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Viriatho: Narrativa epo-historica

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XXVI

Apesar de declinar o sol, que se reflectia brilhante nas Penhas Douradas, que estão voltadas na sua immensa altura para o Occidente, Viriatho, calçado com as abarcas espartenhas, e de bornal ás costas, caminhou para a Serra através dos precipicios seus bem conhecidos. Dirigiu-se para o planalto da Torre, onde costumam reunir-se os Maioraes da Mésta, quando fórmam Conselho entre si, para resolverem sobre a transhumancia dos gados, sobre o abastecimento da Arca do pão, ou sobre castigos dos cachopos. Viriatho ia tocando em certos pontos, como Barros Vermelhos, Covão grande, Lagoa escura, n'uma buzina de corno um signal, que era conhecido de todos os Maioraes; quando chegou, já noite alta, ao planalto da Torre em fórma de estrella, pouco ou quasi nenhum tempo esperou pelos Maioraes, que se appresentaram no local destinado á comparencia da Cabana. Eram cinco os Maioraes que governavam os gados lanar, cavallar, cabrum, porcum e vaccum; e quando se reuniam tinham a Mixta Jurisdictio. Tal era o Conselho da Mésta, denominado entre elles a Cabana. O primeiro que appareceu ao toque da buzina foi Edovius, que governava a boiada; accudiu presuroso Togotes, que mandava nos cavalhariços; não se fizeram esperar Uvarna, o maioral dos porqueiros, Suttunus e Semesca. Todos elles se lembravam do toque da buzina de Viriatho, e occorreu-lhes que era caso extraordinario. O Cabecilha fallou-lhes sem preambulos:

– Convem-me que sejam apartados trezentos touros bravos, barrosos, corpulentos, das manadas da Betica! Esses touros bravos hão de ser guiados por vinte vaccas mandarinas, d'aquellas mais luzidias e brincalhonas, e dentro em dois dias devem estar mettidos nos Furados

– Nos dois extensos algares abaixo da povoação de Sarzedo?

– Ahi mesmo. E tambem se torna necessario, que vão mais atraz dos touros bastantes cães de fila, d'esses que pela sua firmeza em impellir os touros tem o nome de Maioraes.

Os cinco Maioraes da Mésta sorriram-se, comprehendendo o plano; esfregavam as mãos, antevendo a audaciosa empreza, tentada por Viriatho; e dirigindo-se ao antigo companheiro:

– Cá pela nossa parte não é que o plano hade falhar.

E descendo do planalto da Torre para as casas de suchão, em que se abrigavam, passaram por um grupo de cachôpos, que estavam de vigia, e para não terem somno trocavam suas Adivinhas. Dizia um:

 
– Redondo é o curral,
Vaccas pelo bostal,
Lindo é o azagal,
Cão peor que chacal?
 

Nenhum dos cachôpos dava com o sentido da adivinha. Viriatho ao passar pelo rancho sorriu-se, dizendo para os Maioraes que o acompanhavam:

– Nos meus tempos de azagal tambem ouvi esta adivinha.

E fallando para os mancebos, explicou-lhes:

– Redondo curral, é o céo; Vaccas pelo bostal, são as nuvens espalhadas; Lindo azagal, o sol; Cão peor que chacal, é o vento frio, que arrebata as nuvens.

Uma franca risada dos moços foi o signal de assentimento. Viriatho veiu descendo, tomando pelas veredas, passos e descansadoiros, canadas e quinchorros, dirigindo-se para a povoação mais proxima do grande Herminio, onde o esperavam os companheiros da Trimarkisia.

Os Maioraes da Mésta trataram logo de ir escolher as vaccas mandarinas para em seguida ajuntarem os touros bravos que hão de entrar na mysteriosa lide. Essas vaccas folionas, de côr branca da pellagem, são dotadas de uma macieza de pelle e de uma corpulencia meã, chifres pequenos, abertos e delgados, olhos pequenos, accesos, bem afflorados, com pestanas brancas. Exercem sobre os touros um poder invencivel de seducção, que os subjuga; com ellas é que os Maioraes os governam. Têm o pescoço grosso e de farta barbella, que se recorta em curva e se prolonga até ao peitoral; lombos largos e cauda curta, membros finos e aprumados, ventre pequeno e ubere farto. Pelas suas fórmas graciosas parecem-se com o typo do gado alvação. São brincalhonas tanto na docilidade do curral como na vida aspera dos montes.

Os Maioraes da Mésta estavam seguros de conduzirem e entregarem a Viriatho os trezentos touros bravos.

XXVII

A aldeia de Loriga foi para onde se dirigiu Viriatho, na falda da serra. Diziam que era d'alli natural; mas outras povoações, como Folgosinho, Ceia, Covilhã e Vizeu, tambem disputavam a gloria de terem sido seu berço. Antes d'essas pequenas terras o adoptarem como filho, já elle estava possuido do sentimento que o levou a dizer de toda a Lusitania: – Esta é a ditosa patria minha amada. Viriatho sentia um prazer intenso ao vêr os trabalhos da povoação pacifica; um grande circulo de raparigas, com suas arrecadas e collares de ouro, e axorcas nos braços e pernas, estavam occupadas em uma espadellada de linho. Ao rithmo das pancadas iam cantando, porque na Lusitania o trabalho foi sempre uma festa, e ao som de cantigas. Approximou-se para escutar a

Chacoula da Espadellada
 
Separa-se o linho
Das suas aréstas,
Nas espadelladas.
Que alegres pancadas!
E com gosto dadas.
Trabalhos são festas:
Quem olha a fadigas!
Já pelo caminho
Vem as raparigas,
Soltando cantigas
Das mais namoradas.
 
 
Quem quizer saber
Quantas conversadas
Andam cá na villa,
Sem maior quesila
Póde conhecer,
Vendo nas mãos d'ellas
Como as espadellas
São bem trabalhadas.
 
 
Eu, por mim, sei de uma
Que na espadella
Tem um coração
Feito pela mão
De quem é só d'ella.
Para conhecel-a,
Bastará ahi vêl-a
Sempre olhos no chão…
 

Mais adiante, em outro casal descendo a encosta por onde se estendia Loriga, havia ruidosos signaes de alegria; era um Fiandão, uma festa em que das povoações visinhas concorriam muitas raparigas para fiarem em festivo ajuntamento todo o linho de uma casa. Era de uso concorrerem tambem os moços namorados, que tocavam seus machêtes, cantando á porfia as

Endechas do Fiandão
 
Que vezes te vêjo
No limiar da porta
De pé a fiar!
Eu, indo a passar,
Cá de longe um beijo,
Que mal me conforta,
Enviava-te então;
N'essa occasião,
(D'isso não te accuso)
Bem notei que o fuso
Te cahiu da mão.
 
 
Se te cáe o fuso
Quando estás á porta,
Será por cuidado,
Imaginação,
Que haja eu causado
Com tanta paixão?
Mas, isso que importa!
Ou será ou não.
Seja como fôr,
Certos signaes são
De ânimo confuso;
Talvez falta de uso
De occultar o amor,
Pois te cáe o fuso
Tanta vez da mão.
 
 
Com que alegria,
Ou satisfação,
Levantára o fuso
Que te cáe ao chão;
Eu t'o entregaria
Com a cortezia
Que no amor é uso,
Declarando então:
– Eil-o, em homenagem
D'esta vassalagem
De leal coração;
Para sempre agora
Não cahirá, senhora,
Mais da vossa mão.
 

Emquanto o moço cantava a endecha apaixonada, todos procuravam com os olhos se se denunciava pelo rubor a rapariga que a inspirára. Por casualidade cahiu o fuso da mão a uma d'ellas, e logo as risadas animaram o Fiandão extraordinariamente.

Um outro cantador dedilhou no machête que trazia umas Coplilhas

Ao morder do fio
 
Que inveja me faz
E tanto me toca,
No fio do linho
Que puchas da roca,
Os beijos que dás!
Presinto, adivinho,
Se esse linho eu fosse,
Como me era doce
Sentir tua bocca!
 
 
Tu segues fiando,
De mim descuidada,
Á bocca levando
A linha delgada
Que torces nos dedos!
Do linho os segredos
Tivera eu a posse,
Que os sonhos provoca:
Como me era doce,
Se esse linho eu fosse,
Sentir tua bocca!
 
 
E emquanto na roca
Tu passas fiando,
No immenso desejo
Que acorda o que vêjo
E a mente traz louca,
Ficarei sonhando:
Se esse linho eu fosse,
Como me era doce
Morder-me tua bocca!
 

Estas coplilhas ainda provocaram mais ruido, procurando-se algum rubor traiçoeiro. Ditálcon, que estava junto de Viriatho, enlevado na contemplação d'aquelles costumes da serra, por que tinha ouvido fallar muito na finura do fio lusitano, disse para o cabecilha:

– Isto é uma terra de poetas.

– E de apaixonados…

A phrase de Viriatho foi interrompida por um facto extraordinario; n'aquelle momento chegava á sua presença um rancho de homens, que o procuravam com anciedade:

– Nós somos gente da povoação de Gouvêa, que vimos…

O seu aranzel confundiu-se com este outro, mais atrapalhado:

– Nós somos gente da povoação de Manteigas, que tambem aqui vimos…

Viriatho impoz silencio a esse grupo de homens valentes, que vinham armados de varapáos e mangoaes, e com lucidez apurou em poucas perguntas, que eram povoações rivaes, que por causa das aguas de rega se hostilisavam de longos tempos, havendo todos os annos grossa pancadaria e até mortes. Os de Gouvêa não queriam que as suas aguas vertentes fossem para os de Manteigas; estes não lh'as queriam pedir. Então Viriatho sentenciou:

– Agora, que a nossa terra está invadida pelo inimigo estrangeiro, os odios internos enfraquecem-nos. É de força unirmo-nos: Entre Manteigas e Gouvêa haja paz para sempre. Em todos os comêços do Anno estival a communa de Manteigas irá levar á de Gouvêa uma bilha de agua, em signal da compra por que adquiriu a posse das suas regas.

– Bem julgado! gritaram todos.

E depois de terem bebido tigellas de zitho, e acclamado Viriatho, voltaram alegres para as suas povoações, em que o symbolo da concordia mutua se guardou no costume immemorial.

XXVIII

A noticia das devastações de Nigidio forçou Viriatho a reunir-se ás suas catervas, e a attrahil-o para as campinas em volta da Cava; com solercia foi evitando combates importantes, até ao momento em que os esculcas vieram dizer-lhe que Edovius e os outros maioraes tinham encurralado tresentos touros bravos dentro de um dos Furados, para onde os trouxeram pelo engodo das vaccas mandarinas.

 

– Vieram tambem os cães de fila?

– Estão prezos no outro Furado.

Depois d'isto Viriatho esperava com anciedade o cahir da noite, certo de que Nigidio recolheria o seu exercito dentro da Cava; Nigidio tambem contava como estrategia, o conservar-se n'aquelle territorio em que podia dar uma batalha campal pondo em acção toda a maravilhosa tactica das Legiões. E não era mal pensado, desde que elle conhecia que o exercito lusitano era incoherente, de guerrilheiros de disciplina irregular.

A noite cahia, e como Viriatho se afastára com os seus têrços para longe, o Pretor Nigidio deu ordem para que as Legiões se recolhessem para dentro da Cava, certo de que no seguinte dia conseguiria envolver Viriatho. Na escuridão da noite as sentinellas que vigiavam o acampamento romano viam de vez em quando luzir umas lumieiras pelos montes. Não suspeitavam o que seria. Era o signal combinado entre Viriatho e os maioraes da Mésta; por essas lumieiras sabiam elles a situação, e que era tempo para executar a estrategia.

Os touros bravos, em numero de tresentos, sahiram de um dos Furados, attrahidos pelas vaccas mandarinas, sempre em marcha accelerada na direcção da Cava. Os Maioraes, com extrema pericia guiavam aquella immensa força bruta. Semesca encarregára-se de trazer uns vinte cães furiosos da serra; e acompanhava a boiada mais atraz. Quando chegaram a pouca distancia da Cava já se via a estrella boieira; foi esse o momento escolhido. Viriatho fez açular os cães contra os touros, que os Maioraes montados e com varas compridas dirigiram para dentro da Cava, tendo-lhes na carreira cega retirado as vaccas mandarinas da dianteira. A furia dos touros excedia quanto se imaginára; vendo luz no acampamento dos romanos, para ahi se atiraram em um impeto irresistivel. Tudo cahiu deante d'esse assalto de uma força de ariete. Os gritos de horror, a confusão de vozes revelavam a enormidade da catastrophe. O que fizera Galba com os dez elephantes africanos contra os trinta mil lusitanos indefezos, agora Viriatho o repetia contra as Legiões romanas arrojando-lhes na escuridão da noite tresentos touros dos mais bravos da Betica, e impellidos pelos indomaveis cães dos Herminios. Os touros destroçaram todo o acampamento; e quando Edovius e os outros Maioraes entenderam ajuntar os touros e leval-os caminho da Serra, Viriatho entrou na Cava com as suas catervas e foi passando á espada quantos sobreviviam do exercito de Nigidio. Eram estes recursos extraordinarios, que tornavam temivel Viriatho manobrando com um exercito sem disciplina, e que em uma batalha campal não resistiria diante de uma bem organisada Legião. Não era a primeira vez que os touros se empregavam como uma arma de combate; mas em tamanho numero, e tão calculadamente, com o concurso de boieiros experimentados, e produzindo um effeito tão completo só a Viriatho compete uma tal gloria.

A insignia da Legião, que era uma Aguia poisada sobre uma rodela sem ornatos no tope de uma comprida vara, appareceu calcada e recalcada; e entre os corpos mortos viam-se esfrangalhados os balsões ou Vexillos das Cohortes bordados a ouro com os numeros de cada uma e o nome da Legião. Pelo chão revolvido e ensanguentado notavam-se as Signas ou bandeiras dos Centurios; algumas ainda conservavam no alto da vara uma mão direita como symbolo da fidelidade, ou uma corôa allusiva a alguma victoria. Ainda agarrados aos seus pendões, jaziam Porta-Estandartes com as cimeiras de cabeças de leões cujas pelles lhes pendiam das costas. Cascos de ferro e de cobre, escudos de páo chapeados de ferro, cotas de malha revestidas de couro ou guarnecidas de escamas de metal, couraças de bronze, espadas de dois gumes, parazonios ou espadas curtas, dardos, flexas, fundas juncavam todo o ambito da Cava, como se um torvellinho de morte tivesse dispersado o acampamento de Nigidio.

Os despojos do exercito romano foram em grande parte dados aos Maioraes da Mésta, em paga do seu trabalho e acerto. D'ahi veiu o apparecerem ainda passados muitos annos, collares fixos ou torques, cistes de bronze, dracmas de prata e armas romanas, por muitos logares inaccessiveis dos Herminios.

XXIX

Entre os poucos legionarios do exercito de Nigidio que escaparam não appareceu o general; fôra uma victima da tremenda catastrophe. Os chefes do exercito de Viriatho resolveram prestar uma homenagem á Deusa-Mãe, do culto chtoniano, I-Ana, ou Anah, levando em um carro puchado por vaccas brancas, até as lesirias da margem do rio Pavia, a Pedra focal, com que ella era representada na religião lunar da Lusitania. D'esse culto primitivo, ficou a superstição de revolver penedos, junto dos lameiros ou charcos, e a crença nas Jans ou fadas, e nos juncaes chamados Omomi, de que o povo fez a entidade do Bom Homem. A Pedra focal foi conduzida com o respeito de quem via n'ella o symbolo da fundação da familia, e no pleni-lunio dansava-se diante d'ella ao som de sistros e adufes, tal como usavam as familias religiosas dos Cabiras, Telchines e Dactylos. A Pedra focal era entre as tribus dos Germanos tambem levada em um carro com o nome da deusa Herta, e arrojada a um lago.

No meio da festa apparatosa da Deusa-Mãe, todos os guerreiros do exercito de Viriatho se approximaram da Pedra focal e collocando a mão sobre ella fôram proferindo um juramento inquebrantavel:

– Nós combatemos pela liberdade da Lusitania, fonte da paz e da segurança das nossas familias. E emquanto a Lusitania fôr pisada pelo invasor romano, nós juramos combatel-o sempre, sem regressarmos a nossos lares, sem procurarmos as nossas mulheres, sem mais beijar os nossos filhos até ao final triumpho, em que todos estamos empenhados.

A confiança na audacia e intelligencia de Viriatho é que motivava estas resoluções extremas, que, se fosse necessario, seriam levadas até ao suicidio. Viriatho começava a apparecer como um vulto maravilhoso, e corriam vozes de que o toque das suas mãos dava saude. E quando o carro era levado para a beira do rio com a Pedra focal, trouxeram ao encontro de Viriatho um pobre homem hydropico, em extrema deformação, para que o soccorresse com o seu poder e o livrasse de tanto soffrimento. Viriatho attendeu o desgraçado doente:

– Para o teu mal ha um remedio infalivel nas aguas da Fonte de Ouguella. Segue para lá quanto antes, e fica certo de que te curas.

– Senhor! disse o hydropico: Eu sou Bovecio; e prometto, quando voltar curado, ser teu soldurio, acompanhar-te nos perigos e ainda além da morte.

Viriatho, sorrindo para os que o escutavam maravilhados, continuou:

– Não tem essas aguas sómente virtudes medicinaes; o pão amassado com agua da Fonte velha de Ouguella fica mais leve e saboroso do que o melhor pão de Avintes.

Um dos soldurios interveiu:

– Conheceis bem todas as riquezas d'esta nossa terra, porque a tendes percorrido de norte a sul.

– Por isso mesmo é que eu lhe tenho tanto amor. Quando andava nas fadigas da Mésta, quantas vezes fui eu ás aguas afamadas de Aljustrel, lá no Alemtejo, lavar as feridas malignas e pustulas do gado. Por lá encontrei sempre muitos pastores, que se iam tratar de feridas rebeldes, de sarna e até da lepra. O que sei dizer, é que de lá voltavam sempre curados.

– São aguas santas!

– Santas, sim, mas é preciso ter cautella, por que bebendo-se de mais… Os banhos, esses são milagrosos.

– Deveis conhecer umas aguas que nascem em Olyssipo, na falda meridional do Monte do Castello?

– Se conheço! Curam os catarros mais fundos, e acclaram tanto a voz, que até se diz que não ha musicos que egualem os d'essa terra. Se os Romanos se apoderassem d'essa cidade com certeza ahi edificariam sumptuosas Thermas.

– Toda esta nossa Lusitania é rica de aguas milagrosas.

E emquanto o carro com a Pedra focal continuava a marcha, Viriatho completou o seu pensamento:

– Como as aguas do Tagus não ha outras no mundo mais acerosas; nem as de Bilbile ou de Tarragona lhe chegam. Bem se vê pelo que se passou agora na Cava.

XXX

A Guerra dos ladrões, como chamavam em Roma á lucta heroica de um povo defendendo o seu territorio, os seus lares, a propria existencia, prolongava-se com desastres successivos para as armas sempre ufanas dos Quirites. Os barbaros do occidente eram exemplo de dignidade civica e de altura moral para o povo-rei, que se arrogava a supremacia da civilisação. As derrotas quasi simultaneas de Unimano e Nigidio occultaram-se por alguns dias na Cidade eterna; chegou-se mesmo a espalhar que Viriatho se rendera, que fôra agarrado; que seria trazido para o apresentarem ao povo em espectaculo no Circo. Mas a verdade cruenta irrompeu quando se viu que fôra encarregado Caio Lellio, que era por todos cognominado o prudente, de partir rapidamente para a Hispania, e de intervir com o seu tino seguro na campanha que se desmoralisára. E tal era a importancia da missão, que Lellio partira revestido da auctoridade de Proconsul. A situação era extremamente grave; porque um dos generaes romanos, não se sabia se Unimano ou Nigidio, em consequencia dos muitos ferimentos que recebera, succumbira. Lellio ia substituir um d'elles. O novo general inspirava confiança pela clareza de intelligencia que possuia; não iria imprimir um impulso decisivo ao Bellum latronum, mas ninguem como elle saberia informar o Senado da situação da Lusitania e das condições que cedo ou tarde conduziriam á victoria. Lellio era considerado em Roma como um litterato eximio, dotado de eloquencia empolgante, e de um vasto saber; estas qualidades não eram incompativeis com o espirito militar de um chefe tacitamente encarregado, não de feitos estrondosos, mas de salvar dois exercitos compromettidos em um paiz inimigo e longinquo. Por isso a chegada de Gaio Lellio á Lusitania não produziu ruido; a sua obra capital foi sustar promptamente o revês que se precipitava, reunindo os dois exercitos romanos, e evitando a batalha campal a que Viriatho o provocava, com constantes escaramuças. Depois d'isto preparou as cousas para que d'alli em diante a campanha da Lusitania tomasse um outro aspecto mais favoravel ao poder de Roma. As suas informações para o Senado influiram n'isso, e por ventura foram seguidas mais tarde por outros generaes com o exito desejado. Lellio, com o seu profundo saber, tratou de ir colhendo todas as noticias que importavam ao interesse de Roma, e com as notas que tomava, inquirindo dos povos e dos costumes, escreveu uma carta ao Senado, da qual alguns trechos foram aproveitados pelos geographos contemporaneos. Narrava o Proconsul:

«Cumpre ter sempre presente, que a Lusitania é habitada pela mais poderosa das nações hispanicas; e que achando-se já subjugadas as outras, é esta a que se atreve ainda a deter as armas romanas.

«Não provêm a sua força do numero dos seus habitantes, mas da sua resistencia devida a um temperamento tenaz e incansavel, a uma dignidade individual que antes prefere a morte a qualquer apparencia de escravidão.

«Explicarei isto pela pureza do sangue lusitano; elles não se misturaram com os Celtas, que haverá quatro seculos invadiram a Hespanha e conseguiram alliar-se e fusionar-se com os Iberos. Na Lusitania não aconteceu como nas Gallias, quando ahi se effectuou a conquista do Celta invasor; o lusitano não cahiu na servidão militar como o gaulez. O povo vive espalhado por casaes, villares, pobras, agricultando, deixando o trabalho dos campos ás mulheres, desde que é preciso correr ás armas para defender a terra; as Cidades são confederadas entre si, tambem no intuito da defeza, e para o fim de governo administrativo. São elles que votam em Conselho armado a guerra defensiva, e que elegem os seus chefes e generaes, declarando cada povo ou localidade com quantos Cavalleiros ou infantes contribuirão para a guerra contra os Romanos. Os Chefes eleitos apresentam-se na entrada de Maio promptos para a campanha, seguidos dos seus Companheiros, que são todos os homens seus dedicados, soldurios e protegidos, que os seguem por toda a parte, e lhes obedecem incondicionalmente. É esta a organisação do seu exercito. E de Viriatho me contam, que elle tem, além do commando geral de todas as forças, uma guarda de Mil Soldurios, que desde a matança do Tribola, em que salvou o exercito Lusitano da perda immediata quando já propunha a rendição, ficaram constituindo a sua Guarda de corpo, com juramento de lhe não sobreviverem morrendo elle em campanha, como prova da sua Irmandade heroica. Desde o desastre de Tribola até hoje muitos d'entre os Mil Soldurios têm morrido nas guerras com Plancio, com Claudio Unimano e Caio Nigidio, mas esse numero está sempre completo, porque a maior gloria que póde aspirar um guerreiro lusitano é jurar o pacto de amisade na vida e além da morte, sendo eleito em consequencia de feitos extraordinarios um dos Mil de Viriatho. Com uma organisação militar que assenta no vinculo sentimental da confraternidade, e que se move pela emoção hallucinante da Patria, as Legiões romanas nada pódem, e a estrategia dos Pretores fracassará sempre desde que continuem com o systema das batalhas campaes, em um terreno cheio de anfractuosidades perigosissimas e que os naturaes conhecem perfeitamente.

 

«Apontando estes contras não quero espalhar o desânimo; e assim como Roma já soube tirar uma lição luminosa dada por estes barbaros, adoptando para o seu exercito a Espada hispanica, que lhe tem proporcionado victorias, d'elles temos a tirar ainda a arte de os vencer. Porque, rigorosamente, os Lusitanos não pódem ser vencidos senão pela perfidia. Sabereis que entre a raça dos Iberos e a dos Lusitanos ha um odio irrefreavel mas latente; nunca se ligam, nem se entendem, e a sua aversão mutua separa-os mais do que as inaccessiveis fronteiras de rios caudaes ou de alterosas montanhas. Passarão os seculos, mas esta antinomia prevalecerá. É sobre ella que Roma deve apoiar o seu dominio; muitos povos da Lusitania estão hoje confundidos em territorio iberico, e Viriatho conseguindo reunil-os para a Confederação defensiva em que trabalha expulsará o poder de Roma da Hespanha, com certeza e não tarde. O Ibero lisongeia-se com os contactos da soberania de Roma: dêem-se-lhe titulos de cidades municipaes, attraiam os seus filhos a Roma, e elles ficarão submissos, porque adoram o poder; aproveitemos o odio do Ibero para demolir o Lusitano. Para aniquilarmos o Lusitano é debalde que empregaremos a espada, mas é infallivel o resultado impellindo-o para a união iberica. Hoje toda a Lusitania tende a retomar a extensão primitiva, e unifica-se moralmente á voz de Viriatho, que se acha revestido entre o povo de um prestigio maravilhoso: nada menos do que acreditarem todos que elle é invencivel. Nós sabemos quanto esta credulidade influe no animo das tropas e decide das batalhas. Corria por aqui entre as tribus da Lusonia que appareceria um guerreiro montado em um Cavallo branco, e que elle conseguiria repellir o estrangeiro invasor; todos hoje consideram Viriatho como a realisação d'essa velha prophecia, e os companheiros que lhe deram o Collar de ouro do commando ou a Viria, foram os primeiros que o acclamaram pelo nome de um guerreiro prestigioso do tempo de Annibal, chamando-o VIRIATHO! Morto este chefe dissolver-se-ha a Lusitania; porque esse profundo sentimento de raça e de patria, que anima as tribus lusas, carece de uma representação que as identifique. Viriatho deve ser morto; sem o que, não acabará a campanha e Roma será sempre vencida. Urge pensar n'isto e só n'isto. Simulem-se campanhas, mas vise-se a este fim unico. Perguntareis: Quem hade matar Viriatho? Por certo, que nenhum general romano ou cavalleiro audacioso o desafiará para um combate individual. Mas, já indiquei o caminho: o odio dos Iberos e dos Lusitanos entre si é insondavel, e não faltará um Capitão de sangue iberico que se preste a alcançar a gloria d'essa traição.»

Era mais longa a Carta de Caio Lellio ao Senado; muitas das suas passagens foram aproveitadas pelos geographos gregos e chronistas romanos, de épocas ulteriores, e pelos historiadores que referiram as Guerras viriathinas. A parte que interessava directamente á politica romana foi lucidamente comprehendida, não só pela experiencia dos anteriores desastres, mas pela confiança no tino indiscutivel de Caio Lellio. Por isso nos Annaes da Republica não se referindo nenhum combate dado por Lellio na Lusitania, inscreveu-se que imprimira aos successos uma direcção que os tornava menos favoraveis aos Lusitanos.

O effeito das palavras sensatas de Lellio era tardio, e os acontecimentos atropellavam-se exigindo uma acção immediata. Para os espiritos ambiciosos a missão de Lellio tambem fôra frustrada; era uma derrota como as outras, mas sem apparato. O Senado obedeceu á corrente da opinião: n'aquelle anno de DCIX da Edificação da Cidade, e sexto da Guerra dos Ladrões, foram eleitos Consules Quinto Fabio Maximo Emiliano, e Lucio Hostilio Mancino, filhos e irmãos de afamadissimos generaes, que tinham levado as armas romanas ao maximo esplendor na victoria de Pydna, e na destruição de Carthago. Fervia-lhes o sangue; Quinto Fabio empenha-se para vir tomar pessoalmente o commando na guerra da Lusitania. O Senado attendeu o seu desejo dando-lhe a ordem peremptoria.

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