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O MEU REWOLVER

Em dezembro. O sol morria depois de curta vida. A tarde era fria e o vento cortava.

Triste, cansado, depois de um dia inutil, voltava para casa silenciosamente, mastigando um charuto insupportavel.

Pesava-me como cruz de ferro a ociosidade que não pudéra combater.

A melancolia apoderára-se de mim. Envolvia-me a alma como que n'um lençol humido e frio.

Bandos de operarios voltavam do trabalho alegres, socegados, interrompendo com cantigas de fado as conversações politicas.

Irritou-me a alegria d'elles.

Eu caminhava de cabeça baixa; mas só mal definidos pensamentos se atropellavam no meu espirito, sem razão, como succede nos sonhos inquietos.

Vagas saudades do passado, desejos mal definidos de outro tempo… Tudo triste, triste.

***

Subi a escada ingreme, que levava ao meu quarto andar, e achei-me em casa, sem quasi me lembrar do caminho que seguira.

Os ultimos raios do sol entrando pela janella entreaberta morriam, faltos de forças, allumiando fracamente uns velhos retratos de familia, immoveis, havia muito, nas molduras carunchosas.

Estava só.

Ainda bem.

Puxei de uma cadeira e sentei-me á janella, resolvido a esperar com paciencia a noite, que ao mesmo tempo desejava e temia.

A atmosphera era humida e pesada.

Na rua havia profundo silencio.

O occidente, carregado de nuvens negras, orladas por uma franja dourada, parecia o panno enorme d'um caixão de gigante.

As nuvens cresciam impellidas pelo vento da barra, ameaçando breve toldar o céu.

Luziu a primeira estrella.

Contemplei-a com amor, lembrando-me de que ainda ninguem áquella hora tivesse dado por ella. Estaria talvez no ceu brilhando tão só para mim.

E senti não sei que satisfação intima com aquella idéa: para mim só!

Puz-me a contemplal-a com amor, a falar-lhe como um poeta; e ella consolou-me, e, durante toda aquella tarde, foi este o unico momento em que tive amor á vida.

Um empregado do gaz passou pela rua accendendo os candieiros e assobiando uma polca.

Ouvi uma voz por cima da minha cabeça.

– Menina Maria! Menina Maria!

Era o meu vizinho da trapeira, um empregado de uma casa de penhores, feio, bexigoso e rachitico.

– Está o gaz acceso. São horas de começarmos a conversar.

N'uma janella do outro lado da rua appareceu a cabeça pallida de uma rapariga, que de dia namorava o boticario e de noite conversava com o bexigoso.

– Muito boas noites.

A menina Maria começou a fazer-lhe signaes querendo dizer, creio eu, que addiasse para mais tarde as declarações de amor, não fosse eu ouvil-as.

– O que? perguntava o bexigoso. Não percebo. É pena estar o tempo de chuva.

– É pena, é! Pouco poderemos conversar. D'aqui a pouco… Olhe, não vê? Estão as nuvens quasi tapando aquella estrella.

E apontou para a estrella, que fôra até ali o meu enlevo.

Dei um murro no parapeito da janella e fechei-a desesperado.

***

A nuvem negra, para provar que o bexigoso não era tolo de todo, deixou cahir como prologo de maior chuveiro, uns poucos de grossos pingos de agua, que vieram bater tristemente nos vidros da janella.

Accendi o velho candieiro de azeite e recostei-me n'uma poltrona de oleado, onde dei largas aos merencorios pensamentos.

Decididamente odiava a vida.

E que me prendia a ella? Fôra uma cadeia de oiro a d'outros tempos, mas viera a desgraça quebrar-lhe, um a um, os elos todos.

– A morte!

E machinalmente puxei do rewolver.

Era uma joasinha americana, bonita, de systema engenhoso, com fechos de prata, que me saira n'um bazar de caridade.

– Eis o remedio para quantos males se soffrem no mundo, pensei. Uma pouca de coragem, um pequenissimo movimento… e nada mais é preciso.

Comecei a brincar com o gatilho.

– De que serve uma vida a que póde dar fim coisa tão pouca?

E, como para convencer-me de que não havia nada mais facil, approximei da bocca o cano do rewolver.

E vi que tinha medo e que me repugnava a morte.

Lembrei-me do frio da terra e do contacto da carne com os corpos frios e molles dos bichos nos cemiterios. E requintei na fantasia as sensações da longa fileira dos rigidos cadaveres, que via dormindo na valla commum o somno doloroso da morte.

Passou-me um calafrio pelo corpo, ergui-me, levantei a golla do casaco e comecei a passear pelo quarto.

Os velhos retratos mettidos na sombra da bandeirola pareceram-me espectros.

Um sobre todos, lembra-me, causou-me horror extranho, n'aquella noite.

Era um conego velho, gordo, sem barba, com uma corôa de cabellos grisalhos em torno d'uma calva lisa e amarella. Tinha uns olhos azues, pequeninos, que se fitavam na gente para onde quer que se fugisse.

Quando eu era pequeno, tinha um dia virado o conego de cabeça para baixo, para ver se assim parava a perseguição do seu olhar. Meu avô, que n'aquelle momento entrara no quarto, ralhou muito commigo, que fôra uma falta de respeito, que o conego era meu tio, que fôra homem de muito saber e que até compuzéra uma grammatica latina com a prosodia em verso.

E eu, que detestava a prosodia e o latim, comecei desde logo a detestar o tio.

N'aquella noite pareceu-me que os olhos azues e pequeninos scintillavam, phosphorescentes.

Recuei com um calafrio, procurando fugir ao pesadêlo.

E os seus olhos pequeninos, azues, phosphorescentes continuaram a seguir-me com pertinacia.

Passei a mão pela testa e trouxe-a humida de suor frio.

Dei volta á bandeirola do candeeiro e, cheio de falsa coragem, approximei-me do retrato.

Estava louco!

– Sou um cobarde! Tenho a cobardia d'uma criança, pensei.

Fui ao armario de páo preto, envidraçado, onde tinha uma garrafa com um resto d'absintho.

Um caruncho, com aquelle ruido monotono e compassado, que tanto se ouve nas casas velhas, incumbira-se da agradavel tarefa de esfarelar uma prateleira.

E eu sentia dentro em mim uma tempestade! E se me tivesse suicidado, se junto d'aquelle armario se houvesse passado um drama horrivel, elle teria placidamente, com a maior indifferença, continuado a morder voluptuosamente a madeira resequida, em sua obra de destruição.

Abri a garrafa. Bebi sofregamente.

Pela segunda vez approximei da bocca, voltando as costas ao conego, o cano do rewolver.

Senti abrir-se a janella do bexigoso e ouvi-lhe a voz esganiçada:

– Menina Maria! Parou a chuva.

Salvou-me a vida. Escutando-o, quiz despedir-me da voz humana. No curto momento, em que o meu antipathico visinho levou a dizer aquella phrase, entrou-me n'alma o receio.

– Decididamente sou um cobarde, um grande cobarde! Preciso beber.

E sahi, mettendo o rewolver na algibeira.

***

Pela segunda vez na vida o bexigoso falára sem dizer tolice. Effectivamente cessára a chuva, e apenas umas nuvens brancas, com grandes manchas d'uma côr mais carregada, formavam castellos fantasticos, entre os quaes corria a lua a toda a brida.

Ao dobrar d'uma esquina encontrei um amigo.

– Aonde vais? disse-me. Até S. Carlos?

Pareceu-me offensa a pergunta e estive para responder-lhe:

– Não, vou matar-me.

Mas não quiz. Dizer-lh'o, para que? Se não podia perceber-me?

– Vou sem destino, disse.

– Já jantaste?

– Ainda não.

– Jantemos juntos n'esse caso.

E deu-me o braço e começámos a descer a rua.

E eu ia pensando com uma certa alegria no jantar e comecei a ver a morte sob outro aspecto: o suicidio depois de bem comido, numa salla bonita, quente, alumiada fortemente por dois lustres de gaz.

Que differença! Que admirava que me tivesse faltado a coragem n'aquelle quarto frio e humido quando eu estava possuido da tristeza da fome? Frio e fome por toda a eternidade!..

Entrei no hotel cantarolando um bocado da minha opera favorita.

Defronte de nós uns americanos bebiam champagne, veuve Cliquot.

– Grande vinho, o champagne! não achas? disse o meu amigo.

– Magnifico!

– Havemos de vir bebel-o aqui um dia d'estes. É pena não poder ser hoje.

– Porquê?

Não respondeu e córou até ás pontas das orelhas.

E eu achei que para dar coragem nada havia como o champagne.

E puz-me a passar revista a todas as suas boas qualidades, e por fim achei que eram tantas e tantas, que, esquecido da morte… fui pôr o rewolver no prego.

O MIMOSO

– Está frio, dizia elle subindo o Chiado.

Era um homem de quarenta annos, magro, quasi cadaverico, de melenas tão compridas e tão esquecidas de pente que se lhe emmaranhavam nas barbas, de olhos negros, encovados, de olhar obliquo e desconfiado, a luzirem com fome por cima das olheiras papudas.

Era no inverno e elle com a mão ossuda, engrifada apertava contra o peito a sobrecasaca rota, sem botões. Não trazia collete e a camisa era um frangalho. Como se precisa ter gravata para entrar nos passeios, onde não desgostava de ir á tarde apanhar um bocado de sol, trazia um pedacinho de panno azul pregado ao collarinho sem gomma com um alfinete de ferro. As botas rotas, sem tacões, tinham, a tapar-lhes os buracos, camadas sobrepostas de lama secca.

Parou á porta do Baltresqui.

Um janota sentado a uma das mesinhas do café, deante de uma garrafa de Père Kermann, aspirava o fumo aromatico de um charuto pequenino. Passados momentos, tirou o relogio da algibeira, viu as horas, engoliu de um trago as ultimas gottas do calix e, chamando o criado pelo nome, atirou-lhe uma nota de dez mil réis. Quando o criado voltou com o trôco, levantou-se deixando o cobre em cima da mesa.

– Muito obrigado, sr. Visconde, disse o criado, dando-lhe piparotes na manga do sobretudo suja pela cinza do charuto, que o Visconde quebrára na borda da mesa.

 

– É um visconde, observou distrahidamente o homem das botas rotas.

E como o Visconde voltasse para cima, seguiu-o á espera que deitasse fóra a ponta do charuto. Ia apertando a sobrecasaca contra o peito e invejando o casaco do Visconde, comprido, felpudo, de grande golla, que se podia levantar e abrigava as orelhas do frio.

O Visconde subia o Chiado devagarinho, com as mãos nas vastas algibeiras, tirando do charuto abundantes fumaças, com aquelle sorriso de satisfação, que dá a certos parvos de bom estomago a digestão de um bom jantar.

O pobre diabo tinha fome. Almoçára na véspera; depois não tinha comido.

Mas o que mais o apouquentava era o apetite de fumar.

O fumo adormece a fome e expulsa a melancolia. Póde-se dormir, quando se tem um cigarro na algibeira e o fumo de um outro enchendo o quarto. O tabaco é o veneno rei dos venenos, um elixir que mata lentamente, que embriaga, que socega os nervos, que enfraquece a memoria e dá ás pernas uma preguiça deliciosa, que faz achar boa a cama pela manhã, quando o ar está cheio de neblina e na rua afogada em lama se ouvem os pregões e o sussurro dos que teem que fazer, dos que trabalham.

– Por isso Deus que afinal é bom, ia o homem pensando, encheu as ruas de pontas de charuto para os homens e de tallos de couve para os cães, que não fumam, que não teem que esquecer, que são tolos.

Mas a noite estava chuvosa e as pontas de charuto, não se viam, enterradas na lama pelas rodas das carruagens. Por isso seguia o ricaço, ancioso pelo momento em que o charuto havia de cahir espalhando em torno uma chuva de faisquinhas.

O Visconde parava de vez em quando, apertando a mão aos amigos que desciam.

– Então que se faz? perguntavam-lhe.

E elle só encolhia os hombros como resposta áquella pergunta ociosa e tola. O homem notou:

– Pois elle não terá nada, mesmo nada, que fazer?

Comparou-se com o Visconde e sentiu uma certa vaidade. Porque elle trabalhava, fazia alguma coisa. Se lhe perguntassem o quê, talvez não respondesse logo, assim sem pensar, sem examinar um instante com olhar desconfiado o fim com que lhe faziam a pergunta. Ás vezes, quando se levantava, não tinha de comer; era preciso arranjal-o e arranjava-o. Era talvez pouco escrupuloso; isso sim.

– Mas, pensava, para se terem delicadezas é preciso alguma coisa na algibeira.

E isso era raro, muito raro.

Decididamente, se alguém lhe perguntasse:

– Então que se faz? havia de responder como o Visconde, encolhendo os hombros.

Depois, como se toda esta cadeia de pensamentos o tivesse conduzido a uma conclusão certissima, olhou para o janota, a rir-se, com certo ar maganão, e exclamou baixinho, como quem faz uma descoberta:

– Olá!

E, apontando com o dedo pollegar para o Visconde, disse piscando o olho a si mesmo:

– É cá do meus.

Chegado á rua Nova dos Martyres, o Visconde parou um instante, tirou o relogio da algibeira e, approximando-se de um candeeiro, tornou a ver as horas. Esteve um momento como que indeciso sobre o que havia de fazer; por fim dobrou a esquina e dirigiu-se para S. Carlos.

Tirou as luvas da algibeira e começou a calçal-as.

– Quando deitará elle fóra o charuto? pensava o homem.

Mas de repente affirmou a vista e os olhos faiscaram-lhe: o Visconde ao tirar as luvas da algibeira deixára ficar o lenço com a pontinha de fóra.

Contrahiu um pouco as sobrancelhas meditando.

Valeria a pena um lenço? Tinha fome. Aquelle lenço representava talvez a ceia. Seria triste na verdade; o que poderia valer um lenço?

Estendeu o labio inferior.

Era preciso tomar uma resolução.

Ora, adeus! Mais valia do que morrer de fome.

Approximou-se nos bicos dos pés.

Olhou para todos os lados. A rua era deserta.

O coração bateu-lhe um pouco. O Visconde podia sentil-o, defender-se, gritar, e elle iria preso, com fome, e passaria a noite a tiritar de frio, fechado n'um calaboiço.

Animo!

Metteu a mão esquerda por debaixo da aba do sobretudo.

O Visconde cantarolava:

 
C'est q'çá gli…iiis…se.
 

Victoria! O lenço era d'elle!

O homem não tinha sentido nada e acabava a copla:

 
Encore un qui n'l'aura pas
    La timbale
    La timbale.
 
***

Um lenço! Ia finalmente comer. Tinha ganho o dia.

E o lenço era um bom lenço, muito branco, muito novo.

Mirou-o e remirou-o.

Não tinha uma só passagem e era de seda.

Era de seda! Queria dizer que representava talvez mais do que a ceia.

Quanto poderia valer aquillo?

O homem chegou-se a um bico de gaz e poz-se a olhar. De vez em quando, coçava com a unha a aza do nariz, signal certo de duvida.

O Gomes é que lh'o poderia dizer. O Gomes era muito entendido; um pouco ladrão, mas muito entendido.

E já esquecido do Visconde e do charuto, voltou e dirigiu-se para a Calçada do Duque.

A casa de penhores era á esquerda, uma casa pequena, asphixiante, cheia de fato até á porta.

O Gomes estava por detraz do balcão, encostado aos livros, com a sua suissa á ingleza, a caneta atraz da orelha, e o seu sorriso protector.

Um candeeiro de petroleo, com vidro sujo e luz economica, alumiava fracamente as roupas inuteis, que nas prateleiras até ao tecto esperavam tristemente pela traça ou pelo proximo leilão.

Uma guitarra sem cordas pendia de um prego ao lado de uma serra. Do outro lado, o retrato de um bom velho burguez e calvo, com a barba cerrada, ar de pessoa de bem, e um botão d'oiro, quadrado, no peitilho da camisa, sorria com bondosa satisfação para um cacho de botas velhas, que, suspensas do tecto, se lhe baloiçavam a dois palmos do nariz. Tinha valido um dinheirão, valia agora cinco tostões.

O homem parou á porta e poz-se á espreita.

– Muito boas noites, sr. Gomes.

– Olá!

– Dá licença?

Atirou o lenço para cima do balcão.

– Faça favor de ver isso.

E, á espera que o exame do lenço acabasse, entreteve-se a olhar para uma borboleta, que esvoaçava em torno do candeeiro.

O Gomes desdobrou o lenço, sacudiu-o, levantou um pouco a torcida e começou um exame minucioso, palpando, virando e revirando a seda.

– Isto de bordados… Um A e uma corôa.

E o Gomes sorriu-se, esforçando-se por ter um ar intelligente.

– Foi o sr. Visconde que m'o deu para o empenhar, disse o outro, encolhendo os hombros com impaciencia.

– Pois, amigo, diga ao sr. Visconde que isto pouco valor tem. O bordado é bom, o bordado tem valor; mas a quem póde isto servir? Quer trez tostões?

– Traste…! resmungou o homem. Então só vale…? Ó sr. Gomes, olhe que roubar é feio. Faça favor de reparar que é de seda.

O Gomes, desdenhoso atirou com o lenço.

– Dê-me um cruzado e vou-me embora.

– Homem, você parece que não sabe quem eu sou!

E poz doze vintens em cima do balcão.

– Traste! tornou a resmungar o homem, pegando nos doze vintens e encaminhando-se para a porta.

– Quer cautella? perguntou o Gomes com ar de brincadeira, já desmanchando o bordado com o bico d'uma tesoira.

– Nada. Obrigado. O sr. Visconde não me falou em cautella.

E sahiu sempre a resmungar.

***

Poucas horas depois, estava estirado ao pé d'uma sargeta.

Cahia uma chuva miuda e fria e elle sonhava.

Sonhava que tinha roubado um lenço de seda, d'uma seda muito fina, tão fina que nem o Gomes sabia ao principio o que lhe havia de dar pelo lenço. E tinha-lhe dado a loja toda, as botas, a guitarra, o oiro que estava na gaveta do balcão, o dinheiro que estava na commoda, tudo. E elle era rico. Andava de trem e bebia no Baltresqui uma coisa com bolhasinhas a subirem e que fazia saltar as rolhas das garrafas. Os janotas do Chiado tratavam-o por tu e os gaiatos davam-lhe dom. O Visconde era muito amigo d'elle e offerecia-lhe charutos magnificos, que roubava a um estanqueiro muito velho da rua dos Canos. Tinha um sobretudo côr de canella, muito quente e andava de luvas. Morava n'um palacio e tinha na salla o retrato do velho que estava na loja do Gomes, e que era pae d'elle, e do outro lado estava o retrato do outro pae, do que tinha conhecido, do que lhe dava pancadas quando elle era pequeno. E o Gomes vinha pedir-lhe esmola. Estava muito magro. O lenço não era de seda, era de papel. E elle tinha um cão muito grande, com olhos de lume, que mordia no Gomes, e o Gomes chorava.

– Leva arriba!

Um policia de voz aspera accordou-o com um pontapé.

E, como o homem resmungava, metteu-lhe a mão por debaixo dos braços e obrigou-o a levantar-se.

– Marche adeante e nada de cerimonias.

Fôra dia de grande gala e as luminarias morriam nos preguinhos do governo civil.

O homem percebia tudo um pouco vagamente. Sentia-se empurrado e via as luminarias.

Aquillo entristecia-o.

Perguntaram-lhe o nome e ainda teve forças para murmurar com voz avinhada:

– Francisco Antonio, o Mimoso.

***

Quando, pela madrugada, acordou, cheio de frio e de fome, metteu a mão tremula na algibeira das calças e murmurou com voz triste e arrependida:

– Fiz mal.

E depois d'um instante de reflexão:

– Devia ter comprado um massinho de cigarros.

GRI-GRI 1

Ao longe, para as bandas de Santos, começavam a apagar os candeeiros. Uma neblina baixa espalhava-se sobre o Tejo, mas no céu, atravez do nevoeiro, brilhava, muito fria, a estrella da manhã, e a lua, como um saveiro de prata, de proa e poppa recurvadas, empallidecia pouco a pouco. Os montes da Outra Banda estampavam confusos no céo embaciado os contornos gigantescos, e no fundo escuro mal se distinguiam as grandes massas negras dos navios. Occulto n'um monte de pedras, um grillo cantava distrahido: —gri, gri, gri, gri…

O homem vinha d'aquelles lados do Caes do Sodré. Parecia bastante fóra de si; cambaleava por excesso de cançaço; muito pallido, com o fato em desalinho, o chapéo de palha, amolgado, deitado para a nuca. Parava repentinamente, de quando em quando, como em frente de um obstaculo invencivel, e limpava com as costas da mão as bagas de suor escorrendo-lhe sobre a testa das melenas desgrenhadas, que então sacudia para traz com um gesto violento da cabeça. Seguia aos SS, machinalmente, ao acaso, para onde as pernas o levavam. As abas do casaco desabotoado, onde batia com os braços a dar, a dar, faziam-o parecer na sombra, quando passava junto dos candeeiros, um grande morcego ferido a querer esvoaçar. Vinha de dentes ferrados, olhar fixo, olheiras pisadas.

Já se ouviam os barulhos antipathicos do amanhecer na cidade. Recolhiam as carroças dos varredores, e na Praça D. Luiz dois empregados, mudos e somnolentos, limpavam as sargetas do passeio. O homem dos candeeiros vinha-se approximando, fazendo tinir os vidros, ao cahirem depois da luz apagada. Para aquelles lados apenas ficou luzindo uma lanterna moribunda n'uma barca de banhos. Um homem em mangas de camisa, que dormira toda a noite em cima d'um banco, espreguiçou-se muito, dobrou os joelhos, tornou a esticar as pernas e depois, rodando sobre o centro, sentou-se de repente, tirou o barrete, coçou desesperadamente a cabeça. Uns operarios, com o fardel em lenço de chita na ponteira do guarda-chuva, passaram apressados. Por todos os lados, na cidade alta, em roda da Praça e nas capoeiras dos terceiros andares, estrugiam cantos de gallos, roucos e solemnes, conquistadores e desafinados.

O homem, que até então seguira pelo meio da rua, approximou-se do passeio. O outro acabara de coçar-se e, como a manhã estava humida, enterrara o barrete até ás orelhas e, de braços cruzados, muito chegados ao peito, fazia, para aquecer, o gesto de quem emballa uma criança. Levantou-se depois e foi para o caes gritar muito prolongadamente – «Ó compadre…! Ó compadre…! Ó compadre…!» Lá de longe, d'uma fragata, responderam-lhe: – «Eh! ti'Zé…!» O homem dos candeeiros passou, e, como o ti'Zé se levantára, o outro sentou-se sem dar por isso, no mesmo banco, perto d'onde o grillo continuava distrahido: —gri, gri, gri, gri…

Parecia muito afflicto, em grande desespero, relanceando em redor os olhos, sem fixar a vista em nenhum objecto, como se apenas pudesse olhar para a sua desgraça. Tirou o chapeu, fincou os cotovellos nos joelhos, e com as maçãs das faces sobre os punhos cerrados, arrepelou as barbas para cima dos olhos. Olhando tristemente para o chão, todo curvado, vinham-lhe estremecimentos nervosos, que lhe percorriam rapidos o corpo, fazendo-o levantar as pernas, que recahiam com força; tinha no rosto a mascara pallida e feia da tristeza sem consolo; nas olheiras carregadas e nos cantos dos labios uma amargura dolorosa cavára as rugas muito fundas. Respirava alto, murmurando exclamações irritadas d'uma angustia sem remedio, frases sem nexo, cortadas por soluços.

 

Os fios do telegrapho cantavam sem pausa uma doida melopéa triste, emquanto ao longe, já se ouvia um murmurio indefinido de vida a começar. Algumas chaminés principiaram a deitar baforadas negras de fumo, que, não podendo elevar-se na atmosphera humida, alastrava-se sobre o Tejo. E os signaes das embarcações e o reflexo d'elles n'uma grande faxa tremeluzente faziam como que um bordado a oiro no grande véu esfarrapado de gaze luctuoso.

O horisonte branquejava.

Ouviram-se nos navios os tiros frouxos da alvorada e de longe chegaram moribundos uns toques de corneta. Junto ao caes passeava, com modos de avejão na densa neblina, um guarda da alfandega friorento. E o grillo sob as pedras continuava distrahido: —gri, gri, gri, gri…

O homem ergueu-se n'um impeto, como quem toma uma decisão inabalavel contra argumentos. Cambaleando, arrastando-se, approximou-se do caes. Pequeninas vagas marulhavam docemente e lá do fundo subia um frio humido, desagradavel, frio de morte. Então poz-se a fitar os olhos nas aguas e, como se ellas lhe cantassem uma canção muito meiga, como se ouvisse a voz da melhor amiga, sorriu-lhes desvanecido, mais tranquillo, já quasi convalescente da longa noite de exaspero. Duas grossas lagrimas correram-lhe pelas faces macilentas, o peito oppresso ergueu-se alto, e elle respirou fundamente, passou as mãos pela cara. Pouco depois, preso de pavor medonho, abalou, sem querer olhar para traz, com gestos doidos, d'olhos esbogalhados, chapéu na mão, melenas erriçadas.

E, passados instantes, estava outra vez junto do caes, parado, meditando, com os olhos fitos na agua.

O Tejo accordára. Do lado do Barreiro surgiam umas velasitas brancas e rio abaixo singrava, orgulhosa, uma grande fragata de vela avermelhada, com uma ancora pintada de negro no panno, projectando na agua immovel como grande placa oleosa, uma imagem tremida, enorme, cortada por uma linha de espuma. Em terra começavam a definir-se certos sussurros. Rangiam portas de tabernas, passavam peixeiras correndo, um guarda nocturno batia fortemente á porta d'um armazem, ouviu-se um despertador no interior d'uma casa. O ceu, muito branco havia pouco, tornara-se côr de laranja. A neblina erguera-se e o fumo das chaminés subia a prumo, alargando-se no alto, como um penacho de porta machado.

Então o homem decidiu-se e de braços para a frente, atirou-se ao rio – Chap! – O benemerito guarda d'alfandega, o 72 por signal, atirou-se atraz do homem.

E, quando seguia para a esquadra, acompanhado pelo guarda que gesticulava muito, entre dois soldados da guarda municipal, encharcado, sujo, envergonhado, arrependido, tranzido de frio, o grillo continuava distrahido sob as pedras: —gri, gri, gri, gri…

***

Ora isto não quer dizer nada; mas então porque foi que só n'essa occasião é que elle embirrou com o grillo que fazia gri, gri?

1Variante em verso, publicada pela livraria Popular