Entrevistas Do Século Breve

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Gong Li

Encantada pela lua

No início de 1996, eu tinha há pouco iniciado o meu encargo de correspondente do Extremo Oriente e com outros amigos jornalistas, saia com colega do Time em Hong Kong, John Colmey. John me colocou em contato com o empresário da belíssima atriz chinesa Gong Li, através da qual consegui ter uma entrevista exclusiva para Panorama , no set do filme que estava gravando, próximo à Xangai.

*****

Em Suzhou, às margens do Lago Tai, cem quilômetros a oeste de Xangai, Chen Kaige está para gravar uma das últimas cenas do seu esperado filme Temptress Moon , três anos depois do sucesso mundial de Addio mia concubina . Os assistentes correm entre as mais de duzentas participações em trajes dos anos Vinte que enchem o cais do porto, as mulheres usam o característico cheongsam em seda, alguns cavalheiros leem sentados em um banco e, no fundo, os operários do porto carregam as mercadorias no navio. Está sendo gravado um grande adeus: Gong Li, que no filme é Ruyi, a bela e viciada herdeira de uma riquíssima família de Xangai na qual ocorrem incestos, ritos opiácios e traições cruzadas, está para partir para Pequim junto ao prometido cônjuge, Zhongliang: Leslie Cheung, o ator de Hong Kong já ao seu lado em Addio mia concubina .

No banco, está o amigo de infância Duanwu (interpretado pela promessa do cinema de Taiwan, Lin Chìen-hwa), que desde sempre ama Ruyi em segredo: «Deve pensar: é a última vez que a vejo, a última vez! Isso se deve ler no seu vulto, é aquilo que quero ver!» recomenda-lhe Chen Kaige, quarenta e seis anos, casaco de pele e jeans pretos. «Bem... Yu-bei ... (prontos, ndr) ... Action !». Quando Lin Chien-hwa se vira para olhar o navio que parte, nos seus olhos se lê a dor. « Okay! » grita Kaige satisfeito. É a última claquete do dia.

Depois de mais de dois anos passados reescrevendo o roteiro, Kaige está trabalhando duro para preparar o seu filme para a participação do Festival de Cannes, em maio. Número um do cinema chinês dos anos Noventa, filho da arte (seu pai, Chen Huai’ai, era um monumento do cinema do pós-guerra), Chen Kaige é famoso por obter o máximo dos seus atores, colocando às vezes à dura prova a sua paciência. E aquela do governo chinês, que por anos proibiu, cortou e censurou os seus filmes, até que teve que reconhecer, no fim, a estatura de mestre do cinema contemporâneo.

O novo filme Temptress Moon, que custou até agora seis milhões de dólares, representa de certo modo o símbolo da condição hoje do cinema chinês, oscilando entre liberalismo e repressão, projetado nos mercados mundiais, mas com os pés bem no chão no solo da pátria mãe; cosmopolita e provinciana ao mesmo tempo. E o set do filme parece um microcosmo da China contemporânea.

Os protagonistas são o melhor que oferecem, atualmente, «as três Chinas»: Hong Kong (Leslie Cheung), Taiwan (Lìn Chien) e a China popular (Gong Li). O diretor é um intelectual de Pequim e a produtora, Hsu Feng, é uma ex-estrela do cinema de Taiwan, casada com um homem de negócios de Hong Kong, onde nos anos Setenta fundou a Tomson Film (e tinha sido exatamente ela a convencer Kaige, oito anos atrás, a levar para a tela a novela de Lilian Lee, Addio mia concubina ).

Mas se a espera pela nova direção de Kaige é grande, ainda maiores são as expectativas do público e da crítica para a prova de atriz da estrela incondicional da película, Gong Li. Com trinta e um anos, a atriz é com certeza neste momento a mulher chinesa mais conhecida no mundo. No seu passado, há filmes como Sorgo rosso (1987), Lanterne rosse (1991) e Addio mia concubina (1993). É uma longa história de amor recém terminada com Zhang Yimou, seu companheiro por oito anos, o diretor que fez dela uma estrela mundial e com o qual rodou uma última película o ano passado, La triade di Shanghai .

Mas o sucesso junto ao público ocidental não impediu a Gong Li de permanecer chinesa cem por cento.

No fim do dia no set, aceitou falar de si mesma para Panorama , nesta entrevista exclusiva.

Ainda um grande filme, mas ainda uma história antiga que fala dos anos Vinte na China e não dos fatos da história recente...

Penso que isto dependa do fato que a China abriu as suas portas para o resto do mundo só há poucos anos. E desde que isso aconteceu, para nós também o cinema desfrutou de uma maior abertura estilística e cultural. Com certeza, a censura desempenhou, por anos, um papel decisivo ao dirigir os temas e o destino do nosso cinema. Mas, há também um motivo, mais artístico, se pode-se falar assim: muitos diretores chineses pensam que seja bom fazer filmes sobre fatos que precedem a Revolução cultural. É uma forma para reabilitar aqueles fatos e aquele passado. E talvez pensam que seja ainda cedo para levar para as telas, para o público internacional, episódios recentes, que são ainda muito recentes e dolorosos na memória de todos.

Você é a mulher chinesa mais popular no mundo. Sente a responsabilidade deste seu papel de embaixadora?

O termo embaixadora me amedronta um pouco... me parece um título grande demais para mim. Digamos que me sinto, na verdade, através dos meus filmes, uma ponte entre a nossa cultura e aquelas do Ocidente. Isto sim: porque, de fato, penso que entre vocês, não se conhece muito da realidade da China atual. E se um meu filme pode servir para fazer compreender ao Ocidente algo a mais sobre a nossa vida, sobre o nosso povo, sobre nós, então disto me sinto realmente orgulhosa.

Ultimamente, porém, a imagem da China no mundo não é das melhores: execuções em massa, orfanatos da morte... Tudo isto corresponde à verdade?

A China tem muitos problemas, isto é verdade. Principalmente, quando se olham só os eventos negativos, esquecendo aqueles positivos. Se de um país se conhecem só as distorções, é claro que a imagem que se tem é incompleta. O meu país é grande, somos mais de um bilhão de pessoas e por isso existem diferenças enormes no interior da China. E não é fácil fazer julgamentos.

Quando decidiu aceitar o papel de Ruyi em Temptress Moon?

Foi quase um acaso. Ou um destino profético, porque foi uma «tentação» também para mim. Propuseram-me no último momento, com as gravações já iniciadas, depois que uma atriz de Taiwan tinha decidido não continuar. Sabe que os críticos chineses compararam Temptress Moon com O vento levou ?

Ah, e por quê?

Não pelo conteúdo. Pela escolha dos atores. Chen viu dezenas de atores para o meu papel, assim como para O vento levou foi descartada uma atriz depois da outra antes de escolherem Vivian Leigh para o papel de Scarlett O'Hara. Assim, eu cheguei com o filme já iniciado. E não foi fácil. Queriam que interpretasse um personagem completamente diferente daqueles que faço habitualmente: aqui devo ser uma garota rica e viciada.

Hoje, o cinema chinês atravessa um momento mágico. Mérito de diretores como Kaige e de atores como você. Mas também de nomes como John Woo ou Ang Lee, que trabalham em Hollywood .

Penso que a razão esteja no fato que os diretores chineses unem uma técnica cinematográfica irrepreensível àquele fascínio e ao estilo únicos que pertencem à nossa cultura.

Como começou a representar?

Absolutamente, por acaso. Quando eu era pequena, gostava de cantar. Um dia, o meu professor de canto me disse para ir com ele ver as gravações de um roteiro para a televisão em Shandong. A diretora era uma mulher, me lembro. Quando me viu, decidiu que tinha que fazer uma parte, assim me deu para ler o roteiro. Era uma pequena parte. Mas ela disse que eu era uma atriz nata. Disse assim para a minha mãe: «Sua filha deve ser atriz». Conseguiu convencê-la e depois de dois meses entrei na escola de atuação de Pequim. Estudava duro, me lembro, comecei a fazer pequenos papéis e depois...

Você vive entre Pequim e Hong Kong. E os jornais falam da sua nova história de amor com um homem de negócios de Hong Kong. Pensa em se transferir definitivamente para lá?

Não creio. Gosto de Hong Kong porque é frenética. E é bom para fazer compras. Mas a acho aborrecida. Pequim é diferente. As pessoas se encontram pelas ruas e falam com você, conversam. Em Hong Kong, pensa-se só em fazer dinheiro.

O interesse da imprensa pela sua vida particular a incomoda?

Penso que seja inevitável. É, principalmente, a imprensa asiática que escreve com frequência coisas desagradáveis ou inventadas. Os jornais ocidentais são mais corretos.

 

Na China também é importante ser bonita, para uma atriz?

Você acha que eu sou bonita?

No Ocidente, é considerada um símbolo sexual .

Bem, isso me deixa satisfeita. Eu, porém, não me sinto um símbolo sexual. Talvez, possa representar a personalidade ou o fascínio da mulher chinesa, que são tão diferentes das mulheres ocidentais.

Que projetos têm para o futuro?

Gostaria de me casar e ter filhos, penso que a família seja muito importante na vida de uma mulher. E sem uma família, não se pode levar no próprio trabalho a verdade de cada dia.

E os projetos cinematográficos?

Por enquanto, não. Estou lendo muitos roteiros, mas não encontro nada que me convença. Não acho que se deva aceitar um papel só para fazer alguma coisa.

Trabalharia com um diretor ocidental?

Se tivesse uma parte adequada para mim, adequada a uma mulher chinesa, por que não?

Existe um italiano com quem gostaria de trabalhar?

Claro, Bernardo Bertolucci!

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Ingrid Betancourt

A apaixonada dos Andes

Cara Dina, eis a parte com box a seguir. Espero que tudo esteja bem. Hoje (segunda, 11) tomarei o avião de Tóquio para Buenos Aires, onde chegarei amanhã, 12 de fevereiro. Daí em diante, poderei ser encontrado no satelitar, mesmo nos dias de “navegação” antártica. Estarei de novo na Argentina por volta de 24 de fevereiro, depois seguirei para Bogotá, onde terei que encontrar a Bentacourt nos primeiros dias de março.

Faça-me saber se lhe interessa.

Até logo

Marco

Com este e-mail, que encontrei em um velho computador, no início de fevereiro de 2002 escrevia para Dina Nascetti, uma das minhas chefes no Espresso, para informá-la dos meus movimentos. Tinha estado no Japão para uma reportagem sobre o túmulo de Jesus [1] e me preparava para enfrentar uma longa viagem, que me teria levado para longe de casa por quase dois meses. O destino final era o limite geográfico extremo: a Antártida.

Ao longo da estrada, previa uma parada na Argentina, para uma reportagem sobre a gravíssima crise econômica que assolava o país sul americano naqueles meses e depois, no caminho de volta, a Colômbia, onde deveria ter que entrevistar Ingrid Betancourt Pulecio, a política colombiana e militante dos direitos humanos. Na realidade, cheguei alguns dias antes do previsto em Bogotá. E foi - pelo menos para mim - uma sorte. Encontrei a Betancourt no dia vinte e dois de fevereiro e, exatamente, vinte e quatro horas depois enquanto viajava de carro para Florença, Ingrid Betancourt desapareceu no nada, pelos lados de San Vicente del Caguan. Sequestrada pelos guerrilheiros das farc , foi mantida como refém por quase seis anos.

Se tivesse chegado na Colômbia só no dia depois, nunca a teria encontrado.

*****

Os cabelos castanhos soltos sobre os ombros. Os olhos escuros, de verdadeira colombiana. No pulso, uma pulseira de âmbar. E os lábios que não sorriem quase nunca.

Tem poucas ocasiões para sorrir Ingrid Betancourt, quarenta anos bem cuidados, cinquenta quilos bem distribuídos em um metro e setenta, hoje candidata ao incômodo cargo de presidente da República do país mais violento do mundo, a Colômbia. Um lugar onde todos os dias se contam em média setenta homicídios. Onde, há quarenta anos, se combate uma guerra que desde 1990 até hoje fez trinta e sete mil vítimas civis. Onde são sequestradas, mais ou menos, dez pessoas a cada vinte e quatro horas. Um país que se orgulha do recorde de primeiro produtor no mundo de cocaína e do qual, nos últimos três anos, fugiu mais de um milhão de pessoas.

Entretanto, não se passaram muitos anos desde quando a mesma mulher que hoje se senta em frente a mim, em um anônimo apartamento super secreto e super blindado no centro de Bogotá, colete a prova de balas e olhar nervoso, sorria serena, deitada em uma praia das Seychelles, sob o olhar indulgente do padre Gabriel de Betancourt, diplomático francês belo, culto e inteligente, enviado para trabalhar naquele canto do paraíso depois dos anos difíceis passados na Colômbia.

Exatamente vinte e quatro horas depois desta entrevista, enquanto viajava para Florença, Ingrid Betancourt desapareceu, pelos lados de San Vicente del Caguan, no limite da área mais avançada de penetração das tropas colombianas contra os rebeldes da farc . Junto a ela, desapareceram uma cinegrafista e um fotógrafo franceses que a acompanhavam para documentar a sua arriscada campanha eleitoral. E tudo deixa pensar que se trata de um rapto.

Uma representação dramática que, paradoxalmente mas não demais em um país cruel como a Colômbia, «aumenta de vez as possibilidades da sua eleição», como observa pragmaticamente um que entende de acontecimentos colombianos, Gabriel Marcela, professor na Escuela de Guerra.

Ingrid Betancourt Pulecio, tinha voltado para este inferno, espontaneamente. E não ao ocaso da vida mas, com trinta anos, em 90.

Ex-deputada, atualmente senadora, funda um partido que se chama Oxigeno Verte , «para levar ar limpo para a política colombiana, doente de corrupção», explica séria. O slogan diz: «Ingrid es oxigeno». E na foto, está ela, com uma máscara antipoluição e calças coloridas. Com cento e sessenta mil preferências, é a mais votada do País. Ninguém porém, talvez, falasse hoje dela se não fosse pela autobiografia que sai exatamente nestes dias também na Itália. O título não deixa dúvidas sobre o caráter da autora: «Provavelmente amanhã, irão me matar».

Um tanto teatral, talvez?

«A edição francesa se intitulava La rage au coeur – La rabbia nel cuore » ela se defende. «Mas os editores italianos queriam um título mais forte, assim escolhemos este. De resto é assim que me sinto e é isto que penso todas as manhãs, quando me acordo e todas as noites, antes de adormecer. E não acho que existe nada de especialmente heroico. A probabilidade de ser mortos amanhã é uma perspectiva muito real e muito presente para uma grande parte da população deste país».

Os jornais a descreveram quase como uma santa. Paris Match a chamou “A mulher na mira”. Libération “Uma heroína”. Le Figaro , “A Apaixonada dos Andes”. Le Nouvel Observateur escreveu que «se Simon Bolívar, o libertador da América Latina, tivesse podido escolher um herdeiro para ele, a teria escolhido».

Os jornais colombianos, em vez disso, zombaram dela um pouco. A Semana , primeiro jornal semanal de informações do País, a colocou na capa com o título “Juan de Arco” (Joana D'Arc) e uma fotomontagem onde aparece na versão de Donzela de Orleans, cavalo, armadura e lança em riste. Na realidade, o livro é muito mais comedido e seco do título que leva e nas suas críticas. Ingrid não esconde ser uma privilegiada. Filha da elite, conservou certos luxos: andar a cavalo uma vez por semana em uma fazenda, colocada à disposição por amigos, por exemplo.

De resto, porém, as ideias não lhe faltam, e não tem papas na língua para exprimi-las. «A farc , Fuerzas Armardas Revolucionarias de Colombia, primeiro grupo guerrilheiro do país, em 1998, de acordo com cálculos prudentes, podia contar com financiamentos anuais iguais a trezentos milhões de dólares, na maioria proveniente dos “financiamentos” de narcotraficantes e das rendas dos sequestros de pessoas e das extorsões. Hoje sabemos que podemos contar com um valor anual que chega quase a meio bilhão de dólares, enquanto os seus quadros passaram de quinze mil a vinte e um mil. Esta situação» ele explica, «coloca o estado colombiano em uma situação de total desnível de forças nos confrontos da guerrilha. Para obter resultados decisivos calculamos que o governo deveria poder colocar em campo de três a quatro militares bem treinados para cada guerrilheiro, enquanto hoje pode ao máximo mobilizar uma proporção de um, no máximo, dois soldados para cada membro da farc . E tudo isso com um esforço econômico que, ainda, para o meu país, é quase sobre-humano. Calcula-se que desde 1990 o custo da repressão quase que foi decuplicado. E, se no início, representava um por cento do produto interno bruto, hoje supera a cota de dois por cento e alcançou, afinal, o astronômico valor de mil milhões de dólares norte-americanos».

Uma exaltada, como a descrevem os seus inimigos ou uma mulher que quer fazer alguma coisa para o seu País, como diz ela? Os círculos da política em Bogotá esnobam da sua candidatura. Mas, lá no fundo, a temem. Omar, o chefe dos seus gorilas, diz: «Neste país, quem é honesto arrisca-se pagar com a morte.» E ela responde: «Não tenho medo de morrer. O medo a torna mais aguçada».

O primeiro ponto da sua campanha eleitoral é a luta contra a corrupção. O segundo, há a guerra civil: «O Estado deve tratar com os guerrilheiros de esquerda sem sujeições», conclui «tomando distância das AUC, os paramilitares de direita, que são responsáveis pela maior parte dos homicídios no País».

Mas como se faz para conviver todos os dias com as ameaças e o medo?

«Talvez se torne também este um hábito. Um hábito horrível. Outro dia» conclui tranquila, «abrindo a correspondência, encontrou a foto de um menino esquartejado. Embaixo, estava escrito: “Senhora senadora, para a senhora, os assassinos já os pagamos. Para o seu filho, reservamos um tratamento especial…”».

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Aung San Suu Kyi

Prêmio Nobel da Paz 1991

Livre do medo

No dia seis de maio de 2002, em seguida às fortes pressões da onu , foi liberada Aung San Suu Kyi. A notícia rodou o mundo, mesmo se a sua liberdade foi de breve duração. Em trinta de maio de 2003, enquanto estava a bordo de um trem com muitos apoiadores, um grupo de militares abriu fogo massacrando muitas pessoas e foi só graças à prontidão de reflexos do seu motorista o Kyaw Soe Lin que Aung San Suu Kyi conseguiu se salvar, mas foi de novo colocada em prisão domiciliar.

No dia depois da sua liberação de maio de 2002, através de alguns contatos que tinha com a dissidência birmanesa, conseguiu fazer-lhe chegar uma série de perguntas para uma entrevista “à distância” via e-mail.

*****

Às dez da manhã de ontem, silenciosamente, os guardas que estacionavam em frente à residência de Aung San Suu Kyi, líder da dissidência democrática birmanesa, voltaram ao seu quartel. Assim, com um movimento de surpresa, a junta militar de Rangoon revogou as restrições à liberdade de movimento da líder pacifista, “a Senhora” como a chamamos simplesmente na Birmânia, prêmio Nobel da Paz em 1991, em prisão domiciliar do distante vinte de julho de 1989.

Das dez da manhã de ontem, então, depois de quase treze anos, Aung San Suu Kyi está livre para sair da Casa no lago, de se comunicar com qualquer pessoa, de fazer política, de ver os seus filhos.

Mas, realmente acabou o terrível isolamento da “apaixonada birmanesa”? A oposição no exílio não acredita ainda às altas declarações da junta militar que declarou liberá-la sem condições.

 

Incrédulos, os exilados birmaneses esperam. E rezam. Desde ontem, de fato, a diáspora birmanesa convocou manifestações de orações em todos os templos budistas da Tailândia e da Ásia Oriental.

Ela, a Senhora , assim que voltou em liberdade não perdeu tempo. Alcançou logo de carro o quartel geral do seu partido, aquela Liga nacional pela democracia ( lnd ), que nas eleições de 1990, obteve uma esmagadora vitória (oitenta por cento dos votos), enquanto o Partido do governo da unidade nacional se adjudicou apenas dez cadeiras de 485. O governo militar anulou o resultado das eleições, proibiu as atividades da oposição, reprimiu violentamente as manifestações das praças e os líderes da oposição foram presos ou exilados. O parlamento nunca foi convocado.

A edição italiana da sua autobiografia se intitula “Libera dalla paura”. Sente-se assim, agora?

Agora, pela primeira vez há mais de dez anos, me sinto livre. Fisicamente livre. Livre principalmente para agir e pensar. Como explico no meu livro, são muitos anos afinal que me sentia "livre do medo". De quando tinha entendido que os abusos de poder da ditadura aqui no meu país podiam nos ferir, humilhar, até nos matar. Mas não podiam mais nos amedrontar.

Hoje, assim que foi libertada, logo declarou de não ter sido submetida a condições e que a junta militar no poder a autorizou a ficar também no exterior. Acredita nisso realmente?

Um porta-voz da junta, em um comunicado por escrito anunciado ontem à noite, anunciou a abertura “de uma nova página para o povo de Myanmar e para a comunidade internacional”. Nos últimos meses, foram liberados centenas de prisioneiros políticos e os militares me garantiram que continuarão a liberar aqueles que - eles dizem – «não representam um perigo para a comunidade». Todos aqui querem acreditar, querem esperar que isto seja realmente o sinal da mudança. A retomada daquele caminho para a democracia interrompida bruscamente com a violência com o golpe de Estado de 1990. Mas nunca esquecida no ânimo do povo birmanês.

Agora que foi liberada, não teme ser expulsa, afastadas pelos seus sustentadores ?

Deve ficar claro que eu não irei embora. Eu sou birmanesa, renunciei à cidadania britânica exatamente para não oferecer desculpas ao regime. Não tenho medo. E isso me dá força. Mas o povo tem fome, por isso tem medo e assim se torna fraca.

Você, por mais vezes e com força, denunciou as intimidações dos militares contra os simpatizantes da Liga para a democracia. Tudo isso continua ainda hoje?

De acordo com os dados em nossa posse, só em 2001 o exército deteve mais de mil militantes da oposição por ordem dos generais do slorc . Muitos outros foram obrigados a demitir-se da Liga depois de ter sofrido intimidações, ameaças, pressões ilegais para as quais não existe nenhuma justificação. A estratégia de ação é sempre a mesma, capilar: unidade de funcionários estatais espalhados em todo o território nacional vão “porta à porta” para as casas pedindo aos cidadãos para deixar a Liga . As famílias que se negam são chantageadas com o espectro da perda do trabalho e, com frequência, com ameaças explícitas. Muitas seções do partido foram fechadas e todos os dias os militares controlam o número de quantos se demitiram. Isto demonstra quanto medo ele têm da Liga . A esperança neste momento é, para nós todos, que tudo isso tenha realmente acabado.

A virada de hoje, o acontecimento da sua liberação, a colheu de surpresa ou se tratou de algo atentamente preparado e estudado pelos militares por questões de “imagem” internacional?

De 95 até hoje, o isolamento da Birmânia pouco a pouco se desfez, o Ateneu de Rangoon foi reaberto e talvez o nível de vida melhorou levemente; mas a história da Birmânia continua a se desenvolver no quotidiano feito de violências, ilegalidades e abusos tanto contra os dissidentes quanto contra as minorias étnicas (Shan, We, Kajn) na busca de autonomias e, em geral, contra a maior parte da sua população. Os militares estão sempre mais em dificuldades, tanto no plano interno quanto naquele internacional. Neste ínterim, continuam a traficar droga, a menos que não consigam substituir esta rentável fonte de renda com uma outra, igualmente lucrativa. Mas qual? A nação é praticamente um imenso cofre do qual só o exército conhece a combinação. E não será fácil convencer os generais a dividir esta riqueza com os outros cinquenta milhões de birmaneses.

A este ponto, quais são as suas condições para começar o diálogo ?

Não aceitaremos nenhuma iniciativa - fala-se também de eleições convocadas pelos generais - até que seja reunido o Parlamento eleito em 90. O meu País continua dominado pelo medo. Não haverá paz verdadeira até que não existirá um verdadeiro empenho que honra todos aqueles que lutaram por uma Birmânia livre e independente, mesmo se com a grande consciência que paz e reconciliação não possam ser alcançadas uma vez por todas e por isso é necessária uma vigilância sempre mais atenta, maior coragem e a capacidade de desenvolver em nós mesmos a verdadeira resistência ativa e não violenta.

O que pode fazer a União Europeia para ajudar o povo birmanês?

Continuar a fazer pressão, porque os generais devem saber que o mundo olha para eles e que não podem cometer impunemente outros atos vergonhosos.

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Finalmente, no dia treze de novembro de 2010, Aung San Suu Kyi foi definitivamente solta. Em 2012, obteve uma cadeira no parlamento birmanês e no dia dezesseis de junho do mesmo ano, pode receber o prêmio Nobel pela Paz. Como o governo lhe concedeu finalmente a permissão de ir para o exterior, foi para a Inglaterra, para se encontrar com o filho que não via há anos.

Em seis de abril de 2016, se tornou Conselheira de Estado (Primeira Ministra) de Myanmar.

A Birmânia, hoje Myanmar, não é ainda um país completamente livre e o passado ditatorial pesa na história e no futuro da nação. Mas algo mais de uma esperança de liberdade e democracia se abriu afinal no país dos Mil Pagodes.

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