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Viriatho: Narrativa epo-historica

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XLV

Depois da sahida do Conselho armado disse Idevor para Viriatho:

– Não quizeste acceitar o titulo de Rei da Lusitania; o teu sentimento puro revelou-te, que n'este solo lusitano não vegeta essa planta parasitica da realeza. E demais, uma Realeza investida e sustentada por uma potencia estrangeira! Só isso bastava para influir na degradação moral de um povo. Em troca d'essa Corôa que renunciaste, ou que desprezaste, mereceste que te seja entregue o Thesouro do Luso. Já terás sabido que elle se guarda na Caverna das Inscripções ogmicas; a rocha que domina essa Caverna é a Pedra Virgem, o penedo que falla, porque tem na face lisa, ou Peravana, os sons fan, phone, ou vene, que traduzem as Sagas venerandas das Edades passadas. Longa é a jornada para a Caverna das Inscripções, lá na margem direita do Durio, perto do Cachão da Rapa.

– Agora, que dei conta aos Chefes das Contrebias do Tratado de Paz com Roma, podemos partir, ainda que seja para longe; vamos seguros e sós. Eu sei todos os caminhos que nos levam ao Cachão da Rapa, e já vi com assombro esses traços para mim incomprehensiveis gravados na Pedra Virgem. Partamos.

E Idevor e Viriatho metteram-se a caminho. Já distantes e bem longe do povoado, encontraram solitaria á beira de um caminho uma casa palhaça, d'onde vinha o som rythmico do trabalho de um tear; de uma rocha que estava perto manava um jacto de agua cristalina, que fazia gosto beber. Emquanto matavam a sêde, escutaram a cantiga, que tomou para ambos o valor de um vaticinio; cantava uma pobre mulher

Ao tear
 
Olha a tecedeira
Como tece bem,
Como a lançadeira
Vae e vem ligeira;
Sua mão certeira
Que presteza tem!
 
 
Lembra uma dansa
O som do tear,
De um sapatear
Que jámais se cansa;
Mas que é a bonança
De um ditoso lar.
 
 
Fosse eu a trama
Da sua urdidura;
Como o fio se acama,
A sua ventura
Seria segura;
Feliz de quem ama!
 
 
Cresce tanto a peça
D'este branco panno,
Que, com esta pressa,
Se me não engano,
Ainda este anno
Cumpre-se a promessa!
 

Viriatho sorriu-se para o velho endre, que o comprehendeu, e proseguindo o caminho, acharam-se naturalmente fallando no casamento de Lisia.

Depois de alguns dias de jornada, os dois peregrinos entraram na região do Durio; seguiram pela margem direita, até chegarem á povoação de Linhares, aonde repousaram. Alli, na voz do povo, ouviram fallar dos Thezouros encantados, que estavam escondidos no fundo de uma caverna escura, coberta por um enorme penedo em que se viam insculpidos grande numero de Quadrados magicos. Ai do que se atrever a penetrar na caverna! Os que lá entram, se não ficam alli immediatamente paralysados com um somno lethal, ou perdem a falla ou cáem-lhe os dentes!

Apesar de todos os terrores, Viriatho e Idevor, logo ao nascer do sol, caminharam para a margem do Durio. D'ahi a meia legua, avistam, sobranceiro de um precipicio a uns vinte passos do rio, o enorme penhasco, que o vulgo saudava com o verso: «A Pedra sagrada da esperança do povo.» Ninguem sabia o que significava uma tal saudação. Idevor era o depositario d'esse mysterio do passado.

Perto já do penhasco, em grande parte coberto de musgo, Idevor dirigiu Viriatho para a parte em que estava a face lisa, da altura de dez covados, e de quatro de largura, e ahi contemplaram patentes os Quadrados, formando como pequenas janellas, com traços encruzados, e enxadrezados, agrupados diversamente. O povo acreditava que essas letras se renovavam todos os annos, no comêço da quadra estival. É certo que os Quadrados estavam agora bem visiveis, e até se lhes notavam côres. Idevor, contemplando aquelles caracteres indecifraveis, disse para Viriatho:

– Esses Quadrados que vês, são como as Lettras runicas, que os nossos antepassados deixaram gravadas sobre muitos rochedos do norte. Chamaram Ogum, nome que se aproxima dos Kova, ou os hieroglyphos de um povo amarello do extremo Oriente. Com o movimento das raças, esses caracteres gravados nas pedras foram reproduzidos em ramos de arvores, a que chamaram os Bastões dos Poetas; muitas vezes porém, nas largas narrativas historicas, esses bastões runicos baralhavam-se, e para restabelecer a sua ordem chronologica, ou as séries das Triades, era necessario ir procurar nos rochedos esquecidos nas florestas a disposição primitiva d'esses traços ou letras. É o que acontece com este rochedo que está diante de nós; repara bem: esses Quadrados gravados na pedra fixaram para sempre a ordem em que se devem dispôr os Bastões runicos, nos quaes estão escriptas as tradições da Lusonia.

– E aonde estão depositados esses Bastões dos Poetas?

– Dentro da Caverna a que se sobrepõe este penhasco. Mas, antes de tudo, repara para estes Quadrados: uma linha figura o tronco da Arvore de Ogham, e como ramos d'ella, cruzam-se outras linhas, que se distinguem umas das outras apenas pela posição e agrupamento: a primeira letra é figurada por um risco ou barra atravessada; a segunda letra por dois travessões, terminando o grupo de barras na quinta letra. E do lado opposto ao primeiro grupo, recomeça-se da mesma fórma os caracteres, do segundo grupo de letras; no terceiro, os traços são prependiculares ao tronco; e no quarto esses traços são transversaes ou obliquos.

Os nomes d'essas vinte letras é tomado da arvore cujo nome começa pelo som d'essa letra; é por isso que o termo Feadha, a planta, a arvore, a floresta, significa tambem o symbolismo alphabetico, a sciencia, e o vate ou Faethiste. Se não fossem os caracteres que ahi vês inscriptos n'esse penhasco, seria impossivel conservar a ordem dos Bastões dos Poetas, em que está escripto o Poema de seis mil versos, que se guarda ahi dentro da Caverna.

E Idevor mostrou a Viriatho a ordem alphabetica, ou Beith-Luis, na sua successão ogmica: b, l, f, s, n, h, d, t, c, q, m, g, ng, st, r, a, o, u, e, i.

Era n'esta ordem que deviam ser dispostos os Bastões runicos. Idevor procurou a entrada da Caverna, que era um pequeno corredor de accesso, na vertente do despenhadeiro, que ia dar a um recinto ou vasta camara revestida nas paredes e tecto por infiltrações stalactilicas. Parecia um hypogeo sepulchral, a que as concreções stalagmiticas davam o aspecto de estatuas mortuarias, envolvidas em sudarios brancos. Á medida que os dois peregrinos avançavam pela assombrosa camara, os rumores dos passos resoavam por outras galerias que se succediam apenas separadas por grandes pedras; de vez em quando sentia-se esvoaçarem aves das trevas, que alli hibernavam, e que para os crédulos pareciam as almas dos antepassados. Sobre o pavimento estavam espalhados estilhaços de silex, machados de pedra, ossos de animaes que pertenceram ao clima glaciario. Avançando com precaução, Idevor chegou á entrada de uma segunda camara, mais vasta e esplendida, pela sua estructura trabalhada pelas infiltrações das aguas; era allumiada por uma fresta aberta nas fendas da rocha, e ahi existia ao centro um bloco despegado do tecto da caverna, formando uma ampla meza aquella lagem de fórma arredondada. E em volta, junto da parede natural, achavam-se dispostas seis pedras, como se fossem assentos patriarchaes; sobre ellas estavam estendidos, á maneira de feixes de setas, os Bastões runicos, a que Idevor por vezes alludira. O velho endre fallou para Viriatho:

– É n'estas varas que está escripto o Poema da Lusonia.

E foi tirando pela ordem ogmica os Bastões e collocando-os combinadamente sobre a grande meza central; todos esses feixes formaram outros tantos Quadrados, como os que acabavam de contemplar na face lisa do Penedo do Cachão da Rapa. E depois de se acharem todos dispostos convenientemente, disse Idevor:

– Agora posso lêr o velho Poema da raça de que provimos, e em que se encerra o destino da Lusonia.

Viriatho approximou-se respeitoso, exclamando com jubilo:

– Esse Poema nacional é o verdadeiro Thesouro do Luso. O conhecel-o enche todas as minhas ambições.

E Idevor, percorrendo um a um, nos seis grupos de varas, os Bastões runicos em que se continham os seis mil versos da Epopêa da Lusonia, observou:

– Levaria muitas horas a leitura ou recitação pausada dos versos d'esta Epopêa; para o caso que nos interessa n'este momento basta um resumo claro e verdadeiro. Escuta pois o Argumento da

EPOPÊA DA LUSONIA

«Um grande Mar glacial cobriu a Europa, a partir do pólo até ao Ural, estendendo-se pelos territorios hoje occupados por nações, que levantaram dolmens e construiram muralhas e cidades com os blocos erraticos arrastados pelas neves, que deslisavam das altas montanhas.

«As neves eternas, descendo dos montes da Europa occidental, foram espalhando em uma marcha lenta, que durou seculos, essas morenas, que bordam as margens dos lagos, as costas do Oceano atlantico, onde se desaggregaram das geleiras. Todos os grandes valles foram atulhados de gelos, trasbordando sobre as planicies. Dos montes da Europa central se estenderam esses enormes geleiros, alastrando-se, destruindo as especies vegetaes, e repellindo diante de si os animaes gigantescos, que se refugiavam nas cavernas ou procuravam outros climas. Nas clareiras, não cobertas pelos gelos, conseguiram viver alguns animaes e pequenos grupos humanos, em uma lucta com a intemperie da natureza; apparecem estações humanas nas Gallias, Britania, Italia e Germania, e n'essas zonas exundadas é que se foram creando as raças da Europa, que se iam constituindo em Nações poderosas, com as suas linguas diversas, seus costumes, religiões e sociedades differentes: taes os Hyperboreos, formados pelos Proto-Scythas, Scythas, Sarmatas, Parthas, Germanos, Gaulezes e Bretãos. Elles conheceram a grande Constellação austral da Ursa, e iniciaram os trabalhos da Agricultura e da Navegação.

 

«As Estrellas da Grande Ursa, em numero de sete, assim como os bois que pucham os carros pesados chamados Teriones, foram designadas Septemtriones. O homem representou no céo os actos da sua vida terrestre: o Sol fecundante da estação estival foi representado como o Touro, ou o Deus Thor das gentes germanicas, e o mugido do trovão Tarana, como do touro que berra. E a navegação, que se fazia de uns para outros lagos, era tambem completada transportando os Teriones as barcas em carros de um ponto para outro. Chamaram por essa fórma dupla de Navegação a esse povo aventureiro os Gansos, ou Liguses, os patos dos lagos. Foi assim que se fez conhecida no mundo a forte raça de Navegadores, os Liguses, ou Ligures, que constituiram Ligas ou Hansas maritimas, protectoras das suas remotissimas viagens, transportando pelo Atlantico e através da Europa os blocos de Ambar amarello, e o estanho das ilhas Cassitérides.

«Esses Povos da região septemtrional da Europa, que se chama a Scandinavia, viveram longo tempo ás bordas do mar, e foram conhecidos pelo nome dos Homens da Agua, que em suas linguas se exprimia pelas palavras Soma-lassed, Sabme-lassed. Pela orla occidental da Europa esse Povo veiu descendo para o sul, e occupou as regiões de Hibernia, da Britania, e na Hispania esse Povo fundou o grande estado da Lusonia ou terras de Lez, que se denominaram Anda-Lezia, Cale-lezia e Lusitania.

«Pela sua audacia aventurando-se na exploração do Mar tenebroso, as outras raças chamaram-lhes os Atlantes, de Atl, o nome da agua; e nas suas rascas ou barcas de duas prôas, ajudadas a remos, a que chamaram Kamares, estenderam as suas expedições pelas Ilhas perdidas no meio do Atlantico, desceram ao longo da costa occidental da Africa, foram tocar em um continente ou Mundo novo da Aymerica, penetraram o Mediterraneo até ao Egypto, e subindo o Golpho persico, chegaram até á Chaldêa, e á India.

«Esses Povos ribeirinhos, ou de Lez, e propriamente maritimos ou Atlanticos, levaram os conhecimentos da Astronomia, fixados no seu Zodiaco, ou Symbolismo zoomorpho das Constellações observadas no Anno sideral, até esses Povos da America, do Egypto, da Chaldêa e da India. Foi por isso que o Symbolo do Touro é adorado no Egypto com o nome de Ser-Apis, e na fórma Shor, o Bezerro de ouro, na Palestina; com o nome de Tauro o designaram os Chaldeos, os Syrios, e os Gregos. Por esse Symbolo da Constellação do Touro é que a Civilisação da raça iniciadora dos Ligures se denominou Turana; todos esses Povos do Oriente adoptaram o Zodiaco occidental, sem notarem que pela evolução millenaria dos Equinocios, o Signo do Touro deixou de coincidir com o comêço do Anno estival.

«Contra a Raça ligurica veiu do Oriente a pressão de outros Povos. As gentes do Iran, adorando o Fogo espiritual representado em Mithra, reagiram contra a representação do Fogo terrestre ou o Touro, morto por Mithra, ou contra o Turan. Na Europa, os Povos dos Celtas, e dos Iberos, dos Jonios e dos Phenicios, dos Carthaginezes e dos Romanos, foram gradativamente atacando a raça dos Ligures, e pelas invasões por terra, e pela pirataria nos mares, quasi que apagaram o nome e a Civilisação dos Ligures na Europa! Os Iberos, que atravessaram da Africa quando a Europa ainda estava ligada a ella por um isthmo, repelliram-na da vertente occidental dos Pyrenneos, em que se tinha apoiado na Edade glaciaria, cujas geleiras estacaram ante essa cordilheira; os Celtas louros e corpulentos atacaram-a nas Gallias trans-e-cisalpinas; os Phenicios apoderaram-se dos Periplos das suas navegações atlanticas pela pirataria; e os Jonios roubaram-lhe os seus Poemas em que celebravam as temerosas Aventuras do Mar. As luctas guerreiras, e o imperio das Civilisações militares fizeram esquecer a civilisação agricola e as Navegações dos Povos liguricos. Entre o Occidente e o Oriente deu-se uma separação, e esqueceram-se de que eram solidarios na História.

«Uma tréva immensa caíu sobre o mundo depois da Éra glaciaria; a força bruta prevaleceu sobre a Sciencia, a Guerra de devastação e de conquista sobre o trabalho pacifico da Agricultura. A Missão civilisadora dos Ligures, iniciada na America, no Egypto, na Chaldêa, na India, ficará interrompida para sempre?

«Diante da extensão e perstigio dos Imperios militares, parece que a acção da força bruta é definitiva. Mas, a Rasão e a Paz hãode triumphar um dia; o Occidente tem de reatar a sua antiga solidariedade com o Oriente. É essa a missão e o futuro glorioso da Lusonia.

«Este ramo, certo, o mais tenaz do tronco decepado da luctadora raça dos Ligures, resistindo na Hispania contra os Iberos, contra os Celtas, Persas, Phenicios, Carthaginezes e Romanos, hade um dia através de todas as crises reorganisar-se outra vez como Nação, e o seu poder derivará do regresso á primitiva capacidade da raça: Recomeçará as grandes Navegações do Atlantico; hade reoccupar pelas suas colonias laboriosas a America; fundará um vasto Imperio na India; dominará na Africa; e primeiro que nenhum outro povo circumdará a Terra, affirmando outra vez a supremacia pacifica como destino da Civilisação occidental. Sustentar a autonomia da Lusitania é impellil-a para a realisação d'este incomparavel destino, – alargando pela actividade pacifica a antiga Liga hanseatica n'uma Confederação das Gentes, na solidariedade humana.»

Dentro da Caverna do Cachão da Rapa ia escurecendo; estava já terminada a leitura ou exposição do Poema. Viriatho, cheio de esperança no futuro da Lusitania, exclamou:

– Este ideal dá vida e energia a uma nacionalidade! Torna-a imperecivel. Agora já posso morrer; e fosse esta Caverna, deposito de uma tradição sagrada, a minha ignorada sepultura.

– Para que te deixas assaltar por presentimentos de morte? Eu ainda não te desvendei todos os conhecimentos contidos n'esses Bastões dos Poetas, ou Sagitas, que se arrojam ao ár, e conforme cáem voltadas para o Oriente ou para o Occidente, assim nos dão os Pre-Sagios venturosos ou aziagos. Ha um conhecimento de incomparavel sagacidade: revela-o a seta, que equilibrada sobre um ponto, trémula, oscilante, indica a linha do Norte a Sul; mais poderosa do que aquellas que guardam as Sagas das Tradições dos Navegadores liguricos, ella os guiou seguros – por Mares nunca de antes navegados! – Pela posse d'essa Vara chamada a Seta de Ouro, realisará a Lusonia o seu alto destino.

E á medida que ambos se afastavam da Caverna, disse Viriatho, ao perder de vista o penhasco das inscripções mysteriosas:

– Agora comprehendo eu o verso da saudação: «A Pedra sagrada da esperança do povo.»

XLVI

A cerimonia do casamento de Viriatho com Lisia estava determinada para dia certo. O cabecilha era esperado na Torre redonda de Achale, e já sobre o lar ardia o fogo sagrado que representa a santidade da familia apoiada n'esses mysterios cultuaes da memoria dos Antepassados. Lisia entretinha o fogo, quando chegou Viriatho; o guerreiro aproximou-se de Idevor, e disse com uma dominadora serenidade:

– Agora, que já temos uma patria livre, tambem quero render culto aos meus Antepassados, e venho rogar-vos por isso, para que Lisia, vossa filha adoptiva, me acompanhe n'este acto comendo commigo do mesmo pão diante do mesmo fogo.

Idevor ergueu-se d'onde estava assentado, aproximou-se da Pedra focal, e chamando para junto de si todas as pessoas que habitavam na Torre Redonda, proferiu a fórmula sagrada:

– Eu vos entrego, oh mancebo, a minha filha Lisia, trocando este lar paterno pelo que ides inaugurar com amor e esperança.

E pegando em Lisia pela mão, conduziu-a para Viriatho, como desligando-a da religião domestica, e entregando-lh'a para que a iniciasse em um novo culto da familia a que de ora em diante pertencia. Os dois esposos olharam-se com ternura; os canticos das donzellas que acompanhavam Lisia resoavam com a magestade de um sacramento, e n'aquelle dia entre festas, banquete e recitação de poemas, passou-se a primeira parte do cerimonial consuetudinario do casamento.

No dia seguinte era a partida da esposa para a terra de seu marido; sahiram da Torre Redonda os tres Companheiros de Viriatho, e a luzida cavalgada que tinha de conduzir a noiva pôz-se a caminho. Lisia, vestida de branco e com a lunula de ouro na cabeça, coberta com um véo, ia em um carro todo enramalhetado, ladeado pelos cavalleiros da Trimarkisia. E adiante caminhava um arauto levando um facho accêso, que como symbolo nupcial dava á cavalgada o prestigio do sentido religioso. Em todo o percurso ou pompa, modulavam-se hymnos consagrados; e de toda a parte vinham ao encontro da cavalgada homens e mulheres, que atiravam com flôres para o carro da noiva e lhe derramavam trigo pela cabeça, augurando felicidades.

Ao aproximar-se de Viseu, tres raparigas robustas e esbeltas, trajando vestidos garridos, com suas arrecadas de ouro, vieram collocar-se diante do carro de Lisia, e foram seguindo-a cantando-lhe uma Canção de marcha nupcial. Pelas suas vozes, como excellentes cantadeiras, bem conhecidas, espalhavam alegria em volta de si; eram Caenia, Aponia e Nilliata, de que Viriatho se recordou com jubilo. Fôra ao subir da serra dos Herminios que ellas lhe fallaram de Lisia, e é com o mesmo encanto que agora entôam a

Marcha nupcial
 
Bem vindo o par ditoso
Para a nova morada!
   Do amor o laço forte
   Não o desata a morte.
 
 
Pelo braço do esposo
Lá vem a bem casada!
   Laço que a união celebra,
   Nem mesmo a morte o quebra.
 
 
Como ao tronco ramoso
A vide entrelaçada,
   Que outro laço mais ata?
   O filho que os retrata.
 
 
Que encontre infindo goso
N'esta união consagrada
   O par, que vem sorrindo;
   Par ditoso, bem vindo!
 

Estava a terminar o trajecto festivo, e começava a terceira parte da cerimonia do casamento, em que a entrada da esposa em casa do marido se fazia por um rapto, pelo qual este, sem que ella tocasse com os pés no limiar da porta, a introduzia junto do lar, no novo culto domestico pela sua auctoridade de chefe da familia, que assim a iniciava por sua vontade. Era ahi que devia ser partido o pão entre ambos, diante do fogo do lar, bebendo n'essa communhão para a vida e para a morte, unificando as almas por um sacramento indissoluvel. Passou-se rapidamente este acto, porque era immensa a multidão de gente de todas as terras da Lusitania que esperavam os noivos na Cava de Viriatho aonde se formára um esplendoroso arraial, em que se expozeram todas as riquezas naturaes e industriaes da terra.

Alli se encontravam os Chefes das Contrebias, acompanhados dos seus ambactes, com os presentes offerecidos aos noivos.

Conheciam-se logo entre a multidão jubilosa os principaes chefes dos Castros e Citanias da Serra da Estrella; e diziam os curiosos:

– Olha o chefe do Cabêço do Crasto de Torvosello! E o do Crasto de Tintinalho? O do castello de Reigoso!

– Não faltou o Chefe do Cabêço de Escarrigo; nem o de Videmonte; o de Verdolhas, e de Tabeiró.

A gente de Traz os Montes tambem reconhecia os seus chefes:

– Lá está o de Castro de Avelãs. Olha o de Formil! Mais o de Fervença.

– Tambem o de Castro Samil! E o de Lambeiro branco! o de Soutello.

– Mais o de Rabal; e o de Alfaião.

A gente do Alemtejo mostrava certo orgulho ao apontar para os seus chefes da Orca, de Castro Verde, da Colla, de Castris.

Do norte, da região callaica, viam-se os chefes das Citanias, como os das de Briteiros, Tintinolho e Sabroso; o chefe da Corôa de Amonde; e o do Môrro de Affife; o do Castrello de Neiva; o de Monte Ferroso; de Laúndo, Guifães, da Roboreda. Era uma homenagem unanime de sympathia, de reconhecimento a Viriatho pelo exito da violenta campanha de libertação da patria commum.

Com as festas que por toda a Lusitania e Celtiberia se fizeram ao conhecer-se o texto do Tratado de Paz, e ao regressarem a seus lares os homens que ha tantos annos andavam na guerra da independencia, coincidiu tambem a noticia de que em breves dias seria celebrado o casamento de Viriatho com Lisia, a virgem semnothêa, aquella que sempre vaticinára a liberdade da Lusitania.

 

Assim, cada uma das terras que contribuira com tantos sacrificios para coadjuvar Viriatho no castigo da infamissima e sanguinaria perfidia de Galba, resolveu mandar uma deputação para a representar nas festas nupciaes do valente Caudilho. Essas deputações eram formadas de moços e raparigas, vestidos com os trajos das suas provincias os mais vistosos e caracteristicos, que iriam fazer os cortejos do esposo e da noiva, e alegral-os com as suas dansas e cantares, durante os dias das bodas e tornabodas; iam tambem os homens bons ou antigos com os presentes de bois e novilhos, de vinho, cereaes, fructas e sequilhos, para que a nova familia se iniciasse pela abundancia; e as mulheres, as mães, que fiavam no lar, offertaram tambem as suas grandes têas de panno de linho e bragal, meadas de linha alvissima e fina, boiões de mel, e aves sem conto. Era uma homenagem com o sentido de uma contribuição nacional espontanea áquelle que soubera unir as populações dispersas no mesmo sentimento de uma Patria livre.

Para a cidade de Vacca, fundada pelos Turdulos, que está proxima das fortes muralhas da Cava aonde Viriatho no anno DCVIII derrotára o Consul Nigidio, é que se dirigiram todas as deputações para as festas do casamento do Caudilho. Alli, n'aquella cidade, junto do rio Vaccua, costumava Viriatho recolher-se temporariamente das fadigas da guerra; era alli que tencionava viver tranquillamente o resto de seus dias no remanso do lar com a adorada esposa, Lisia, que tanto o fortificára pelo ascendente moral e confiança no futuro da Lusitania.

Da cidade de Vacca partiu o cortejo dos moços á frente de Viriatho, que iam ao encontro da noiva, que vinha da Ilha sagrada de Achale, acompanhada por seu pae Idevor e pelo grupo das donzellas de todas as cidades lusitanas lá reunidas para essa marcha. Por onde Lisia passava punham-lhe arcos de flôres e verdura; tapetavam-lhe a estrada com ramos e plantas aromaticas de alecrim e verbena, e arrojavam-lhe punhados de trigo, cantando seguidilhas de felicitação e augurando venturas.

Quando o cortejo chegou á margem do Vaccua, os grupos interrogaram-se mutuamente, e depois de simuladas as perguntas e respostas, em que Lisia era concedida como esposa a Viriatho, o guerreiro passou o rio com presteza, e como por encanto lançando o braço em volta da cinta de Lisia, levantou-a do chão para cima do seu cavallo branco, partiu á desfilada fazendo o acto cerimonioso do rapto. Todos os mancebos foram apoz elle, mas quando chegaram á cidade de Vacca já encontraram Viriatho e Lisia juntos no balcão de pedra que dava entrada para a casa que fôra construida para habitação dos noivos.

Diante do terreiro da casa, coberto por uma extensa ramada, cheia de dourados cachos de uvas, começaram os cantos e dansas; e depois da chegada de Idevor, os noivos desceram para vir ao encontro do velho endre, a quem beijaram a dextra, que alli diante de todos consagrou aquelle consorcio unindo-lhes as mãos. Então, de braço dado, os dois esposos dirigiram-se á Cava enorme, dentro de cujas muralhas estavam expostos como em uma Feira franca todos os gados, cereaes, tecidos, objectos de trem domestico e mais delicados presentes, que as populações lusitanas offertavam a Viriatho como seu libertador. A vista d'essa assombrosa homenagem manifestava o quanto Viriatho era querido, e bem explicava a confiança com que á sua bravura tinham ligado os seus destinos aquellas terras, que elle conseguira libertar.

Viriatho e Lisia foram percorrendo a Cava, em que estavam expostos todos os presentes, que representavam as riquezas das regiões lusitanas. Reconhecia-se a região do Norte, entre Douro, Minho e Beira Alta, pela abundancia dos seus milhos, pelo centeio da primavera e do verão, pelas excellentes castanhas. A região montanhosa da Beira Baixa e Traz-os-Montes, pelos seus nedios bois, carneiros e cabras das boas pastagens das encostas e valles; e pelo seu trigo molle e centeio. A região central da Extremadura até ao Tejo, mandava das suas extensas e ferteis landes os trigos molares e rijos, castanhas deliciosas, azeite cordovil e vinhos generosos. A região do sul, Alemtejo e Algarve, appresentava o trigo de inverno, os figos sêccos, tamaras, alfarrobas e castanhas piladas, e porcos de uma creação afamada.

Viriatho, lembrado dos annos da campanha libertadora, não pôde olhar para os cavallos em que vieram os chefes das Contrebias, sem confessar quanto devia ás suas qualidades de resistencia excepcional. E conversando com os chefes que o rodeavam, iam uns e outros notando:

– Este typo galleziano, de cavallos pouco corpulentos, e resistentes ao trabalho, é commum ao Minho, ás Asturias, Vasconia e Navarra.

– E estes mais corpulentos, com grande aptidão para o trabalho de carga e de tiro, fórmam uma variedade castelhana, que se encontra ahi pelo Minho, Traz-os-Montes e Beira.

– Cá para mim, o typo da minha paixão é o betico-lusitano! Estes cavallos das provincias do sul, são elegantes de fórmas e de postura. É olhar para essa raça de Alter, das Lesirias do Tejo e do Alemtejo; incomparaveis.

Em homenagem a ter Viriatho sido na sua mocidade pastor e chefe da Mésta, grandes manadas de bois vieram á feira apparatosa, na representação de cada provincia. Viriatho foi passando vagarosamente diante das manadas, interrogando com enthusiasmo, e caracterisando com os chefes das Contrebias as differentes raças.

– Estes bois vermelhos, amarellos e fulvos, isto é que é proprio para trabalho! as vaccas são extremamente leiteiras. Quem não reconhece n'este gado o Minho e a Galliza?

– Tambem pertence a esta raça galleziana, o barroso, lá do Gerez.

– Estes são da raça Maroneza, robustos, ligeiros, firmes no passo. São ahi das regiões visinhas do Durio.

– Aqui agora os da raça mirandeza; é a que se acha mais espalhada, por Traz-os-Montes, grande parte da Beira e da Extremadura. Tambem por aqui se vêem as suas variedades, a braganceza, a mirandeza ribeirinha, a extremenha. Isto sim, que é raça para trabalho violento!

– É por isso que se tem propagado tanto.

E proseguindo n'este passeio pela Cava, Viriatho e os chefes das Contrebias foram notando os bois de Arouca, excellentes, soffredores, de Lamego, Caramulo, predominando entre o Durio e o Vaccua. E elogiaram a raça ribatejana, brava para campo e corridas; a alemtejana e a algarvia, docil, sobria, côr de castanho claro, e propria para trabalho e engorda.

E na grandiosa feira em que se representava o genio de cada provincia, viam-se tambem as raças ovinas, a bordaleira, que predomina do Minho até ao Tagus; os merinos, de Campo Maior e Marvão, Moncorvo, Mirandella e Villa Flôr; e as estambrinas. Estavam alli as cabras da Serra da Estrella, do mais bello pêlo longo, e as de pêlo raro, todas muito leiteiras. E os porcos Bisare, do Minho, Traz-os-Montes e Beira; com os do Alemtejo, Extremadura, Algarve e margens do Tejo, chamados Romanice.

Via-se alli representada a alfaia agricola, que estabelecia uma transição para os productos industriaes. Era um encanto examinar a perfeição dos arados, cangas, carros, engaços, sacholas, cêlhas, concas, crivos. Destacavam-se mais adiante as louças de barro, de argilas ocreas. Nos trabalhos textis, as linhas ou fios de cozer em meadas alvissimas e novellos; rendas, cortinados, adamascados; as lãs de Portalegre e da Guarda em cobertores; as estamenhas, cintas, pannos, de trabalho domestico do Algarve: os bureis e baêtas listradas, da Covilhã e de Viseu.

Mas o que mais attrahia a attenção de Lisia eram os trajos lusitanos, que davam ao arraial um fulgor pittoresco, de côres e talhos: a Capa de honra, de Miranda; o Gabinardo de Nisa; a Capinha de Barroso e Sobreira; a Castreja de Laboreiro; a Jangadeira de Anha; a Camponeza de Perre, Areosa, Meadella e Ovar; a Ceifeira alemtejana, maiata, poveira; era um espectaculo commovente.

Grupos de mulheres vieram acercar-se de Lisia e offertaram-lhe com alegria presentes especiaes: a roca de freixo ruge-ruge cheia de ornatos; aventaes de Vianna; lenços bordados, segundo o costume, pelas noivas de ao pé do rio Vaccua; rendas de malheiro, de Aveiro, Setubal e Lagos, e rendas de bilro de Vianna, Villa do Conde, Peniche e Setubal.

As mulheres mais abastadas tambem lhe offertaram peças de ouro e prata feitas pelos lavrantes de Gondomar e Fanzeres; eram argolas de beira lisa, arrecadas, botões de amoras, brincos fusiformes, laças, corações de filigrana de ouro.

Foi alli dentro da Cava que se armaram as mezas para o festim nupcial; alli estavam as pipas do vinho palhete, e as fructas com abundancia. A variedade dos trajos e as physionomias dos individuos que representavam a nação desde os Gallaicos até aos Cuneos, davam uma impressão viva e sympathica de um forte povo que tinha uma feição propria, e que queria viver livre. As dansas eram continuadas, simulando combates, e saltos espantosos. Homens e mulheres fórmam bandos, em frente uns dos outros, alternando os versos da Canção, e um Côro dos homens antigos que as presenceavam é que ia repetindo o refrem, em que soava o nome de Viriatho.

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