avido de paixão e amante da honestidade, tão fraco para com certas particularidades do seu caracter, e tão violento, tão implacavel, para com outras, ia proval-o mais uma vez.

Depois d'esses raciocinios, estava ainda inteiramente preoccupado na maneira porque, de futuro regularia uma traição, da qual deveria ter horror, comparando a esposa, tal qual se lhe mostrava agora, á amante. Mas conheceria elle tambem a amante?

Não tenho sabido descobrir no coração de Valentina a riqueza occulta da mais ardente sensibilidade como teria advinhado no de Joanna todas as miserias, toda a sequidão, e uma unica paixão ardente: a inveja? Reconheceria logo que caracter tão admiravel sacrificára uma alma tão dura. O ruido d'uma porta que se abria interrompeu-o de repente nas suas meditações, e viu entrar, como na vespera, á mesma hora, a auctora da carta anonyma que serviu de ponto de partida á scena entre os dois esposos, a propria baroneza de Node.

Chegára ligeira e esbelta, com um vestido de passeio. Tendo andado a pé, o contacto do ar fresco rosara-lhe as faces, e os olhos negros brilhavam com intensidade.

Vinha constatar pessoalmente o effeito da denuncia.

Não necessitou olhar duas vezes o amante para advinhar que estava ainda mais perturbado que de costume. Percebeu tambem, distinctamente, que havia fallado a Valentina. As almofadas d'uma cadeira de braços, collocada junto do fogão, mostravam que alguem se tinha ali assentado ha pouco, e um lenço esquecido sobre uma pequena meza attestava que esse alguem fora a marqueza de Chalinhy.

Não era preciso mais. Joanna concluiu logo que a scena da explicação devia ter sido violenta.

– «Vim saber noticias de Valentina,» disse dissimulando as suas intenções.

«Ella não se levantou ainda?.. Não está melhor?..»

– «Levantou-se», respondeu Chalinhy, «mas tivemos uma conversa que a incommodou muito. Sentiu-se peior e tornou-se a deitar.»

– «Joanna» acrescentou com uma singular firmeza, «não me enganei, fallaram-lhe a nosso respeito…»

 

– «E o que disse?» perguntou ella.

– «Não entrou em detalhes. Não precisou factos nem pronunciou nenhum nome. Mas comprehendia-a perfeitamente. Contaram-lhe tudo, percebes, e nada acreditou…»

– «Não comprehendo, então, porque motivo tomas um ar tão solemne para me annunciar que nada mudou na nossa situação», respondeu Joanna, «a não ser que…»

– «A não ser que?..» perguntou Chalinhy, visto não ter ella concluido a phrase, «que queres dizer? Conclue o pensamento…».

– «A não ser que tu proprio desejes que elle mude. Ah! A Valentina é muito mais forte do que imaginava», continuou com um máo sorriso.

– «Se te tivesse dito que acreditava, protestarias e ter-nos-hias defendido. Em logar d'isto, fez de generosa, ella que não quiz admittir que a sua Joanna e o seu Norberto possam enganal-a, e tu preparas-te para me pedir que seja prudente, para a poupares. Confesso. Diviso este pedido nos teus labios. Dispenso-te de o fazeres».

Fallou com uma irritação crescente, que provinha da sua profunda decepção. Esperava encontrar Chalinhy pesaroso, para o interrogar, para obter d'elle a declaração da carta anonyma, para conseguir que lh'a mostrasse, e para emfim, o aconselhar a que procedesse a um rigoroso inquerito, o qual, em sua opinião, devia ser a perda da rival. Todo o seu plano fora porém, destruido. Porque artificio? Suspeitava-o, sem comtudo comprehender como a discussão das suas relações com Chalinhy, tinha substituido a da carta anonyma.

– «Joanna», replicou Chalinhy; com aquella accentuação de voz que se emprega para com as creanças que não desejamos molestar, «tu não és justa, nem comigo, nem com Valentina.

«Porque a accusas d'um calculo que não está no seu pensamento, juro-to? Se a tivesses visto, como eu, aqui, ainda ha pouco, não duvidarias da sua sinceridade. Soffria e censuram-na ainda. Eis toda a verdade. Não acreditas?..»

– «Não,» disse, com uma dureza na voz que denunciava o seu odio occulto, pela prima. Chalinhy cometteu a mais perigosa imprudencia, – estando collocado, como realmente estava, em consequencia das suas proprias faltas, entre duas mulheres, uma das quaes apenas o queria por aversão á outra – appelando para a ternura e para a piedade d'um coração em que sómente havia sede de vingança! Era exasperar ainda mais este cruel apetite, e Joanna, cedendo a elle, repetiu: «Não, não acredito. Queres saber porque? É porque a conheço melhor do que tu, meu caro, muito melhor, fica certo». Acompanhou esta phrase d'um mau sorriso. Sentou-se, conservando os olhos abertos, e, no rosto, evidentes signaes de obstinação. Movia entre os dedos crispados, uma faca de tartaruga para cortar papel, que se achava sobre a meza a que se encostou, e ouvia, n'um mutismo pertinaz, Chalinhy perguntar-lhe visivelmente irritado, por a ver assim increpar Valentina em termos tão insidiosos.

– «O que significa tudo isto? Explica-te: Já uma vez, na semana passada, quando, jantamos em casa dos Sarliévre, proferiste as mesmas palavras enigmaticas e acompanhadas do mesmo sorriso… Queres dizer que ha na vida de Valentina coisas que não vejo, que não sei e que tu sabes? Não se falla a um homem da mulher que usa o seu nome, de maneira que possa tornal-a suspeita, quando nada de preciso se diz. O que ha? O que se passa? Respondes ou não».

Continuava calada, e os seus dedos a brincar cada vez mais nervosamente com o objecto que servia para occultar a grande agitação interior. Ao chegar o momento de consumar, por um testemunho directo e pessoal, a obra da deleção começada pela carta sem assignatura, hesitava, tinha medo. Chalinhy calou-se tambem. Uma idea, que não lhe tinha ainda occorrido, atravessava n'aquelle momento o seu espirito, e logo lhe pareceu evidente. Levantando-se bruscamente agarrou a amante por um pulso e obrigou-a a olhar para elle.

– «Joanna!» disse subitamente «tu é que escrevestes a carta.» E com a voz transtornada e como estrangulada pela indignação, repetiu. «Fostes tu que a escrevestes, fostes tu… Mas confessas então…»

– «Magoas-me» respondeu Joanna levantando-se e debatendo-se contra uma tão brutal violencia. «É indigno. Deixa-me».

Chalinhy deixou-a, e passando a mão pela fronte como um homem que volta a si, depois d'um minuto de delirio, disse, envergonhado, quasi supplicante «Tens razão, é indigno. Perdoa-me. Mas peço-te sem violencia, responde-me. Recebi hontem uma carta anonyma, rasguei-a e nem quero pensar no que continha. Se foste, porem, tu que a escreveste, tudo mudou. O que n'ella se diz é então verdade. Dize, é tua a carta?»

– «Sim, é minha,» respondeu a amante, depois d'um novo silencio.

– «N'esse caso» e a voz de Chalinhy estrangulou-se para articular a suprema pergunta, «então é verdade?..»

«É verdade, é.» Depois, baixando novamente os olhos, rapidamente, como não desejando dar a si mesma tempo para se arrepender do que tinha feito e que era já irremediavel, começou a referir os acontecimentos que já conhecemos.

Contou o seu encontro com a prima no grande armazem da rua de Rivoli, a sahida d'esta por uma porta differente d'aquella aonde tinha o coupé, a partida da carruagem, a mentira d'essa noite a respeito do que fizera de tarde; a tenção formal que tinha feito de nada revelar a Norberto, etc.

Expoz depois o segundo encontro, tendo, é claro, o cuidado de dizer que fora casual – como tinha visto, na antevespora, sahir Valentina a pé, seguiu-a quasi machinalmente; – como a prima alugou novamente uma carruagem, não poude tambem deixar de alugar outra, e que, por isso, chegaram quasi ao mesmo tempo a esse bairro perdido, proximo do Jardim das Plantas, – e o resto: A marqueza de Chalinhy sahiu da carruagem em frente do hospital, seguiu a pé até ao pavilhão da rua Lacépède, entrou na tal casa, chegando alguns minutos depois, um individuo em carro de aluguer, o qual consultou o relogio, com a impaciencia de quem chega tarde para uma entrevista.

– «Continuaria calada, juro-te; mas quando hontem e ante hontem a vi representar a comedia da suspeita contra nós, comprehendi que sabia ter eu surprehendido o seu segredo.

«Não foi a tia de Nerestaing que nos denunciou a ella; ella é que nos denunciou á tia de Nerestaing.

«Calculou que te fallaria no assumpto e quiz tomar a deanteira, acusando-nos… Então perdi a cabeça. Disse de mim para mim que eramos solidarios eu e tu, que não podia permittir que te fizesse tal, havendo-se trahido, e escrevi-te, uma primeira carta… Depois, no momento de t'a enviar, tive receio de que me despresasses… Comtudo era por ti, só por ti que te escrevia.

«Sim tive esse receio, disfarcei a lettra e não assignei!.. Agora que sabes tudo, diz-me que acreditas que apenas procedi assim por tua causa, para que possas defender-te antes que ella te fira.

«Dize que me não desprezas por ter empregado este meio para te avisar. Oh! dize-me, meu amor, meu Norberto, dize-me.»

Escutou-a, sem a interromper, com uma physionomia que a cada detalhe dado pela accusadora se foi carregando até se tornar terrivel.

Se é verdade que nos pequenos como nos grandes acontecimentos, segundo a opinião dos Livros Eternos: «as iniquidades ferem quem as pratica, e que as más acções ficam com quem as faz» a invejosa estava sendo punida pela sua repugnante delação, por a propria attitude de Chalinhy.

Podia ver bem no seu rosto, n'aquelle momento, que não existia mais para elle.

O amante desappareceu para só existir o marido.

Não respondeu á supplica que Joanna lhe dirigiu, atemorisada pela sua propria obra.

Não lhe podia dizer se a despresava ou não. Só tinha no pensamento a mulher —a sua mulher!– indo a uma entrevista amorosa.

– «A infame!..» exclamou Chalinhy, repetindo «A infame!..» E dirigia-se á porta que conduzia aos aposentos de Valentina, quando Joanna se lhe collocou deante, dizendo: