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– Digna-se V. Ex.ª dar-me a honra de ser meu par? – disse o mascara de setim aproximando-se levemente da condessa.

– Com tanto que diga para que escondeu a rosa?

– Se escondi a flôr, temia que a calcassem aos pés. Custava-me tanto vêr esmagada a imagem mais triste de minha alma. – Apenas proferidas estas palavras com a voz abafada e tremula, a condessa ergueu-se de subito, hesitando se deveria ouvir uma confidencia que a compromettia; o mascara de setim deu-lhe o braço e foi collocar-se ao fundo da sala diante do seu vis-a-vis, triumphando d'aquella irresolução.

– E o que pretende fazer d'essa flôr?

– Guardal-a.

– A sua determinação leva-me a perguntar quem lhe deu direito para tanto?

– Não devo dizel-o.

– Ordeno!

– Não é justo satisfazer todas as indiscrições, principalmente quando…

– Complete a phrase.

– A ingenuidade de criança…

– Diga tudo.

– É irresponsavel pelo passado.

– Não comprehendo! – Retorquiu a condessa fitando a mascara, procurando em vão surprehender debaixo d'ella quem seria capaz de fallar assim. Um mixto de terror e de curiosidade embaraçava-a, não sabia o que devia fazer. Depois de alguns instantes de silencio, disse quasi em lagrimas: – Tenho medo de si! Oh dê-me essa flôr.

– Nunca!

– Exijo! – tornou a condessa com a voz sumida, sentindo-se dominada pela fascinação do desconhecido.

– Aqui está a rosa, – disse o mascara tirando do seio a flôr quasi murcha. – É impossivel entregal-a. Eu posso exigir mais em paga d'ella. Posso exigir tudo! É uma promessa inviolavel como o juramento. Um dia a mulher que eu amava, no extremo de sua vertigem e loucura por mim, prometteu ir até onde eu estivesse, e ahi entregar-se-me, se soubesse que eu tinha a vida contada por instantes, e havia de saír d'este mundo sem abraçal-a ao menos uma só vez como minha. Os desgostos têm-me devorado lentamente a existencia; presinto a cada instante em mim a frieza do sepulchro, e não soube ainda erguer a voz e reclamar a promessa fatal. Nem eu a quero! Bastou-me ouvil-a para antecipar no mundo todas as venturas do empyreo. Deseja a rosa ainda?

– O senhor dilacera-me! – volveu a condessa com a voz dorida, e com uma delicadeza inexcedivel.

– Se a flôr que deixou cair está cheia de espinhos! Não me atrevo a entregal-a. Dou pela rosa a unica idéa que me podia fazer persuadir que ainda vivo! É uma troca generosa! Acceita? Um dia a mulher que eu amava, conheceu a desegualdade da nossa posição, disse-me, de um modo que só ella saberia dizer sem macular a ingenuidade de sua candura: – «Se me violentarem a casar com outro, tens direito a reclamar quando quizeres o meu amor!» Seria uma infamia vir lembrar-lhe uma palavra proferida no momento mais exaltado da paixão, para perdel-a por um capricho. Não vale essa promessa. Agora ainda quer a flôr?

– Oh, não! não! – accudiu a condessa represando as lagrimas que lhe inundavam os olhos scintillantes. – Eu não sei o que quero agora! Ninguem podia fallar-me assim a não ser… Fale-me, eu estou conhecendo esta voz! É impossivel que não seja! Não sabe como é horrivel esta incerteza. Não o julgo capaz de atraiçoar-me! Erga uma ponta da mascara, deixe-me vêl-o, a mim só, e fico descansada.

– Eu não podia atraiçoal-a, nem mentir-lhe. Sou quem imagina; vim para vêl-a pela ultima vez, porque me sinto acabar; estão contados os dias da minha vida; passo com as folhas d'este inverno. Bem o conheço, e resigno-me. Não pensei que o primeiro amor que se tem na vida poderia ser tão funesto.

– Oh, não falle assim, que me mata! Eu tenho remorsos de não ter luctado mais tempo; não tive culpa; minha familia quiz a minha infelicidade. Eu amo-o porque não sabe accusar-me. Quero vêl-o! já que não é possivel mais. Tire por um instante a mascara. É o que ouso pedir-lhe.

– Eu tenho medo de arrancar a mascara; está pregada com o suor frio que me escorre da fronte. Para que me quer vêr? Estou tão demudado! Não sou o mesmo. Deve ter horror de mim; estou quasi esqueleto.

– Por um instante só! quero vêl-o, afaste um pouco a mascara. – N'este instante a condessa voltou a face de aterrada. Contemplou de relance os estragos que uma dôr lenta fizera sobre as faces tão animadas que primeiro reflectiam os seus primeiros rubores. Fez um esforço inaudito para suster-se; a mascara de setim deu-lhe novamente o braço e foi sental-a no mesmo logar onde tinha caído a rosa da grinalda; depois segredou-lhe umas palavras de abnegação e bondade:

– Esta rosa é a primeira que hade reflorir sobre o meu sepulchro. – E saiu; a noite ia remota; os alvores da madrugada luctavam com as luzes baças das salas, o acordar da natureza com o ruido vertiginoso da festa; o tedio e o cansaço traziam a desanimação, como acaba sempre o baile mais esplendido.

III

Apezar da impertinencia de rachytico e da estupidez vinculada na sua descendencia, o conde tratava perfeitamente sua mulher. A causa d'este respeito provinha da desegualdade, da força de intelligencia, da graça com que ella se tornava interessante para todos. Admiravam-n'a, e esta veneração reflectia-se um pouco sobre o marido. O conde sentia que sua mulher lhe dava a importancia que não tinha por si, e respeitava-a tambem.

A alegria com que ella andava! Sentia-se mãe, tinha vontade de amar. Dera-lhe Deus um filho, uma alma para o seu amor. Parecia-lhe que ao beijal-o, ao tel-o sobre os joelhos, se esquecia de tudo, de um passado feliz, de uma união forçada, do vasio da existencia, mesmo d'aquella noite ligeira, em que contemplou as ruinas que fizera, e que lhe deixou recordações pungentes, infinitas. Depois, a lembrança do passado amor, o primeiro, o puro, o intimo, vinha unir-se a esta idéa risonha de ser mãe, que a fazia esquecer-se de tudo! Pobre mãe! O conde preoccupava-se apenas com a existencia de um herdeiro. Era o que bastava. Almas vis que destroem o que ha de mais santo na vida pelo interesse mercenario! Doente, no seu amor a mãe sentia-se cada vez mais compassiva; lembrava-lhe a rosa que lhe tinha caido do cabello, o cavalleiro que lhe fizera a despedida para o sepulchro, e esta saudade começou vagarosamente a influir, a exercer uma acção mysteriosa sobre o feto. Não é estranho este phenomeno maravilhoso em physiologia. O segredo da callipedia das mães gregas consistia em contemplar estatuas admiraveis cuja belleza se reflectia depois nos filhos.

Passados mezes veiu á luz a criança. O conde andava louco com o nascimento do filho. Á medida que os traços da physionomia se iam precisando, a criança parecia-se menos com o conde; elle começou a observar isto. Não se atrevia a fazer uma accusação. Era impossivel. Depois as desconfianças tomaram corpo em sua alma, quando viu que a creança se parecia muito, muito com o rival, que preterira. Com a malignidade acintosa de achacado, foi torturando com esta atrocidade a tranquilidade de sua esposa. Ella, quanto mais se refugiava no passado, tanto mais via o filho represental-o diante dos seus olhos. Não sabia defender-se; a innocencia não se preoccupa com argucias, não quiz resistir, e deixou-se vergar pela dôr. Foi a definhar-se lentamente no soffrimento mudo d'esta impia injustiça. Assim a rosa que refloriu sobre um sepulchro que impensadamente abrira, veiu cahir desfolhada pelas virações da tarde sobre a terra fresca que acabava de a cobrir.

A rosa de Sáron

(POEMA EM PROSA)
I

Era noite; o som do sino corrido ecoára pela Judiaria; emmudeceu como se as passadas lentas de um convidado de pedra troassem no meio das risadas de um festim. A alegria e o ruido do trabalho suspenderam-se; os mesteiraes e homens de officio fecharam as portas; os christãos, odiando a raça maldita, separaram-se, deixando-a ao medo da noite. Então na pequena casa do judeu accende-se a luz do lar; cansado de receber insultos durante o dia, de vêr em roda de si a vileza e a traição, a lei e o fanatismo a ameaçal-o, esquece por um instante os planos da sua industria, os recursos com que produz o ouro e os capitaes com que hade comprar a sua segurança, e entra no fóco mais intimo da familia. Entra prostrado; banha-lhe o suor as faces, traz o desgosto pintado na fronte encanecida, vem afadigado das longas migrações, amedrontado pelos terrores das grandes crises do estado; ao asylar-se no remanso da casa, entra como o errante do deserto em um oásis desconhecido; o semblante tranquillo da esposa lembra-lhe o typo de Esther, da Sulamite, de Débora, da Sibylla palestiniana, e abraça-a com a sofreguidão com que umas fauces resequidas se dessedentam em uma nascente viva. Vêm depois os filhos, debruçam-se-lhe dos hombros, prendem-se-lhe ás pernas, enlaçam-se em volta do corpo, e n'essa hora o judeu sente-se outra vez forte para todas as luctas, para todos os opprobrios, para todos os vexames, com alma para affrontar a miseria e o queimadero. Falla das tradições de Israel, da sua migração através dos seculos, da terra promettida, e do Messias, não o idolo papal que se impõe pela fogueira, mas a boa nova da egualdade e da liberdade humana.

II

Na Judiaria, habitava um velho negociante de joias e pedrarias; quando algum potentado casava, mandava sempre ali escolher o presente de noiva, a compra de corpo, o dom da manhã. Elle tinha as pérolas das mais lindas do fundo do mar; as rochas mais encantadas do Oriente tinham entregues ao joalheiro os brilhantes facetados da agua mais limpida; topazios, esmeraldas, adereces, diademas, nunca o thesouro da Senhoria de Veneza reuniu riquezas de tanto gosto e primor. Viera de Hespanha, no tempo da grande expulsão dos judeus por Fernando e Isabel; o facho de Torquemada allumiou-lhe o caminho de Portugal, terra da tolerancia e da paz. O clima, o ár, a doçura do céo, lembram-lhe o Oriente; elle ama como filho a boa terra luzitana. Voltava do trabalho á hora do sino corrido; deixava o thesouro que faria a inveja de bastantes thronos, mas vinha vêr outro thesouro, o mais querido, e extremecido – uma filha de quinze annos. Chamava-lhe o bago das vinhas de Engadhi; chamava-lhe a Rosa das campinas de Sáron, irmã gemea da filha de Jephté, pura como Débora, deslumbrante como a Sulamite.

 
III

O pae entrara para casa; veiu a filha abraçal-o quasi á porta. Se o bom do velho não recearia que lhe descobrissem essa flôr escondida! Esperava-o a tranquillidade do lar; os risos e folguedos das outras crianças faziam-lhe esquecer os apupos e maldições da gentalha. Jogral de um povo rude, o lar tornava-o um patriarcha, um levita, sacrosanto como Moysés descendo o Monte do Senhor. Sentou-se de cansado. Tinha perto de si o Guemára; ao lado vem assentar-se a filha, Ebla, assim chamada do nome da Lua, como conta o velho Livro de Enoch. Ebla fallou-lhe:

– Nunca mais tornaremos a vêr Sião, e os tumulos dos prophetas? nem escutaremos o susurro dos nossos rios?

O pae, emquanto as outras crianças brincavam, poisou o dedo sobre o verso do Guemára, volveu-lhe um sorriso doloroso.

– Virgem do côro das donzellas de Sião, os nossos filhos continuam a nossa existencia na terra; assim como o castigo vem dos paes sobre a cabeça dos filhos, o Senhor tambem recompensa nos filhos os bens que os paes tiverem merecido. Ha quantos seculos andamos longe de Sião bemdita; eu sinto que os meus não pisarão o solo da terra promettida; mas vejo-te ao meu lado, como a flôr que brota de uma ruina; eu não poderei entrar na Cidade dos prophetas, serei como Moysés no alto do Abarim; mas o Senhor deu-me uma esperança, fez-te nascer em meu lar, filha. Assim o fanatismo e a atrocidade me não arranquem a vida. Uma noite, eras tu ainda pequenina, em Toledo; a noite ia escura e carregada, chovia, cruzavam-se os raios. Soôu na Judiaria uma voz sinistra: Ás onze horas do sino da Cathedral, a hora em que deviamos abraçar a religião de Christo, seriamos lançados nas fogueiras das praças ou abandonar para sempre a formosissima terra de Hespanha. Os meus thesouros lá ficaram, e dei-me por feliz em trazer-te commigo. Portugal anda entregue ás descobertas e aventuras do mar; os odios de raça ainda cá não tinham sido exaltados pela classe dos tonsurados. Trouxe-te ao collo, e tu me deste animação e alento na fugida.

– Ó meu pae, accudiu Ebla, passou hoje pela nossa porta uma cigana, cantando romances e siguidilhas de Hespanha, e pedi-lhe para ella cantar…

– E que ouviste? interrompeu o judeu aterrado.

– Ella contou-me que el-rei D. Manoel vae em breve casar com a filha de Fernando e Isabel a Catholica, e que ella só acceita a mão de esposo com a condição de desterrar para sempre os judeus para fóra de Portugal. E acompanhava a noticia com a cantiga castelhana:

 
Ea! Judios
á enfardelar!..
los Reyes mandan
passar la mar.
 

O velho judeu ficou assombrado; fechou o Guemára, e repousou a cabeça sobre o livro. De repente sentiu-se eccoar pela Mouraria o som secco e repetido de uma matraca, e de espaço a espaço, a voz do pregoeiro das justiças, bradar:

«Ordem d'el-rei para os judeus de Lisboa se apresentarem na alvorada com uma dança judenga, guisos, touras e guinolas, para irem receber o séquito da nova rainha. Soffrerá pena de morte o que levar armas comsigo. O rabbi da Judiaria irá na frente das dansas.»

Debaixo das janellas do velho judeu soaram estas palavras. O canto da cigana revelado pela filha lembrou-lhe um presagio funesto.

– Patriarcha no lar e truão nas ruas! cumpra-se o destino a troco da paz. – E levantou-se com o aspecto venerando de sacerdote magno, e foi sacudir a sua vestimenta de guisos, procurar a palheta, emquanto esperava o toque da alvorada.

IV

Lisboa tumultuava em festa immensa; arcos e flôres, salvas de artilheria, estandartes, musicas, annunciavam o dia da chegada da infanta D. Isabel, mulher do monarcha Venturoso. Já se sentia o estrépito do cortejo real; pelas portas da cidade vem entrando as dansas dos mesteiraes. Primeiro, vinha a Folia, com gaitas e pandeiros á velha portugueza, dansando em volta de um tambor; trazem guizos nos pés, cantam letrilhas de folgar e sainetes galantes; os guizos dos artelhos no reteninte som confundem as coplas. Com gentil ademan no ár volteiam lenços acenando. Vinha depois a Carraquisca, a dansa dos barqueiros e mareantes dos galeões do Tejo; trazem andando um balanço que imita um bambula dos pretos, aprendido lá nas conquistas. Vae passando a Cativa, uma outra dansa de agrilhoados mouros, bailando aos modos da Salé, vão confessando preito á nova rainha. Já vem perto a Gitana, toda feita de ranchos de raparigas vestidas de variegados pannos, cintos de ouro e vermelho; voam-lhes as roupagens com o vento cruzando facas entre si, ao doce baylo da Mourisca, que os sentidos fez perder com a trisca dos volteios. Eis que chega tambem a Dansa judenga! Os apupos do povo alevantaram-se furiosos chamando-lhes traidores; as vaias e as pedradas eram pelo ár sem conto; a plebe desenfreada atira-se de roldão sobre a judenga ao entrar da cidade, e abafam as queixas dos opprimidos com risadas. Vinha na frente o velho Rabbi, dirigindo a guinola e toura, quando um malvado lhe arrepella as barbas brancas. Os olhos do veneravel velho chamejaram de indignação e vergonha; levantou a palheta de bobo que bamboava nos ares, e descarregou-a na cabeça do atrevido, com a mesma altivez de animo do velho Consul da cadeira curul. O villão cahiu por terra e lá ficou calcado aos pés da multidão que se atropellava e ruía furibunda sobre a desgraçada dansa judenga. O velho Rabbi fugiu a todo o custo; a multidão precipita-se apoz elle; gritando, chamando-lhe réfece assassino. A noite vinha descendo, e protegido pelas sombras do crepusculo se ia livrando dos golpes que lhe atiravam. O velho ia quasi exhausto, a turba que o perseguia ia rareando apoz elle; já poucos o seguiam; mais um esforço, e ficaria salvo; as pernas parecem falhar-lhe, falta-lhe o ar; sente vontade de atirar-se ao chão e deixar-se retalhar. Mas um raio de luz e de vigor lhe atravessou o espirito; lembrara-se de Ebla, de sua filha!

Ia o velho Rabbi a entrar já na Judiaria, estava quasi á porta de casa quando um dos poucos populares que ainda vinha atraz d'elle lhe deitou a mão. Inesperadamente veiu-lhe um soccorro imprevisto; um donzel do séquito do principe Dom Affonso, e que andava ainda triste com a morte do seu joven amigo, sentiu um impulso do bem e defendeu o velho judeu. Desembainhou a espada e os populares retiraram-se. O Rabbi bateu á porta; abriram. Á luz de um candil viu o moço cavalleiro a cara mais linda de nazarena, os olhos mais languidos que não teria a Sulamite; o sorriso mais puro, a graça, a meiguice, a expressão de Quirub. Que contraste! na rua o genio do mal a seguil-o, em casa o anjo da candura a allumial-o, a inspirar-lhe serenidade.

O velho Rabbi vinha ensanguentado e roto; ao receber o abraço de Ebla tirou-lhe do pescoço um colar de perolas, e veio dal-o ao desconhecido. O moço cavalleiro beijou-o, e tornou-o a entregar.

– Quem és, que te mostras tão generoso e cavalleiro? perguntou o Rabbi.

– Dom Tello; e adeos!

O moço cavalleiro perdeu-se na sombra da noite; ai d'elle se a essa hora entrasse em casa do judeu; a lei era implacavel; condemnava-o á pena do fogo.

O velho Rabbi sentou-se offegante, com a cabeça encostada aos hombros da filha. Quiz começar a fallar-lhe mas as lagrimas e os soluços irrompiam frequentes. Alfim, pode ligar as palavras e contar-lhe o succedido.

– Oh meu pae; parece que os nossos desastres não acabaram aqui. Hoje passou rente á gelosia uma cigana, e parou a cantar, e dizia que el-rei D. Manuel casando com a infanta de Castella, a primeira promessa do seu dote era tirar aos judeus os filhos de menos de quatorze annos, e baptisal-os á força, e matar os mais velhos e pol-os fóra de Portugal…

– Filha, é o céo que manda esse aviso; tu foste a minha providencia.

E desceu a um subterraneo da casa, e lá se entreteve sósinho dispondo as suas riquezas para a hora da expulsão.

Ebla ficára por instantes só; revolvia na mente o dito da cigana; nas cantigas a cigana dissera-lhe mais cousas: Que um cavalleiro moço e formoso a adorava; que por ella seria capaz de abandonar a religião em que nascera e seguil-a até aos confins do universo. E que se um dia visse um moço trigueiro, de bigode preto e olhos vivos, faiscantes, era D. Tello, aquelle que a adorava. Ebla atou na mente esta lembrança; lembrou-se que Tello, o moço cavalleiro acabava n'esse instante de salvar o pae. Nasceu-lhe na alma um amor repentino; veiu-lhe uma vontade de vêl-o, de lhe fallar; notou a generosidade de não acceitar mas beijar o collar de pérolas. Solícita e a medo assomou á gelosia; a luz do candil reflectiu-se fóra, através das grades da adufa. Sentiu uns passos na rua, depois uma voz mansa e suave que proferiu no silencio da noite:

– Ebla!

Estes sons entraram na alma da donzella; e obedecendo á fascinação d'aquella voz, lançou a cabeça de fóra. Viu na sombra um vulto, que a irradiação lhe illuminou como a imagem vaga descripta no cantar da cigana. Aquella voz, como vibrada por um verdadeiro amor, disse-lhe com o imperio de uma vontade irresistivel:

– Vem.

Ebla desceu em cabello, e sentiu-se envolver em um abraço apaixonado, vehemente, expressivo. Era a primeira vez que sentia o amor. Deixou-se levar sem saber porque, nem para onde.

N'aquella noite, com as festas do casamento de el-rei D. Manuel, as portas da Judiaria ficaram abertas. Ebla e D. Tello afundavam-se na escuridão da noite, quando entra na Judiaria um tropel immenso de homens de armas e de cavallo; ia na frente o alcaide da justiça. Ao som de uma matraca restabelecera-se o silencio, e pela escuridão sombria e soturna da Judiaria soava uma voz sinistra, como de sentença:

«Pregão d'el-rei D. Manoel, para os judeus, ao toque da alvorada, embarcarem para fóra de Lisboa, sob pena de morte.»

A palavra morte accendia na multidão um enthusiasmo frenetico que apupava, ameaçava e esbravejava cantando entre risos alvares:

 
Ea! Judios
á enfardelar!..
los Reyes mandan
passar la mar.
 

Áquelle grito sinistro, toda a judiaria se levantou em pezo; do fundo do seu subterraneo saiu o velho Rabbi, solicito, temeroso, mas constante. Ouviu proferir a sentença ominosa. Chamou por sua filha, e foi accordar as outras crianças que dormiam; a mulher voltou apressada do pé dos thesouros. Tornaram a chamar por Ebla; o grande ruido das ruas e da multidão nada deixava perceber. Chamou por Ebla com uma afflicção de morte; viram a porta aberta; multidão de gente que tripudiava, lançando fogo ás casas. O velho pae parecia um leão ferido.

– A maldição d'esta raça caiu inteira sobre mim. Perdi tudo ao levarem-me essa filha. A minha condemnação, a minha morte para salval-a. Se ha no mundo alguma força superior, que seja o destino das cousas, Jahvé ou Jesus, acaso ou as potencias do inferno, conjuro tudo sacrifico-lhe a minha vida, a minha sorte pelo apparecimento d'Ebla. De que vale todo esse ouro e pedrarias se perdi Ebla; levaram a minha joia de mais valia, e com ella todas as esperanças e alegrias da minha vida…

Era incomportavel a dôr do velho; ia continuando, frenetico, doido; queria fazer-se christão para procurar a filha, quando eccoou de novo a voz do alcaide da alta justiça:

«Soou agora o toque da alvorada; o incendio lavra já na Judiaria! – Ao embarque, ao embarque nos galeões do Tejo, ou a morte á escolha.»

O velho Rabbi saiu com sua mulher e dois filhos pequenos, levados em tropel confuso e lamentos para o Tejo, aonde se enchiam os galeões de Hollanda, e resoava o ecco lugubre:

 
los Reyes mandan
passar la mar.
 

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