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PERDIDO

Quando ouviu ao longe, no campanario da freguezia, bater meia noite, entreabriu de mansinho a porta da choupana e escutou por longo tempo. Nem um sussurro!.. Tudo dormia áquella hora.

Saiu e, pé ante pé, com a enxada ao hombro, approximou-se da aldeia, que tinha de atravessar.

Tudo era em silencio; apenas, muito ao longe, junto á fonte, uma rã solitaria coaxava tristemente.

A lua no minguante alumiava com uma serenidade triste umas trinta ou quarenta casas, dispostas no fundo do valle, ao acaso, entre os choupos da beira do riacho e os ultimos pinheiros da matta, que descia pela encosta em pujante vegetação sombria.

Pelas fendas das portas mal cerradas, ouvia-se por vezes o profundo ressonar compassado dos homens de trabalho. Então parava de ouvido á escuta, olho á espreita, com um pé para deante, o outro para traz, posto de bico, prompto para a retirada. E, quando tudo outra vez cahia no primitivo silencio, tornava a caminhar devagarinho, sempre cauteloso, sobresaltado, de olhar desconfiado, como se fosse commetter um crime.

Grossos rolos de nuvens pardacentas, com largas nodoas escuras, onde a lua, n'uma carreira seguida, mergulhava enchendo o campo de trevas, começaram deixando cair grossos pingos d'agua sobre a rama dos pinheiros.

O vento soprava rijo do sul e toda a serra soltava gemidos dolorosos, fantasticos, em meio do sussurro da folhagem.

Á medida que a encosta se ia elevando, cerrava-se mais e mais o pinhal. A chuva engrossára, e por entre as ramas mal coava um ou outro raio de luar, iriando, como perolas transparentes, as gottas d'agua, que tremeluziam no extremo das agulhas.

Era no alto da serra que o seu thesoiro junto pouco a pouco, desde tantos annos, fôra escondido. Vinha augmental-o n'aquella noite, vinha palpal-o, tomar-lhe o peso, tendo como unicas testemunhas de prazer tamanho o céo de temporal e os pinheiros a gemerem.

***

Subitamente estacou. Na clareira, ao meio do pinhal, era a choupana do guarda. Ouvira um chôro de criança e uma voz triste de mulher a cantar.

O avarento approximou-se pé ante pé.

– É fome que o pequeno tem, dizia a mulher com a voz cheia de lagrimas, interrompendo o canto. Se eu não comi!.. Seccou-se-me o leite.

E chorava.

Aquella mulher pedira-lhe esmola na vespera. Pedira-lhe esmola!.. Tinha fome, dizia. E elle?.. Tinha frio. E elle? O filho definhava-se, desde que o marido d'ella adoecêra. Pedira-lhe esmola, como se lhe fôra possivel, a elle, dar um pedaço da sua alma. Era idiota a mulher!

Mas ao som d'aquella voz estremeceu, porque ella, doida, offendida pela recusa, desgrenhada, d'olhos injectados, chamára-lhe ladrão, assassino, pondo-lhe os punhos cerrados ao pé da cara.

– Hão de tudo roubar-te um dia, e tu, cão, has de chorar, em cima da cova onde escondeste o dinheiro, esfregando a cara na lama… ladrão!

E só a idéa de poder um dia ser assassinado, roubado, que vinha a dar na mesma, fez-lhe passar pela espinha um calafrio, que lhe erriçou todos os pelinhos do corpo.

Afastou-se da chóça, para longe afugentar aquella idéa soturna; mas poucos passos andára, quando lhe pareceu ouvir o rachador, com uma voz fraca de tisico, entrecortada pela tosse, pronunciar-lhe o nome.

Novamente estacou e ficou-se boquiaberto, respirando a custo, de ouvido á escuta, sentindo bater accelerado o coração.

Calára-se tudo na chóça e apenas por vezes o vento arrastava pelo pinhal fóra uns tristes gemidos de criança, já falta de forças e farta de soffrer.

Tentariam aquelles roubal-o?

E estremecendo, cheio de susto, deitou a correr pelo pinhal fóra, deixando o vento levar-lhe o chapéo esboracado e remoinhar-lhe nas longas farripas grisalhas, largando aos bocados nos tojos e nas silvas os tristes farrapos que o cobriam, escorregando na caruma, agarrando-se aos pinheiros, que sacudidos o encharcavam, a correr, a correr por ali fóra, até ao alto da serra, onde se deixou cahir extenuado ao pé d'um enorme pinheiro manso, sêcco, que sobre um rochedo escalvado atirava para o ar os longos braços de espectro.

Era ali o seu thesoiro.

***

Longo tempo ficou estirado, de bruços, sobre os fetos humidos, arquejando longamente. Depois, creando animo, mostrando força inacreditavel em corpo tão franzino, com os braços osseos erguendo alto a enxada e deixando-a depois cair com um esforço, que lhe arrancava do peito cavado um gemido a cada enxadada, começou a cavar, a cavar, até que finalmente o ferro bateu de encontro ao ferro.

Então afastou a terra, ajoelhou, debruçou-se com avidez sobre a cova, metteu-lhe dentro as mãos, e, arquejante, fazendo um esforço supremo, com um ah! de victoria, puchou a si o cofre, que, rolando no chão, produziu um som criador do extasis.

Riu-se alto, enlevado. Depois ergueu-se e com a manga da jaqueta limpou o suor que lhe escorria pela testa.

Ali estava o seu thesoiro!.. Seu!

E olhava para o cofre, com ternura, sorrindo-se com uma lagrimasinha no olho, abaixando-se para sopesal-o.

Queriam roubal-o talvez! Abraçava-se ao dinheiro, com o olhar luzente d'uma fera, sentindo nas entranhas uma coragem enorme para defendel-o, como nunca loba defendeu um filho.

Podia alguem ter desconfiado do logar onde o escondêra… Era muito noite ainda teria tempo de sobra para leval-o d'ali. Felizmente não lhe escasseavam forças. Querido thesoiro da sua alma, junto moeda a moeda!

E, outra vez deitado sobre o cofre, abraçava-o, beijava-o, como se outra alma lá dentro houvesse de perceber a d'elle; pedia-lhe, cheio de ternura que não se deixasse roubar, que era vida, sangue de seu coração!

Os pinheiros humidos tornavam balsamica a atmosphera. Os raios obliquos da lua quebravam as sombras das arvores nos troncos das outras e as sombras das copas bailavam, fantasticas, sobre os fetos molhados.

E elle ali, tão sósinho com seu thesoiro! Havia tanto que lhe não punha os olhos!

Sentando-se n'uma pedra, approximando o cofre, com um esforço enorme, fez girar a tampa nos gonzos ferrugentos e queixosos.

O luar, entre dois farrapos de nuvens, encheu o cofre de faiscas d'oiro. E o avarento, em extasis, fechou os olhos, como encandeado por tanta luz!

***

O vento cessára de repente e no instante em que o temporal tomou fôlego, um grito de dôr, estridulo, repetido ao longe, ainda mais dolorosamente, pelo ecco da montanha empinada, partiu da choça do rachador.

Eram elles com certeza!.. Eram os ladrões!

Ergueu-se abraçado ao thesoiro, tranzido de medo, suando frio. E depois, espavorido, deitou a fugir, esbarrando nos pinheiros, deixando a carne nos esgalhos, cahindo, agarrado ao cofre, sobre os seixos agudos, e levantando-se logo para correr outra vez, correr sempre, para fugir do grito, que, ameaçador, o perseguia.

E toda a noite durante, andou fugido, em correrias pelo pinhal, já nem sabia por onde. E o sangue e o suor corriam-lhe pela cara.

Quando o luar começava esmorecendo, ajoelhou, meio desfallecido, e com as unhas agudas, recurvas, abriu uma cova funda, onde, com esgares de doido enterrou o dinheiro, longe, muito longe, d'onde estava d'antes. Tapou tudo e, por instincto de precaução, puxou-lhe os fetos para cima. E abalou outra vez.

Era manhã quando chegou a casa extenuado, esfarrapado todo, com os cabellos agarrados ás faces gotejando sangue, ardendo em febre. Deixou-se cahir no catre nojento.

O dia rompia sereno. O vento abrandára e só por detraz da serra é que as nuvens azuladas sombreavam intensamente o fundo da paizagem, em que destacavam alvejantes as casarias. O sol erguia-se esplendido, enchendo os campos de joias scintillando no escrinio de verdura. A aldeia acordára n'um banho de luz, cheia de bulicios, de cantos de gallos e risos de crianças. Pelas chaminés subia uma columnasinha de fumo azulado, transparente, que a enchia do cheiro bom, alegre, do pinho queimado nas lareiras, aquecendo os almoços.

***

Quando o homem voltou a si, depois de muitas horas de cruel delirio, apenas intervallado por curtos somnos cheios de pesadelos, um pesadelo ainda lhe pareceu a lembrança confusa de toda aquella noite agitada.

Viu-se percorrendo o pinhal immenso, que gemia e dançava lugubremente, estorcendo-se no temporal como um condemnado na fogueira. Lembrou-se do grito que o perseguira. E logo se viu sujo de sangue, com as unhas despegadas do sabugo, o corpo cheio de nodoas negras, os joelhos escalavrados.

Mas onde enterrára o seu oiro?

Passava a mão pela testa, apertando as fontes, tentando recordar o sitio, a forma d'algum pinheiro, o caminho que seguira. Sentou-se no catre, rasgando com as unhas lascadas a carne magra do peito, tremulo, suando frio.

Levantou-se e atravessou a aldeia aos bordos, com a vista desvairada, a bocca torta, ameaçando com a mão de esqueleto as mulheres sentadas ás portas das casas, vigiando os pequenos, que brincavam no riacho, tostando ao sol os ventresinhos redondos e as cabecinhas loiras.

E o pinhal até onde a vista se alongava sombreava os montes por ali fóra! Ali estava o seu thesoiro, ali debaixo d'uns fetos, cujas hastes se abriam á sombra d'uns pinheiros, fetos e pinheiros todos eguaes n'aquella immensidade!

Outra vez, arquejante, mal sustendo-se nas pernas, trepou e desceu encostas, procurando pegadas, querendo lembrar-se, serenar, passando a mão pela testa com gestos de desespero, como tentando arrancar do cerebro a loucura, que, pouco a pouco, o invadia!

***

Quasi noite foi dar á choça do rachador.

Lembrou-se então que d'ali partira o grito que o amedrontára e, escumando de raiva, atirou-se contra a porta, berrando:

– Ladrões! Ladrões!

No meio do quarto estava a criança deitada sobre uma caminha de fetos, pallida, mirrada, as mãosinhas de cera atadas sobre o peito com uma fita velha de seda roxa.

 

E o pae e a mãe, ao lado do cadaver do filho, choravam mansamente.

O avarento parou no limiar da porta, alumiado pelo ultimo vislumbre da razão.

Recuou instinctivamente e foi cahir sobre um grande molho d'achas, dizendo palavras desencadeadas, com os olhos esgaseados, doido de todo e para sempre.

E por deante d'elle passavam bandos alegres de pintasilgos fugindo para os ninhos, levando nos bicos os farrapos da jaqueta, que elle deixára nas silvas do pinhal, em quanto os gaios contentes, aquecendo-se ao ultimo raio de sol d'aquella tarde de primavera, soltavam, pulando de ramo em ramo, grandes gargalhadas ironicas.

AD ASTRA

Quando o tio Bernardo, deitando o barrete de pelles para o lado, começava a apontar para o tecto as nuvens de fumo do negro cachimbo de gesso, escusado era falar-lhe; só rosnava em resposta um dito de mau humor ou, quando muito, um disparate. Estava pensando no Brazil, no seu Brazil, como lhe elle chamava.

E era tratar de não fazer bulha, emquanto elle, sorrindo para os florões do tecto, recordava scenas da mocidade, temporaes vencidos pelo arrojo, amores de mulatas, muito ouro ganho n'um só bafejo da sorte.

– O tio Bernardo está no Brazil, diziamos nós baixinho.

E, quando o cachimbo se lhe apagava, olhava para nós a rir, sacudindo a cinza na unha rugada e negra:

– Cá me embarquei eu outra vez! Demonio de tabaco! Este diabo vem de lá… Não sou capaz de fumal-o sem que logo me ponha a sonhar… Estava pensando agora…

E começava uma historia por nós ouvida mil vezes. Eu e minha irmã sahiamos nos bicos dos pés, e elle concluia-a, dirigindo-se a minha mãe, que sentada na poltrona de tabúa, já sem feitio, pouco a pouco adormecia serenamente.

É com lagrimas nos olhos que, depois de tantos annos, me recordo d'esses tempos.

A nossa casa era a mais risonha de toda a villa.

Ainda me alegra relembral-a, no alto dos rochedos, sobranceira ao mar. Muito pequena, mas sempre muito caiada, davam-lhe certo ar as gelosias verdes das janellas. Tinha em volta uma cercadura de ninhos, e todas as manhãs, no verão, acordava ouvindo cantar as andorinhas.

No inverno era mais triste. Quando havia temporal, as ondas salpicavam os vidros e minha irmã pequenina, assustada como um pardal, escondia a cabecinha loira debaixo do chaile de minha mãe, que, sentada á lareira, lembrando-se do marido e do filho mais velho, que andavam sobre as aguas do mar, resava o credo em cruz.

Não eramos dos mais infelizes; nunca soube o que era miseria. Depois que o tio Bernardo chegou, houve até sempre, lá em casa, um certo luxo, uma certa despreoccupação pelo dia seguinte.

É que o tio, além de vir dono d'um cahique, trazia comsigo uma caixinha de ferro cheia até cima de muito boas libras.

Meu pae, que viera com elle como piloto, pouco tempo se demorou comnosco.

O tio Bernardo disse-lhe, uma noite, depois da ceia:

– Olha, irmão; o que ali está… (e apontava para a tal caixinha) o que ali está chega-me para aqui poder acabar socegadamente os meus dias. Sabes que mais? Dou-te de presente o cahique. Não tenhas cuidado na mulher e nos filhos. O teu mais velho tem quinze annos; que vá comtigo. Vai, e sê tão feliz, como eu fui.

Era sina de todos – o mar. Os mais desgraçados eram pescadores; os outros quasi todos partiam para o Brazil; alguns voltavam pilotos, alguns commandando por sua conta; eram os mais felizes. Alguns tambem… nunca voltavam.

E era a lembrança d'estes que tornava tão triste a lareira nas longas noites de inverno, quando uivava o temporal.

***

Um dia parti para a escola um bocado mais cedo que o costume, porque no quintal do padre prior, tinha visto uma figueira deitar por cima do muro, para o lado do caminho, um dos ramos todo cheio de figos brancos, tentadores.

O mestre, ou porque desejasse lisongear o tio Bernardo ou porque na verdade eu me atirasse ao estudo um pouco mais que os outros, quando ao domingo, depois da missa, nos encontrava a passear na Praça, nunca deixava de me dizer, tocando-me com dois dedos na cara:

– Ah! que se o tio quizesse… havias de ir longe.

Eu não sabia bem o que elle queria dizer com aquelle ir longe. Lembrava-me logo do Brazil. Mas porque motivo eu e não os outros?

N'aquelle dia, quando já de vara na mão me dispunha a roubar quatro figos ao prior, ouvi de repente a voz de meu tio. Senti um calafrio pela espinha.

– Olá, rapaz! que andas por ahi a mariolar, em vez de ires direito para a escola?

Voltei-me todo assustado e vi-o á janella do prior, que, felizmente para mim, desatou ás gargalhadas.

– Espera ahi que te quero falar.

Esperei, mas quando chegou ao pé de mim, apesar de elle nunca me ter batido, com as duas mãos tapei as orelhas e a nuca.

O tio Bernardo poz-se a rir.

– Não tens vergonha…!

Começou andando ao meu lado muito depressa. Ás vezes parava limpando o suor.

– Sabes o que vou fazer? perguntou-me. Vou ver se o teu mestre diz verdade. Quero um dia assistir á escola.

Tremeram-me as pernas. Se ainda depois de me ter apanhado a roubar os figos, me fosse ver a atrapalhar-me á pedra! Fiz a promessa d'uma véla de cera á Senhora dos Milagres e, com mais alguma confiança, entrei na escola e fui pedir a bençam do mestre.

Chegámos um nadinha tarde. Estava o Patricio á pedra.

O tio Bernardo fez um signal para que ninguem se incommodasse e sentou-se ao pé do professor. Eu caminhei gravemente para o meu logar.

O Patricio, coitado, que estenderete!

Parece-me ainda estar a vel-o com as calças de quadradinhos, remendadas, muito curtas, a barriguinha muito redonda, o que lhe dava um aspectosinho grave, a camisa de panno cru aberta sobre o peito, e dois bocados de ourelo a servirem de suspensorios. Com as mãos nas algibeiras, os olhos muito injectados, e as azas do nariz a tremerem, ouvia contendo o mau genio, a rabecada do mestre.

Não foi nunca dos mais felizes, coitado! Por ali ficou sempre. Tem quatro ou cinco medalhas ao peito e todos os dias a fome em casa.

– O senhor… disse o mestre apontando para mim.

Ergui-me e, pegando no giz, acabei com desembaraço a conta, que tanto atrapalhava o Patricio.

– Muito bem. Tire a prova dos nove. É o que eu digo, murmurou, quando acabei. Has de ir muito longe.

O tio Bernardo pediu ao mestre que me fizesse mais algumas perguntas. A todas respondi com muito animo e desembaraço.

– D. Affonso Henriques, o Conquistador, D. Sancho I, o Povoador, D. Affonso II, o Gordo…

A historia toda.

– Muito bem. Pode sentar-se.

O tio levantou-se, dizendo-me:

– Estou contente comtigo, rapaz.

E sahiu.

Ao jantar reparei que o tio Bernardo e minha mãe deviam de ter falado a meu respeito. Apenas eu abria a bocca, olhavam um para o outro e tossiam com certo ar misterioso. Minha mãe teve alternativas de alegria e de tristeza.

Quando a via rir, pensava:

– O tio falou-lhe na lição.

E, quando a ouvia suspirar, lembrava-me dos figos. Se ella soubesse…!

Quando o jantar acabou, o tio Bernardo chamou-me e disse-me:

– Ouve cá. Tu tens uma cara seria e o teu mestre, que deve ser n'isso entendido, diz que aqui dentro tens mais alguma coisa do que os outros.

E batia-me com os nós dos dedos na cabeça.

Eu estava radiante de alegria.

– Além d'isso tens os pulsos muito fraquitos, e isso é o diabo para um homem do mar.

A conversação tomava de repente para mim um caminho inesperado. Se os pulsos eram fracos, e isso era o diabo para um homem do mar, que me importava o que o mestre dizia que eu tinha dentro da cabeça?

Olhei para minha mãe. Minha mãe sorria.

– Ainda agora, continuou meu tio, estive a conversar com o padre prior a teu respeito. Aquillo é que é vida, meu filho: padre!

– Não quero! respondi, dando um murro em cima da mesa. Não quero ser padre.

– Ninguem te obriga, rapaz. Ha outras vidas tão boas ou melhores até. Medico, por exemplo.

– Não quero!

E, desviando os olhos para o lado da janella, vi lá onde o céo vai dar um beijo no mar, uma velasinha alvejando, que me pareceu do meu partido e a gritar-me lá de longe:

– Fazes muito bem. Não queiras ser medico, não queiras ser padre. Olha para mim. Cá dentro vai a ventura!

– Pois não queiras! gritou meu tio.

E começou a passear pelo quarto, puxando grandes fumaças.

Eu, espantado do meu atrevimento, tinha baixado tristemente os olhos e, muito amuado, coçava a cabeça.

– Lá no collegio, tens tempo de sobra, para te resolveres, disse meu tio porfim, parando deante de mim. Ámanhã vais comigo para Lisboa.

Lisboa!

Soou-me o nome aos ouvidos como palavra magica.

Lisboa! Ia partir para Lisboa, que nunca tinha visto, mas cujo só nome me despertava na imaginativa sonhos encantadores, prodigios de riqueza, mansões de fadas!

Ergui a cabeça, tão cheio de alegria, que até me puz a rir de rijo!

Olhei para minha mãe. Coitadinha, chorava.

– Vamos, disse o tio, batendo-me com a mão no hombro. Vai vestir o teu fatinho preto, que tens que despedir-te desta gente!

Lisboa! Lisboa!

Eu bem via as lagrimas da minha mãe, mas este grito da minh'alma calava-me o coração.

Fui despedir-me do mestre-escola que, adeante de todos, me deu um valente abraço, dizendo-me:

– Continua assim, meu rapaz. Sic itur ad astra!

Eu, muito envergonhado, para fazer alguma coisa, bafejava a palla do bonnet e limpava-a depois á manga da jaleca.

Ficou-me o latinorio no ouvido. Annos depois encontrei-o… Boa vontade não te faltava, querido mestre!

Á noite, depois da ceia, o tio Bernardo julgou dever discursar.

– Quando ás vezes me esqueço para ahi horas inteiras a fumar cachimbo, vocês põem-se a rir e dizem: «Lá está o tio Bernardo no Brazil!..» Pois bom é que saibas, antes que o aprendas á tua custa: nem tudo são rosas na vida. E no mar os espinhos são muitos. A gente volta, chega a casa, esquece tudo. Quantas vezes o diabo não levou a cardada! O que passou, passou; olha a gente para traz e só vê aquillo de que tem saudades: por isso nunca falo de fomes, de privações, de perigos… Não te dê desgosto não ser homem do mar. Andar sobre as ondas é tentar a Deus.

Não sei que mais me disse ainda o tio Bernardo para me provar que, desde que eu voltava costas ao Oceano e marchava para Lisboa, era o ente mais feliz do mundo. Bem lhe dispensava o sermão. Já me via homem, voltando para a terra, de relogio e breloques, apertando na praia, depois do banho, as mãosinhas das senhoras, fumando o meu charuto, tratando o administrador por tu e o prior por você.

– Agora, rapaz, vai deitar-te e pede a bençam á tua mãe.

Então, não sei porquê, senti de repente um nó na garganta e eu, que tão pouco me lembrára d'ella, foi a soluçar que lhe cahi nos braços. Ella apertou-me contra o peito, muito, muito, até me fazer doer, e dando-me um beijo muito longo, disse-me um adeus tão sumido, tão sumido que quasi o não ouvi.

No dia seguinte, ao romper da manhã, eu e o tio Bernardo, ambos na almofada da diligencia, partiamos caminho de Lisboa.

***

Quando, depois de bacharel e de muito tempo gasto a escrever cartas e procurar empenhos, consegui finalmente ser admittido como amanuense nos proprios nacionaes, telegraphei a minha mãe, ou que na resposta me participou a chegada de meu pae.

Não se calcula a alegria com que parti.

Havia trez annos que não via o querido velho, que só de longe em longe vinha a Portugal matar saudades.

Estavamos então no principio do inverno e um denso nevoeiro espalhava-se sobre o mar. Ainda longe da villa, já ouvia o sino da Senhora dos Milagres tocando afflictivamente para indicar o porto aos que andavam fóra.

– O José Sacrista, coitado, disse-me o cocheiro, tem o filho lá no mar e desde hontem de manhã que está agarrado á corda do sino.

Foi talvez o nevoeiro, ou foi aquelle sino tão afflicto, ou talvez dó do sacrista, que fez com que me apeasse da diligencia, levando oppresso o coração.

No caminho de casa encontrei o mestre-escola que me veio abraçar todo tremulo, cheio de brancas, abordoado a uma bengala.

– Parabens, muitos parabens. Eu bem te dizia.

Não pude deixar de sorrir-me.

– Que pena, continuou, vires em occasião tão triste!

– O que?

– Não sabes?.. Valha me Deus! O tio Bernardo…

– Morreu? perguntei ancioso.

– Não, felizmente ainda não. Venho de lá agora. Mas está tão mal…

 

Não ouvi mais e desatei a correr. Estavam todos reunidos no quarto do tio. Quando entrei, abriu os olhos e disse:

– És tu! ainda bem que vieste. Deu-me o caruncho. Tinha pena de morrer sem tornar a vêr-te. Já sei que estás amanuense. Sou um homem rude, não sei o que isso é; mas deve ser… muito! Foste longe.

Esteve um momento calado, respirando a custo, e depois continuou:

– O teu irmão foi menos feliz. Nasceu forte, foi para o mar. O teu pae já está farto de andar por esses oceanos e deu-lhe o cahique.

Olhei para meu irmão. Estava herculeo. Uma barba negra, muito espessa, descia-lhe até meio do peito. Um pesado grilhão de oiro cahia-lhe do pescoço até ao ventre redondo. Meu tio fitou por um instante em mim os olhos já embaciados, e sorrindo:

– Olhem que mãosinhas! Não vivias no mar dois dias. Tive rasão. Emfim, graças a Deus, fiz todos felizes.

Fechou os olhos e esteve assim por muito tempo, arquejando. Quando tornou a abril-os, procurou-me com a vista:

– Tenho pensado muito em ti… Como é o latinorio do mestre?

Não sabia o que elle queria dizer… Depois lembrou-me de repente.

– Sic itur ad astra.

– Ad astra, ad astra! repetiu machinalmente.

E, com os olhos vidrados fitando os florões do tecto, ficou-se a sorrir, como se Deus o houvera levado para um Brazil ideal.