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Viriatho: Narrativa epo-historica

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XIV

Toletum estava em festa; pela presença d'esses homens ornados de collares de ouro e braceletes, e acompanhados de numerosos sequitos de soldurios e ambactes. O pequeno grupo dos Endres levando á sua frente o venerando Idevor saíu a saudal-os á entrada da cidade, e juntos todos fôram tomar a refeição ou consoada e libar grandes covilhetes de cerveja. Á meza um dos castellões, Leucon, chefe de tribus celtibericas, lançou a phrase:

– Dizem que Viriatho, o vencedor de Vetilio, é um simples pastor da Serra, que apascenta gado alheio lá no Herminio maior, que separa as duas Beiras?

Idevor percebeu uma vaga intenção de amesquinhar a capacidade militar do vingador dos morticinios de Galba, e com a clareza de uma consciencia pura, que de tudo se informára, respondeu:

– Eu conheço a vida d'esse valente pastor, desde o tempo em que o seu nome era simplesmente Ouriato. Quantos aqui possuem gados, sabem qual é o valor de um homem a cuja guarda se confiam para mais de vinte mil cabeças de variados rebanhos, que elle tem de defender através das marchas da deambulação, quando são levados das terras seccas, sem prados e abrazadas pelas calmas, para as pradarias de serras chêas de barrancos, de ursos e lobos e mesmo de salteadores. Este serviço dos gados na sua transhumação está organisado na instituição da Mésta, que dirige a juncção dos gados de todos os proprietarios; e n'este serviço só chegam a Maioraes aquelles moços que revelaram qualidades singulares de intelligencia, coragem, ardil, e que pela valentia ou astucia souberam salvar os rebanhos de perigos ou assaltos repentinos. Ouriato chegou a Maioral da Mésta em uma edade quasi de adolescente; foi n'esse serviço violento da deambulação dos gados, e responsabilidade de tantos valores, que elle provou além da valentia e disciplina, as qualidades mais intemeratas de caracter. É verdadeiramente um homem: e, pela resistencia ao soffrimento e ás contrariedades da sorte, é o typo dos lusitanos. O que insurreccionou a sua alma contra os Romanos foi o ter assistido á mortandade iniqua de trinta mil lusitanos ordenada por Galba, de que escapou maravilhosamente; e hoje o seu poder sobre o exercito provém-lhe de o ter salvado da rendição já combinada, e de no barrocal da patameira ter destruido quasi metade do exercito romano, desmoralisado pela morte do Consul Vetilio. Este homem é perante o povo uma reapparição d'esse Viriatho, que os romanos chamavam o Principe da Lusitania, e que indo combatel-os á Italia, soccumbiu na famosa batalha de Cannas. Esta auréola maravilhosa é tambem uma força, e com ella podemos contar, porque Viriatho será o libertador da Lusitania. Temos um general consumado; o povo accode ao seu chamamento, falta só o apoio dos chefes das Contrebias.

A ameaça das reprezalias romanas fez comprehender a todos esses presidentes das cidades federadas, que tinham de dar o seu apoio a Viriatho como recurso da propria segurança:

«Que seja entregue a Viriatho o Collar de ouro como insignia do poder, e para que lhe obedeçâmos como nosso egual.»

Foi geral o assentimento. Então Idevor, erguendo-se com um magestoso aspecto, disse:

– Eu sei onde pára occulta uma Viria, que attesta essa epoca em que todos os Estados da Lusitania estavam ainda unidos. É um Collar de ouro de tres Crescentes! Representa a mutua solidariedade de raça, costumes e Governo da Callaecia, da Betica em volta da Lusonia! Eu só guardava o segredo d'esse thesouro incomparavel, muitas vezes receiando que elle se extinguisse com a minha vida! Felizmente que se ergueu um homem, que pelos seus feitos os outros julgam digno de receber a Viria! O Collar dos tres Crescentes está occulto em uma caverna do Herminio maior, desde o tempo das invasões da Hespanha pelas hordas orientaes. Pouca gente terá pisado as veredas que conduzem ás Cavernas lindissimas do Cantaro Magro; mas no Covão do Boi, ao sul do Cantaro raso, existem umas ruinas ou Catacumba descoberta, com menhires e potentes monolithos sobrepóstos; do fundo da rocha d'onde se avista o bôjo do Covão Magro com o singular especto de uma enorme carranca, é ahi que está excavada na rocha uma Arca ou caixa em que se contém o Collar de ouro dos tres Crescentes. Eu me presto a ir buscal-o, e dentro em poucos dias aqui estarei de volta.

A revelação de Idevor foi recebida com acclamações de assombro; e os chefes das Contrebias, pedindo-lhe que fôsse buscar o thesouro da raça, bradaram:

– Seja dado a Viriatho o Collar de ouro dos tres Crescentes.

Carros com pipas de cerveja passavam pelas ruas, e taboleiros com fartes de farinha de bolota á cabeça de moças com arrecadas de ouro nas orelhas e grossas contas de ambar em volta de pescoço; formava-se o arraial para a entrada de Viriatho.

XV

A chegada de Idevor a Toletum com a Viria dos tres Crescentes de ouro, de que até então se fallára como fabula ou tradição confusa, coincidiu com o regresso de Viriatho seguido da numerosa cavalgada dos seus Soldurios, que o fôram esperar ao caminho, e dos tres companheiros que lhe formavam a trimarkisia, Ditálcon, Andaca e Minouro. Estes tres bravos eram do pequeno numero dos sobreviventes da mortandade de Galba, e pela tremenda desgraça se achavam ligados ao agil pastor que matára os dez elephantes africanos, e com elle andaram pelas cidades da Lusitania insurreccionando os povos contra a devastação de Roma; vinculava-os uma decidida dedicação áquelle em quem reconheciam espontaneamente o maximo ascendente moral. Ditálcon era o mais velho, intelligente e reflectido, capaz de desempenhar missões difficeis; Andaca, joven e phantasioso, mostrava-se repentinamente enthusiasta ou desalentado, segundo as pessoas com quem tratava; Minouro, tinha algumas qualidades d'estes dois companheiros; mas predominava n'elle a solercia, ou antes a falta de franqueza no caracter. A victoria e a acclamação de Viriatho ligou-os mais intimamente ao chefe reconhecido, de quem não tinham inveja. Quando elles viram Idevor e o triplice Collar, disseram entre si:

– Para o Principe da Lusitania.

Viriatho fitou-os com seccura, e abaixou os olhos desdenhoso, com o desgosto de que alguem suspeitasse que combatia por outra ambição que não fôsse a liberdade da nossa Terra.

Os Chefes das Contrebias, avistando Viriatho, caminharam ao seu encontro, saudando-o com gritos de alegria, e erguendo ao ár as suas lanças de prata, com que presidiam ao sorteio das terras, e á entrega dos gados da sua região aos Chefes da Mésta, e mesmo aos tribunaes á sombra da carvalheira, onde davam as sentenças. E elles proprios, vendo o sabio Idevor junto de Viriatho com o Collar de ouro na mão, bradaram com enthuziasmo:

– Lançae-lhe ao pescoço a Viria do Commando, aqui, agora, antes de entrar na cidade.

Idevor obedeceu com jubilo, e lançou-lhe o Collar de ouro. Disse um dos chefes das Contrebias:

– Agora, dignificado com a Viria, é que Ouriato ficará para sempre sendo o nosso Viriatho.

Idevor, que conhecia as mais antigas tradições da raça, acudiu com ár mysterioso:

– Se procurarmos o sentido mystico que se contém no nome de Viriatho, vamos encontra na palavra scythica Vrindus, que designa o Touro, o totem da nossa antiga raça e civilisação dos Ligures, a relação com a valentia do heroe e a sua missão religiosa do combate libertador.

Assim conversando, a brilhante Cavalgada entrou em Toletum, dirigindo-se ao terreiro da cidade em que estava erecta a columna denominada Pilumnos, que symbolisa a independencia da communa ou Municipio. Foi ahi, que antes de destroçarem, pediram a Idevor, para que recitasse a Saga ou narrativa tradicional que se dizia existir da Viria ou Collar de ouro dos tres Crescentes.

Idevor não se fez rogado, e começou em uma recitação quasi melodica o poema em que era celebrado este Symbolo da Confederação primitiva dos estados da Lusonia, antes de um invasor oriental ter penetrado na Hespanha, explorando-lhe as riquezas, e dissolvendo-a pelo espirito separatista com que enfraquecera a raça. Como os Aédos de Hellade, diante das tribus doricas, eolias e acheanas, Idevor unificava idealmente as tribus lusas recitando o poema de:

CHRYSAÔR
 
Do Herminio Maior na immensa altura
Vê-se o Corgo das Mós, que as nuvens fura,
Formado por tres grupos de rochedos,
Como irmãos que se apoiam firmes, quedos!
Sobre o do centro, como em pedestal,
Bloco estupendo, grandioso assenta;
De um Gigante a cabeça representa,
De longe contornando no horisonte
Negro perfil de mysteriosa fronte.
 
 
Das convulsões da Natureza activa,
No calor de uma lucta primitiva,
São taes blocos relêvos manifestos:
Mas ha quem reconheça n'esses restos,
No bloco e nos tres grupos de rochedos,
Da Lusonia antiquissimos segredos:
Governou esta terra um patriarcha,
Théron, desde o norte ao sul a abarca,
E aos extrangeiros a fronteira fecha.
 
 
A seus tres filhos este Estado deixa:
 
 
– Se a terra de Lusonia dividida
Fôr entre vós, por certo enfraquecida
Fica exposta ao assalto do estrangeiro,
D'Africa, ou levantino aventureiro.
Mas se a Lusonia unida se conserva,
Não entra aqui indomita caterva;
E grande, desde o Sacro Promontorio
Até ao mar Cantabrico, este emporio
Que vae dos Pyreneus té á vertente,
Será da Hespanha o estado mais potente. —
Do mundo era por toda a redondeza
Théron, por causa da sem egual riqueza,
De Chrysaôr por nome conhecido.
Pelo pezo da edade amortecido,
Chama os tres filhos; vieram reverentes,
E um aureo Collar de tres Crescentes
Lhes entregou, no seu momento extremo:
 
 
– Dou-vos a insignia do Poder supremo.
Os trez Crescentes d'este aureo Collar,
Pela crença da religião lunar,
As tres phases da Lua symbolisa.
São a Lusonia integra, indivisa,
Abrangendo a Tartéssida virente,
Tarraconia, e Callaecia, a mesma gente!
Ah, se partirdes este Collar de ouro,
Cae a soberania… escuro agouro.
 
 
E receiando o temeroso evento
O velho Chrysaôr exhala o alento.
 
 
Deram os tres Irmãos ao pae amado
Nas Cavernas do Cantaro Delgado,
Sepultura em pyramides alpinas,
Que têm o aspecto de um castello em ruinas.
Ante o cadaver, na alta sepultura,
Entre si, cada um dos Irmãos jura
Não partir o Collar dos tres Crescentes,
Mantendo unidas as lusonias Gentes.
Em catacumba do Covão do Boi
O Collar de Ouro escondido foi,
Fixando, do local para lembrança,
Aquelle d'onde a vista longe alcança
Sobre o Cantaro Magro ingente bôjo
Que de bruta Carranca tem o antojo.
Resguardado na Arca de um fraguedo,
Os tres Irmãos em mutuo segredo
Conservam da Lusonia, ora indivisa,
Do Poder soberano essa divisa.
Ha entre os tres Irmãos tanta harmonia,
Que sentindo o que cada um sentia,
Ou unidos no mesmo pensamento,
Realisam o accordo em um momento,
Um longe, na Callaecia laboriosa,
Outro áquem na Tartéssida formosa,
Ou já na Tarraconia grande e forte.
 
 
Quanta prosperidade d'esta sorte
De Lusonia engrandece os tres Estados,
Rica de bens, dinheiros, e de gados!
Mas a faina do Mar fôra esquecida,
Trocada pelas da agricola vida!
Ah! d'aqui a catastrophe resulta,
Que a liberdade lusa atroz sepulta.
 
 
Quantos Povos invejam com insania
Os viçosos Jardins da Bastitania,
E vêm pelos cantares dos Homerides
Buscar o Elysio e os Jardins Hispérides,
Crendo encontrar aqui o Velocino,
Que reconhecem ser gado bovino!
Aventureiros lá do mundo Asiano,
Arribaram ao porto Gaditano,
Affrontando do pélago o terror,
Para roubar o gado a Chrysaôr!
Heracles forte, o tyrio, vinha á frente,
Doésta os tres Irmãos, soberbamente,
Para um combate a corpo, singular.
Terrivel o recontro, atroz o azar!
Caiu dos Tres Irmãos o irmão mais velho,
Heracles o esmaga sob um joelho!
E a mesma dôr, que a vida lhe arrebata
Aos outros dois Irmãos é a que os mata.
Desde então a Lusonia sem commando,
Viu-se roubada de estrangeiro bando,
Que a invade, a devasta e a governa,
Perdida a ideia da união fraterna!
A aspiração moral ficou intacta!
Do Collar de ouro nunca se desata
Nenhum dos Tres magnificos Crescentes;
E á espera de outra Éra e novas gentes,
Aguarda, ao fim do secular destrôço,
Um bravo e audaz a quem cinja o pescoço.
 

O sabio Idevor, dominado por uma commoção profunda, interrompeu a recitação do Poema de Chrysaôr, que segundo a tradição contava milhares de annos de vetustade; e de facto os successos referidos narravam as primeiras invasões no territorio hispanico, que antecederam todos os documentos ou monumentos da historia.

 

Os chefes das cidades confederadas applaudiram com os seus renchilidos e vivas o recitador, o Endre sapiente; o velho, mostrando o Collar de ouro dos tres Crescentes, avançou para junto de Viriatho, e depois de fazer uma vénia solemne lançou-lhe ao pescoço a Viria da triplice soberania.

XVI

Emquanto os Cavalleiros decorados de Collares de ouro de um só Crescente rodeavam o novo Caudilho lusitano, começou a ajuntar-se muito povo pelo empenho de admirarem de perto o vingador, aquelle que soubera inflingir a formidanda derrota ao exercito consular. E naturalmente aos gritos com que se saudavam as varias regiões autonomas: – Viva a Callaecia! Viva a Tartéssida! – começavam-se a organisar dansas peculiares dos montanhões e dos ribeirinhos, vistosas e com caracter guerreiro, outras surprehendentes pela agilidade dos pés e dos saltos, com um sapateado rythmico, ululando phrases que tornavam mais delirante o enthusiasmo. A dansa mais querida era a propriamente armada, formando uma grande roda ou circulo girando ora sobre a direita, ora sobre a esquerda, por homens de mãos dadas, mas tendo cada um a lança, da qual lhe provinha o nome de Palotêo ou Paulitos, ora avançando, e já recuando ao compasso do canto de um Côro gigantesco, terminando no cabo de todos os passos por um simulacro de batalha.

No fim do animado palotêo, appareceu um grupo de mocetonas gaditanas, formosas e desenvoltas, com braceletes ricos e armilhas nos braços e pernas, dansando á moda da Tartéssida, e com seus adufes, dando-lhe um aspecto religioso orgiastico, estonteante. Os Romanos, que vieram á Hespanha Ulterior, sentiram-se fascinados por estas dansas das soalhas ou castanholas metalicas, e memoraram em seus livros a Betica crusmata e a Tartessiaca aera, que tanto iria enlouquecer a mocidade dourada da Cidade eterna. Proseguindo na sua dansa fôram as bailadeiras beticas approximando-se do grupo em que estava Viriatho, dirigindo-lhe em Côro em fórma de corranda:

A Canção da Viria
 
Onde ha fontes de agua pura,
   Vamos a sêde matar.
 
 
Onde ha graça e formosura,
   Vamos com paixão amar.
 
*
 
Onde ha um bravo que vence,
   Vamos-lhe a gloria acclamar!
 
 
A Viriatho pertence
   De ouro o triplice Collar!
 
*
 
Brilha n'esses tres Crescentes
   Do sol fulgor singular:
 
 
Sigam os homens valentes
   Esta nova luz polar.
 
*
 
Onde ha odios e vingança,
   Vamos a sêde matar!
 
 
Da Patria livre a esperança
   Vamos com paixão amar.
 
*
 
Siga o triplice Collar
   O que ser livre aspirar!
 

Terminadas as dansas e cantares do vistoso arraial, os Chefes das Contrebias no meio de tanta alegria começaram a atirar pequenas moedas de prata ás rebatinhas, que o povo em chusma corria a apanhar, atropellando-se, em cambalhotas, em que cada um no meio de estrondosas risadas mostrava a maior agilidade e presteza. Essas moedas eram quasi todas de valor de um drachma, e cunhadas nas cidades lusitanas como manifestação da sua autonomia. Viriatho notou n'aquelle espectaculo divertido, que as turmas do povo, ao agarrarem as moedas, miravam-as no verso e anverso, e em seguida guardavam umas com soffreguidão, e arrojavam para longe com desdem as outras. Inquiriu do caso inesperado; foi então, que Idevor lhe explicou essa manifestação espontanea e significativa da alma popular, mostrando-lhe dois d'esses differentes numismas de prata:

– Reparae n'esta moeda: De um lado está cunhada uma cabeça viril, em cabello; tem barba, e um collar ao pescoço. Do outro lado, vêdes, um cavalleiro a galope, com a lança em riste! Agora a outra moeda: em uma face está impressa uma corôa de carvalho, e no reverso figura um Colono conduzindo dois bois, como quem lavra a terra. O povo conhece esta differença, e o que ella significa. Todas essas moedas do Cavalleiro da lança, são por antigo costume cunhadas em Cidades livres e autonomas, inscrevendo n'ellas o seu nome, como vereis em tantas que para ahi se arrojam ás rebatinhas, como estas…

E Idevor foi mostrando ao acaso as moedas, e lendo os nomes de Toletum, Alva, Bilbilis, Segovia, Segobriga, Carissia-Celsa, Sactabis, Toriasum, Clunioo, Gili, Italica, Sacelli, Sagunto, Lastigi, Osca, Ilipla, Itvci. E interrompendo o exame continuou:

– Roma emprega todos os meios para substituir estas moedas pelas do Colono conduzindo os bois, com que representa o seu dominio, pela corôa de carvalho, e a servidão dos povos submettidos como os bois ao arado, as quaes faz circular nas suas cidades estipendiarias e municipaes.

– Comprehendo agora o sentimento do povo. Repelle o jugo do estrangeiro, e só acceita o Cavalleiro da lança. É esse sentimento que me fortifica.

XVII

Os chefes das Contrebias, ao terminar das festas, saudaram um por um a Viriatho, e lhe fôram contando na mão cinco pequenas moedas de prata, d'aquellas que pouco antes tinham arrojado á multidão. Era a expressão symbolica do direito individual, em uma sociedade que se regia pela communidade das terras lavradas, das pastagens, e dos celleiros do clan para as colheitas agricolas.

O territorio lusitano pertencia exclusivamente ás tribus ou gentes, sendo annualmente sorteadas pelas diversas familias as geiras que haviam de cultivar. Sobretudo nas margens fertilissimas do Douro, e no cantão dos Vacceos, é que este communismo tradicional se conservava na sua maior pureza. Com o tempo introduziu-se o costume de cada familia conservar como proprio o terreno de cinco acres, ou agra em que estava a casa, o poço e a horta. Era o que o rifão popular allude ainda, quando para significar a indigencia a exprime: —Sem eira, nem beira, nem ramo de figueira.

Este terreno, que tambem na primitiva familia romana tinha o nome de Haeredium, era o fundamento da estabilidade da familia, e, sempre inalteravel, era um vinculo ao qual se incorporava qualquer cercado em que se estabelecera um novo casal. Para que esse solar se mantivesse sempre indiviso, a herança dos irmãos da mesma familia fazia-se excluindo-os da propriedade da terra dando-lhes cinco moedas de prata.

Viriatho comprehendeu o sentido da offerta que lhe fizeram os chefes das Contrebias. Nos territorios da Lusitania elles possuiam como seus proprios e individuaes os solares dos Castros, Castrellos, Crôas e Môrros, Cabêços e Citanias, Penhas e Cidadelhes; e a entrega das cinco moedas de prata, significando a affirmação de independencia solarenga no meio dos territorios communaes, n'este momento representava o reconhecimento de uma suprema chefatura. Era o direito soberano de Chevage.

Na bandeira branca dos Mil de Viriatho, e no escudo do valente cabecilha, d'aquelle dia em diante ficaram representados os cinco dinheiros, chamando-se-lhes por isso o Pendão das Quinas, o Escudo das Quinas.

XVIII

Viriatho foi visitar as officinas dos Espadeiros de Toletum, que eram afamados no mundo pela tempéra rija que sabiam dar ao ferro com que fabricavam as armas hespanholas. O seu nome já era conhecido entre os Espadeiros, e um d'elles com aspecto de auctoridade deixou a forja e veiu ao encontro do Cabecilha com alegria:

– Bem esperava vêr-vos, e saudar-vos! As espadas que temperâmos carecem de braços firmes como os vossos.

Viriatho tocando-lhe com a mão no hombro, e avançando pela officina ao ruido das bigornas em que se rebatiam a martello as laminas já frias, volveu-lhe:

– Andergus! ás espadas que fabricaes póde-se-lhes chamar magicas, porque tornam invencível o homem que as brande.

O espadeiro sorriu-se com orgulho, e começou a explicar a Viriatho o valor das armas que se fabricavam n'aquelle fóco de uma antiga tradição metalurgica:

– Sabereis, que os Romanos quando vieram á Hespanha combater os Carthaginezes usavam ainda uma miseravel espada de cobre forjado a que chamavam Ligula, a qual vergava com a força do golpe e que elles durante o combate endireitavam com o pé. Quando os Romanos viram as nossas espadas de ferro, adoptaram esse typo para o seu armamento, que mandaram fabricar em Astorga, Valencia e a quantos armeiros encontraram espalhados por essas Hespanhas. Mas, o segredo da tempera do aço só nós os Espadeiros de Toletum o possuimos, e é esta a superioridade das espadas lusitanas. Os Romanos nunca nos poderam apanhar esse segredo.

Viriatho escutava com encanto e assombro a observação de Andergus, e sentiu-se animado de uma intima confiança com aquella revelação: as espadas lusitanas eram de aço. E Andergus appresentou-lhe uma espada:

– Vêdes! aqui está uma espada romana; tem de extensão um pé e quatro polegadas, larga de tres dedos, cortando com dois gumes, e de ponta aguçada, punho do proprio metal. Serve para ferir de golpe de alto a baixo, ou de estocada a fundo. Mas… reparae como esta espada se entorta e fica vergada.

E calcando a espada debaixo do pé esquerdo curvou-a:

– É romana; cá está a marca gravada. Reparae: ABVRBCDCIII. Não conheceis talvez o que querem dizer estas letras: Ab urbe condita, da fundação de Roma, no anno seiscentos e tres.

 

– Ah! do anno da matança. Acudiu Viriatho.

– Agora vêde esta nossa espada toledana; um golpe d'ella corta no ferro como se fôsse em chumbo. É mais comprida do que a romana uns dois palmos, e de folha mais estreita. É mais leve, e incute o golpe mais longe, porque a tempéra do aço dispensa a grossura, necessaria ao ferro doce. É com estas espadas que nos havemos achar frente a frente com os Romanos; elles não conhecem esta nossa vantagem.

No semblante de Viriatho transluziu um raio de alegria; e abraçando Andergus, como um d'aquelles de quem dependia a liberdade da Lusitania:

– Não temeis que um dia vos roubem o segredo da tempéra do aço?

– Esse segredo está n'estas aguas do Tagus, e nas suas areias auriferas. É aqui n'esta região que sómente se póde dar ao ferro em brasa a dureza impenetravel.

Viriatho ficou pensativo, e como que voltando a si de um transporte, exclamou com jubilo:

– Uma terra que tempéra com as suas forças occultas o ferro por essa fórma unica, essa terra só póde ser pisada por homens livres communicando ás suas fibras a rijeza do aço. Ah, sinto em mim alguma cousa d'essa tempera das espadas de Toletum.

Andergus fallou-lhe mysteriosamente:

– Não é só a agua e as areias auriferas do Tagus que dão ao ferro essa força inquebrantavel; nem tampouco ser o ferro das minas de Mondragon; este céo tambem entra para ahi em alguma cousa. Reparae para este céo azul e profundo. Quando o metal está derretido, e á sua superficie a calda reflecte esse azul ferrete do céo, é quando álgum influxo da abobada etherea diamantina desceu e veiu dar-lhe tão assombrosa qualidade.

Andergus fallava com uma confiança absoluta em Viriatho, e n'aquelle momento para o caudilho lusitano não guardava segredos. Depois, com um certo orgulho de tratar com Viriatho, de quem tanto se fallava, e maravilhado de o encontrar lhano e despido de toda a soberba, confessou-lhe:

– Muito quizera forjar por minha mão uma Espada, que fôsse a vossa companheira nas batalhas que ainda tendes de dar contra o Invasor romano. Não devo fazel-o; ha uma Espada heroica já consagrada por victorias, com o poder que torna invencivel aquelle que a cingir, e é essa a que vos compete.

– Eu nunca ouvi fallar d'essa Espada.

– É a espada Gaizus! devolveu promptamente Andergus: Não sei aonde ella está occulta, mas ha por certo quem o saiba. É um talisman de liberdade. Dizem que está enterrada, e creio que em chão lusitano, ou com certeza na sepultura de algum bravo. Se Indibilis, Mandonio e Salondico a tivessem brandido! Ah, se a espada Gaizus apparecer, e vier á vossa mão, saberão os romanos o que é um raio…

Viriatho presentiu que uma força maravilhosa se ia desvendando; mas Andergus fallava de uma tradição vaga, e nada mais podia adiantar. E levando o caudilho lusitano pelas officinas, parando ao pé das forjas, das bigornas e rebolos, em que trabalhavam activos armeiros, mostrava-lhe as armas diversas que estavam fabricando:

– Já podestes vêr a Spatha e o Gladius, comparando-os com a nossa Espada hispanica de aço puro, com uma nevrura ao meio ou especie de quina; agora reparae para esta Espada curta, é a Machoera, á maneira de punhal, para combater corpo a corpo, mas é propriamente uma adaga. Verdadeiramente lusitana é a Rhanda, a faca ou naifa de quasi dois palmos, pendurada á cinta, e que acompanha sempre o homem quer nos trabalhos dos campos ou nos da guerra. Até isto os Romanos nos roubaram, porque de ha muito deram em usar a Rhanda pendurada ao lado direito. Se nós fossemos a reclamar o que nos pertence, tambem como conhecedor pratico posso attestar, que a Lancea romana é imitada da nossa lança ou chuço peninsular: tem uma ponta de cobre, outra de ferro, e algumas como a Soliferrata são completamente de ferro. Mas, deixemos aos homens que nos devastam dizendo que nos querem civilisar, a gloria dos seus roubos; aqui estão as Tragulas, com a sua ponta em fórma de anzol, arma terrivel que tem ferido generaes carthaginezes e consules romanos.

– Tenho mais confiança na Falcata, uma gadanha que chega a dar os resultados de uma boa espada. – Acudiu Viriatho, terminando o seu pensamento: – Quando o povo quer, com as suas foices, gadanhos, forquilhas e engaços, é capaz de levar adiante de si o poder do mundo. Em Roma já se diz, que o mais destemido general não é capaz de fazer virar as costas a um Cantabro. Resta-me a esperança de que ainda hão de tremer ao encarar um Lusitano, que nenhuma calamidade descorçôa.

Viriatho despediu-se de Andergus, que voltou para a sua incude, quando viu apparecer o vulto de Idevor, que o procurava. Pouco fallaram; mas um movimento repentino de todos os terços e catervas lusitanas, postos em marcha instantaneamente, era revelador de que já pisava terras da Hispania Ulterior um general romano, um Pretor de confiança. Sobre os escudos feitos de couro crú e cordas de tripa entretecidas de arâme, os soldados lusitanos batiam pancadas rythmadas, a cujo som cantavam os seus hymnos triumphaes e os clamores do Tripudio antes de entrarem em combate. A marcha fazia-se a esta cadencia das Cetras, que resoavam com estridor de alegria, em passos e saltos em que antegostavam os impetos da acção.

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