Za darmo

Viriatho: Narrativa epo-historica

Tekst
0
Recenzje
iOSAndroidWindows Phone
Gdzie wysłać link do aplikacji?
Nie zamykaj tego okna, dopóki nie wprowadzisz kodu na urządzeniu mobilnym
Ponów próbęLink został wysłany

Na prośbę właściciela praw autorskich ta książka nie jest dostępna do pobrania jako plik.

Można ją jednak przeczytać w naszych aplikacjach mobilnych (nawet bez połączenia z internetem) oraz online w witrynie LitRes.

Oznacz jako przeczytane
Czcionka:Mniejsze АаWiększe Aa

V

De todas aquellas povoações até onde chegára o rumor da horrente catastrophe, partiram homens audaciosos, movidos pela curiosidade para observarem com os seus olhos os despojos que restavam; alguns não voltaram mais aos seus lares, porque iam engrossando uma onda dos revoltados contra tamanha traição. Os que regressavam espavoridos contavam o assombro que lhes causára o vêr uma ampla campina coberta de cadaveres incompletamente carbonisados, em volta dos quaes uivavam lobos em numerosas alcateias, e aguias e abutres que esvoaçavam em bando sobre a vasta presa, cujo fetido os attrahira de longe. As calmas estivaes tornavam-se mais intensas, apressando a putrefação de tantos cadaveres; as fortes nortadas levavam até muito longe os miasmas, e n'uma e n'outra cidade da Lusitania appareciam ameaços aterradores da peste. Era a perspectiva de uma mais horrivel devastação, porque se não via o látego mortifero que flagellava os povos. Um pensamento de piedade pelos mortos occorreu suscitado pelas calamidades:

– É certo que esses corpos insepultos reclamam dos vivos o cumprimento de um dever sagrado! Em quanto lhes não dermos sepultura condigna, suas almas andarão errantes diante de nós, perturbando-nos, perseguindo-nos até acordarmos do nosso desdem egoista. Carecemos para propria segurança de lhes darmos sepultura segundo o patrio e antigo costume, quando se encontra um morto n'um ermo ou n'uma encruzilhada. Que cada cidade, villar ou aldeia, faça suas peregrinações ao campo da matança, e seguindo a tradição da piedade, cada um arroje uma pedra para cima dos cadaveres até que se formem Montes Gaudios, que serão os tumulos venerandos dos nossos desventurados conterraneos.

Segundo aquelle costume, vogou de cidade em cidade a ideia da funebre peregrinação, e não eram ainda bem passadas duas luas quando por toda a Lusitania se operára um movimento que ligava todas as povoações no mesmo affecto. Os mortos podiam agora mais de que os vivos, porque por via d'elles se uniam tribus até aquelle dia inconciliaveis, que iam visitar o campo da matança e lançar suas pedras para erguerem bem alto os Montes Gaudios, que deviam tornar-se não um simples monumento funerario, mas uma como torre de protesto e de eterna revolta. Muitos povos dispersos nas regiões de entre Durio e Minio, entre o Durio e o Tagus e mesmo os que se achavam para lá da banda de Traz dos Montes, desde a foz do Anas até ao Mar Cantabrico, adheriram á desolação dos Lusitanos, e mandaram tambem peregrinações ao campo da matança para que os Montes Gaudios attestassem aos vindouros que elles se consideravam formando parte d'este valente e activo povo ribeirinho que dos seus portos de Lez e das suas bem trabalhadas Lezirias tomára o nome nacional de Lusitania. O ecco da grande catastrophe produzida pela perfidia impune de Galba chegára egualmente aos confins dos territorios dos Asturios e Celtiberos. Os Povos denominados Carpetanos, os Vettões, os Vacceos e Callaecos, que sempre se tinham conservado apartados para o norte da Hespanha esperando constituir uma Confederação e unidade política sob o nome de Callaecia, agora sentiam-se dominados pela insondavel fatalidade que arrastára os destemidos e independentes Lusitanos á maior das ruinas; elles vierão em magotes vêr de perto a horrorosa mortandade, e arrojar piedosamente mais pedras para os Montes Gaudios. Esses tumulos cresciam, como attestando ao mundo, que eram innumeros os corações que pulsavam por inultos mortos, e que os mesmos braços que arrojaram aquellas pedras, serão os mesmos que arremessarão as suas lanças e brandirão as pezadas lorigas contra o fautor da execranda iniquidade.

Assim se fôram formando bandos e numerosas guerrilhas, imperfeitamente armadas, que clamavam por vingança; e vendo que muitas cidades alliadas dos Romanos, e outras por temor ou covardia, não tinham vindo celebrar a cerimonia dos Montes Gaudios, foi contra ellas que arremeteram na sua ancia de vindicta. Passavam ja de dez mil os Lusitanos que se ajuntaram em differentes guerrilhas, entregues á aventura e audacia de destemidos Cabecilhas, que fôram descendo para o sul da Peninsula, devastando e roubando quantos povos encontravam que estavam no goso do patronato romano. Chegaram até á Turdetania, essa opulenta região banhada pelo Betis, tendo por limite da parte do norte o curso do Anas; e levaram a sua audacia até ao ponto de atacarem a importante fortaleza de Gades, ou Gadir, como lhe chamaram os Phenicios. Não era sem rasão que os viajantes phenicios, gregos e romanos diziam que os Lusitanos eram o povo mais numeroso e valente entre as nações de toda a Iberia.

VI

A Hespanha Ulterior estava quasi completamente insurrecta. Passavam de dez mil os Lusitanos revoltados contra o poder de Roma, e que juraram sacudir o infame jugo. No seu Conselho armado decidira-se, que todo aquelle que podesse sustentar-se a cavallo, embora velho ou doente, se appresentasse para o combate; mesmo as crianças que podessem alevantar um chuço ficavam obrigadas a incorporar-se nas turmas e milicias de cada terra.

Era o começo de anno estival, e na entrada de Maio, em que se faziam as dansas e cantares debaixo do verde pinheiro, e em que os homens validos, os chefes de familia, effectuavam as grandes paradas das suas forças defensivas. Parece que o ajuntamento d'aquella multidão enorme respirava um ár de festa, uma alegria communicativa, em que a ideia de morrer pela liberdade da sua terra dava uma exaltação delirante; dir-se-hia que era a Primavera sagrada, em que novas colonias iam pelo mundo para fundarem uma outra cidade. Verdadeiramente era uma entrada em campanha, em que o costume vinha coadjuvar a necessidade. Viam-se homens da estatura meã, e enxutos de carnes, de cabellos pretos e olhos castanhos, ligeiros e ageis, capazes de resistir a todas as intempéries, soffrendo todas as privações mas sempre alegres; traziam pendurados ao pescoço, por correias, pequenos escudos de tamanho de quatro palmos, e prezas á cinta umas compridas facas, a que se soccorriam em lances decisivos, e ainda no combate pessoal. O braço era armado com uma lança comprida, com uma ponta de bronze e um gancho ao lado, servindo para ferir e prender aquelle que topasse na frente. Apenas lhes defendia o corpo uma couraça de linho crú fortemente tecido, ou treu, sobre a qual assentava uma cóta de malha tecida de arame, que nenhum dardo poderia atravessar. Capacetes de couro com triplice cimeira cobriam-lhes as cabeças, aparando com segurança os golpes dos montantes; outros guerreiros traziam os cabellos compridos, como usam as mulheres, cingidos com nastro na fronte, no momento das refregas; os peões appresentavam-se com cnémides, saiaes negros, e chuços; outros com bragas forradas de pele de cabra, ou safões. E os Cavalleiros, montavam alazões e fouveiros, com estribos em fórma de concha feitos de madeira; com mantos listrados formando quadrados variegados. Formavam grupos de trez em trez, a que davam outr'ora o nome de Trimarkisia, indo um dos Cavalleiros á frente no ataque, ficando mais atraz os outros dois para o defenderem e substituirem. Reinava uma certa ordem n'essa multidão, dividida em catervas de infantes ou peões, com alguns Cavalleiros nas alas extremas: e os Hastarios, os Sagitarios, ou archeiros, os Fundibularios, moviam-se com uma ligeireza extrema, tomando os Cavalleiros como pontos de mira para se ajuntarem no sitio em que se tornava mais urgente a defeza ou o ataque. Os Carros, ou Covões armados de longos espetos, eram puxados a quatro cavallos, empregando-os para romperem a ordem da infantaria inimiga, e para servirem de parapeito e estacada defensiva detraz dos quaes os archeiros arrojavam os seus dardos.

Foi no meio de uma anciedade de lucta, que entre as Catervas lusitanas correu a nova, de que já pisava terras de Hespanha o Consul Caio Vetilio, com tropas frescas e aguerridas; o Senado encarregára-o de reprimir o levantamento provocado pela infamissima traição de Galba, que, deixando-o impune, tacitamente a approvava. Vetilio chegou a Corduba, onde assentára o seu quartel general. Tudo se sabia no campo lusitano, porque não faltavam esculcas e mensageiros, que davam conta dos movimentos do velho Consul.

Em Corduba ia Vetilio ajuntando todas as tropas romanas, que estavam como presidiarias, formando phalanges com as que trouxera de Roma, e dando-lhes uma forte disciplina, que centuplicava a sua resistencia. Não havia tempo a perder; a rapidez do ataque muitas vezes decide da sorte da campanha, e Vetilio como general experimentado comprehendeu que tinha de luctar com tribus de uma resistencia tenacissima, que se deixavam matar, mas que não transigiam com a perda da liberdade da sua terra.

O territorio da Lusitania, que se conservára submisso, fôra, pela traição de Galba, agitado por uma insurreição tremenda; com a maxima rapidez e a marchas forçadas, o Consul Vetilio, no rigor do inverno, transpozera os Pyrenneus, vencendo difficuldades insuperaveis, e engrossando as novas Legiões com as tropas que nas provincias pacificadas estacionavam em seus quarteis de inverno. Entrava na Hespanha Ulterior com um grande exercito, maior do que aquelle com que partira de Roma, e o exito da empreza fôra bem calculado – cahindo de surpreza sobre as populações insurrectas, e impellindo-as á defensiva, sem tréguas, sem lhes dar tempo para organisarem a resistencia.

VII

Vetilio deu ordem para que o seu exercito, de mais de dez mil homens sahisse de Corduba, e seguindo em massa compacta pela Turdetania fôsse ao encontro das tribus lusitanas; e fortificadas por uma severa disciplina, contava que as tropas luctariam com vantagem contra Catervas impetuosas, mas sem a cohesão de um bom e seguro commando, nem a lucidez de um pensado plano estrategico.

E não se enganava. Ao segundo dia de marcha, Vetilio avistou ao longe, em um valle immenso, grande numero de Carros de guerra, e Cavalleiros, e por traz d'elles, negrejando, Catervas de peões, que pela direcção que traziam, com certeza vinham sobre Corduba com intenção de assediar o exercito romano, ahi na capital da Turdetania. Era o instante opportuno. Vetilio manda organisar em columna todos os seus infantes: aos flancos os seus Carros, com os projectis incendiarios; a Cavalleria mais atraz, destinada a envolver as tribus lusitanas durante o ataque.

 

Desde que as tropas romanas fôram avistadas pelos Lusitanos, um grito immenso como de alegria retumbou nos áres, como os renchilidos e apupos ou atruxos com que se distinguiam as varias povoações lusonias; e d'entre esse ruido escutava-se o ecco de cantos, de hymnos, que davam uma animação indescriptivel ao movimento dos combatentes. Vetilio contava com o enthusiasmo dos Lusitanos no primeiro assalto, e reservou todas as suas forças para sustentar o pezo d'esse primeiro impeto. E a carga dos peões lusitanos foi imponente, mesmo incomparavel. Valeu-lhe ao Consul o sangue-frio que soube mantêr; e foi assim, que subitamente reconheceu, que o exercito dos Lusitanos, tão numeroso como o seu, e que não constava de menos de dez mil homens, não tinha cohesão entre si; faltava-lhe a disciplina, e mais do que isso pela ordem de combate descobriu que essa multidão compacta não tinha um general, que sustentasse intelligentemente o commando. O numero extraordinario dos combatentes lusitanos complicava a sua propria segurança, pela falta de um chefe digno d'este nome. Este relance de Vetilio bastou para abranger a situação, e no seu espirito entrou a segurança de que seria certa a victoria. E tirando partido da situação comprehendeu que para vencer era a melhor condição empenhar-se em uma batalha campal com todas as suas tropas; por que embora os Lusitanos aguerridos apresentassem um egual numero, faltava-lhes o commando, o que tornava perigosa a sua situação em campo raso. As Legiões estavam então formadas com quatro mil infantes de linha, que se dividiam em trinta manipulos ou companhias, manobrando em campanha como a unidade tactica de uma divisão moderna. E esses manipulos ou companhias, agrupavam-se em cohortes ou batalhões, em numero de dez.

Passado o primeiro impeto de uma carga destemida de lanças, que os soldados de Vetilio apararam rijamente nos seus escudos, o Consul aproveitou-se da tactica aprendida nas guerras de Hespanha, e mandando-os formar em cunha rompeu as filas dividindo-as, mandando em seguida as suas quadrigas a toda a carreira sobre os flancos, para evitar que tornassem outra vez a reunir-se. Os Cavalleiros dispersos por entre a multidão desorientada, trucidavam incessantemente os que encontravam com um furor attonito, mal sabendo defender-se. A Legião romana mais uma vez, sob o commando de um habil chefe, patenteava a importancia da sua constituição estrategica. A lucta prolongou-se com coragem da parte das tribus lusitanas, mas repentinamente ellas reconheceram-se enfraquecidas, não por falta de valentia, nem de bravura, mas pela imprevidencia com que entraram em campanha, sem um chefe que as dirigisse e tivesse firmemente disciplinado.

Toda a lucta n'estas condições era uma temeridade estulta, um inutil sacrificio. A batalha era agora insistentemente continuada por Vetilio; milhares de cadaveres cobriam o solo recalcado, e o Consul pensava já em aniquilar toda essa multidão lusitana que ainda resistia. O sol declinava; prestes viria a noite, e era de força que o triumpho de Roma ficasse definitivo. Os Lusitanos sem esperança, sentiam-se cansados; a fome e a sêde hallucinava-os até ao desespero, e cercados no valle em que tinham sido surprehendidos, só viam um unico refugio para escaparem ao inevitavel destroço – renderem-se!

D'entre o campo dos Lusitanos fôram enviados a Vetilio quatro emissarios, levando erguidos ao alto ramos de oliveira. O Consul consentiu que chegassem á sua presença, e que appresentassem a mensagem; um d'elles por nome Diálcon, fallou:

– Vimos aqui pedir a suspensão do combate, e a paz, rendendo-nos em massa ao Poder de Roma!

O Consul mandou suspender as hostilidades; e perguntou com dureza aos emissarios:

– Quem responde pela revolta contra a soberania de Roma?

– Nós todos, perdendo o direito de Povos livres; mas conservando sómente a liberdade individual de cada lusitano.

– É muito! retorquiu-lhes o Consul.

– Se não quereis matar-nos, passando tudo á espada, só poderemos acceitar a vida com a liberdade individual que pedimos. E é isso bem pouco, diante do Poder de Roma; porque de hoje em diante podereis mandar-nos habitar o territorio que á grande e generosa Roma lhe aprouver conceder-nos. Ahi em campos de concentração, nos conservaremos quietos e submissos no cumprimento de todas as imposições.

Parecia mais que fallava um traidor do que um vencido; mas o escalavro das forças lusitanas era estupendo e tudo justificava. O Consul Vetilio, velho e astuto, determinou que os emissarios se retirassem, voltando na madrugada para assignarem o pacto da rendição e submissão perpetua, incondicional e peremptoria, vindo acompanhados de refens nobres, que pela sua vida ficariam responsaveis pela tranquillidade das tribus lusas. No resto da noite, Caio Vetilio ficou pensando nas consequencias da sua incomparavel victoria, no prestigio que teria em Roma, no impôsto de guerra que cobraria das populações subjugadas, dos escravos que o acompanhariam na entrada triumphal na Cidade do Tibre! Os sonhos acordados são mais bellos do que os que se tem dormindo, mas não são menos fallaciosos.

VIII

Noite cerrada, quando os emissarios chegaram ao acampamento lusitano. Eram esperados com trépida anciedade. Traziam alçados os galhos de oliveira, denunciando de longe a concessão do armisticio e no seguinte dia o assentamento da paz. Extenuadas de fadiga e famintas, as hostes ouviram sem espanto as condições prévias impostas pelo Consul Vetilio. N'aquella angustia desesperada apagavam-se as energias moraes, e era-lhes mesmo indifferente que a Lusitania fôsse livre ou escrava. E considerando a situação, trezentos lusitanos para trez mil romanos patenteavam uma desproporcional desegualdade, que seria rematada loucura defrontarem-se as forças.

Quando os emissarios accentuaram as palavras de Vetilio – submissão perpetua e incondicional, com garantia de refens para a effectividade do pacto – ouviu-se um rugido, como de uma féra que se vê subitamente preza. Esse rugido não articulado, que nem mesmo era imprecação, infundiu uma emoção terrifica e desconhecida. Olharam todos em volta da gente que se atropellava junto do Conselho armado, e viram um homem bastante novo, de menos de trinta annos, de estatura mediana, delgado, mas robusto e de aspecto decidido. Fez-se um silencio inesperado, involuntario, por que aquelle impeto de colera fizera suspender qualquer resolução repentina e fatalmente covarde. O vulto pareceu crescer com a grandeza da commoção, e aproveitando o momento unico, fallou:

– Para ser escravo de Roma não são precisos tratados, nem refens. Tudo isso é um ludibrio. Todos nós sabemos como a grande e generosa Roma cumpre os seus tratados. Seremos nós tão estupidos e indignos, que ainda depois da inolvidavel traição de Servio Galba, e da sua impunidade, confiemos n'uma potencia, que, não fallando já das riquezas, nos rouba a nossa liberdade? E esse Consul, que está em campo aberto, com as suas Legiões contra nós, que outro intuito tem senão a oppressão da desmembrada Lusitania, e o animo exclusivo da rapinagem? Bem pouco tempo ha decorrido sobre o estupendo morticinio, e já parece que ninguem aqui se lembra do juramento feito sobre os despojos dos clamorosos trucidados. O verbo do juramento foi —Vencer ou morrer!– Eu ainda não perdi a esperança de vencermos…

Um rumor irrepressivel cortou a phrase do moço, que suscitára latentes energias.

Elle continuou em um tom firme e de crença communicativa:

– Que loucura o confiar na fé dos Romanos! A tregua que nos concedem até ámanhã é um torpe embuste; o Consul pançudo finge que nos outorga uma paz generosa, simula a assignatura de um pacto para conseguir por esse meio capcioso a entrega das armas pela nossa parte, e em seguida, como é de uso, extermina-nos em massa, porque não quererá ser menos do que Servio Sulpicio Galba. Tal é a sorte miseranda que vos espera a todos, se…

Diante d'esta suspensão intencional e suggestiva, muitas vozes soltas d'entre os grupos o interromperam:

– Que fazer? que fazer?

– Resistir! – exclamou promptamente o moço, confiado e sorridente: Nada está perdido. Poderemos salvar-nos, e até mesmo…

– Falla! falla! Dize o que temos a fazer.

– Obedecer-me.

Ao ouvirem esta phrase incisiva e simples, mas com uma vibração sobrehumana, que denunciava uma absoluta confiança em si, entreolharam-se todos abalados, hesitantes, como que interrogando, quem era e d'onde viera aquelle homem audacioso. Elle proseguiu:

– Comprehendo a vossa desconfiança; não me conheceis de figura, nem mesmo esta estatura meã e magra se vos impõe, como o faria qualquer colosso. Mas, quem aqui se recordar do nome de Ouriato, d'aquelle pastor que conseguiu escapar da carnificina de Galba; d'aquelle que sabe o segredo de dar morte instantanea aos elephantes africanos; d'aquelle que andou de cidade em cidade proclamando a insurreição, a guerra santa e a vindicta contra o invasor estrangeiro, contra a occupação dos Romanos, que nos escravisam, reconhecerá que é um homem decidido que vos offerece a salvação e talvez a victoria.

– Ouriato! Ouriato! – proromperam de todos os lados vozes de acclamação.

Este nome proferido n'aquelle lance extremo de um exercito prestes a entregar-se, reaccendeu coragem nos animos abatidos; todos esperaram que Ouriato completasse o seu pensamento, dando-lhe em um tacito assentimento a certeza da inteira obediencia. O pastor fallou:

– Desde os mais tenros annos, eu trabalho na deambulação dos gados, que vêm das regiões calmosas para a frescura dos dois Herminios, e d'aqui dirigindo-os para os seus bostaes na epoca das invernias. N'este serviço, em que se me tem confiado mais de vinte mil cabeças de gado, e por que soube sempre defendel-o dos perigos das barrocaes, dos ursos e da pilhagem dos romanos, cheguei a ser Maioral, ou chefe da Mésta! Bem comprehendereis que, embora novo, eu devo conhecer como as palmas de minhas mãos todos os territorios da nossa Lusitania, os seus montes, os seus valles, covões, algares, cavernas profundas e passagens dos váos das ribeiras e cachões dos caudalosos rios. É esse conhecimento o que n'este momento me dá um poder unico e inesperado.

– Obedeçâmos a Ouriato! gritou a multidão entrevendo o plano de uma retirada habil. – Obedeçamos-lhe cegamente!

Ouriato, fitando os principaes chefes dos terços, que se tinham approximado, expoz com simplicidade:

– Aqui em frente de nós, passado aquelle outeiro, estende-se uma planura vasta, revestida de uma relva fina e variegada como um tapete, que dá vontade de retoiçar sobre ella! Ai de quem deixar ahi entrar os rebanhos! Essa planura encantadora chama-se o Barrocal fundeiro. Todas as suas ravinas fôram niveladas pelas neves do inverno, e sobre essa face lisa aos primeiros adoçamentos da temperatura, desabrochou com uma pasmosa vivacidade o nardo ou gervum, formando um espêsso e cerrado tapete em que as raizes se entrelaçam rijamente! É um gosto deslisar sobre esse vistoso relvado, que exhala um perfume estonteante; mas as neves vão-se derretendo por debaixo d'elle, e infiltrando-se pela terra mole e lodacenta; o tapete de verdura mantem-se então encobrindo todo o Barrocal, conservando uma apparente planura! Gado que alli pise rompe com o seu pezo o tecido forte das raizes do gervum, e abysma-se pelas terras moles, d'onde não é possivel arrancal-o. Pois bem! é para ahi que eu conseguirei attrahir o exercito de Vetilio; hade ficar como o carrapato na lama.

O terror converteu-se em alegria, irrompendo uma gargalhada estrepitante. Então levantaram Ouriato sobre os hombros, alguns dos companheiros que com elle escaparam da carnificina de Galba; e á luz das fogueiras do arraial, elle fitou as catervas que contemplavam o pastor destemido. Brandindo no ár a foice roçadoira, que sempre o acompanhava, Ouriato proferiu:

– Eu juro, mais do que pela minha vida, pela liberdade d'esta nossa Lusitania, que salvarei o exercito, com tanto que me obedeçam, na execução do plano. D'isso depende o exito completo.

Cavalleiros, peões, fundibularios, todos sem reserva ergueram os braços dextros para o ár, como symbolo sacramental, bradando unisonos:

– Juramos obedecer-te! até á morte.

– Ouriato é o nosso chefe.

 

– Ouriato manda sobre nós todos; ninguem tem mais poder do que elle.

E collocando Ouriato sobre um grande escudo feito de coiro crú, quatro valentes hastarios erguendo-o bem alto, levaram-o em redor do acampamento em uma marcha solemne, parando de vez em quando para gritarem:

– Ouriato é o nosso chefe!

– Ouriato manda sobre nós todos.

– Obedeçâmos-lhe até á morte.

Á maneira que o nome de Ouriato ia resoando na calada da noite, tambem na reminiscencia da soldadesca se acordava a vaga relação com o nome glorioso de um valente lusitano, que em tempos não remotos acompanhando Annibal, fôra combater os romanos até á propria Italia. Esse ainda lembrado VIRIATHO, que no seu odio contra Roma transpozera os Pyreneos e os Alpes, dizem que morrera na batalha de Cannas; mas o seu odio não morreu, é redivivo. E por ventura não será Viriatho o que agora reapparece na figura do Maioral da Mésta, do valente Ouriato? Como elle, é um salvador que resurge, um vingador da liberdade da Lusitania?

Este prestigio espalhou-se entre a soldadesca, influindo por modo absoluto na confiança do commando de Ouriato. E desde aquelle momento os dois nomes identificaram-se, como synthetisando a missão do guerreiro que votava a sua vida á defeza da Lusitania livre de todo o jugo estrangeiro. Emquanto levavam o novo general em triumpho, e as acclamações repercutiam por todo o acampamento lusitano, os chefes depostos conformaram-se pela necessidade da situação desesperada a tudo cumprirem. Acercaram-se do novo chefe, para receberem as particularidades do plano da cilada sob a fórma apparente de retirada urgentissima, logo ao primeiro alvor. Todas estas disposições fôram organisadas aproveitando o costume dos generaes romanos de suspenderem a marcha durante a noite.

As cohortes lusas, emquanto aguardavam o momento de se moverem, cantavam coreadamente:

Acclamação de Viriatho
 
Ha setenta e dois annos
Que falta aos Lusitanos
Um braço que os defenda
Da escravidão horrenda!
 
 
Rumor incerto espalha,
Que morreu na batalha
Que se travou em Cannas
Contra as Legiões romanas.
 
 
É rumor não exacto;
Não morreu Viriatho!
Porque o odio não morre,
E esse odio nos soccorre.
 
 
Rejuvenesceu hoje!
Viriatho nos arroje
Á implacavel guerra
Por esta livre Terra.
 
 
Salvador desejado,
Não debalde esperado,
Vencerão seus tyrannos
Por ti os Lusitanos.
 

Inne książki tego autora