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Revelação de um caracter

Como eu, elle tambem vivia ignorado, ocioso, distraído, fumando sempre, debruçado de uma janella que deitava sobre o mar. Passava horas esquecidas assim, a contemplar as ondas no seu eterno refluxo, imagem dos pensamentos reconditos, das aspirações impossiveis, que tempestuavam na solidão de sua alma. Muitas vezes me disse elle, quando a indiscrição da amisade o ia interromper do quietismo contemplativo que o absorvia, e lhe perguntava que idéas mysteriosas o afastavam para tão longe da realidade e da vida:

– Se fosse possivel exprimir, stenographar na palavra tudo o que se revolve na mente, o homem mais sabio pareceria um tolo; se fossem coerciveis todos os sentimentos, que passam e succedem no coração, o homem mais santo e simples apparecer-nos-hia com a hediondez da infamia.

E continuava, embebido n'um scismar indefinivel, extranho a tudo o que se passava em volta d'elle, como na reconcentração de um grande desgosto. Outras vezes mostrava uma alegria irrepressivel, impaciente, louca, sem motivo; mas cada riso era o preludio de imprecações e ironias pungentes, que vibrava dos labios acerados: o enunciado breve e incisivo d'uma grande verdade, mas triste, horrenda, incrivel, e infelizmente verdadeira, que a sua lucidez de doente descobria. Não sei qual o torturára primeiro, se a duvida ou o sarcasmo. Elle submettia á analyse fria os sentimentos mais puros e intimos, volatilisava-os pelos processos de uma dialectica irretorquivel, e por fim o ultimo canon da sua logica era uma gargalhada irritante que fazia gelar de medo. Elle mesmo se doía de sua crueldade, era o primeiro a accusar-se e a procurar corrigir-se. As linhas de sua physionomia davam-lhe ao semblante uma fórma angulosa, de energia; o olhar incerto não repousava, como quem observa nas sombras de um abysmo insondavel, nunca o fitava, temendo talvez que lhe surprehendessem na expressão fugitiva que o animava o ridiculo, que sabia admiravelmente descobrir.

Deixei de procural-o longo tempo; repugnava-me aquelle caracter incomprehensivel; para monomaniaco era insupportavel, para excentricidade despresivel. As contradições tornavam-no absurdo. Custava-me vel-o na consumpção d'essa apathia, criança e foragido do mundo, sem ter a commoção dos grandes sentimentos que nos prendem á vida, e que são o conforto nas horas vagarosas do desalento. De uma vez encontrei-o a ler com uma voracidade, como a de Isaías ao revolver as paginas dos arcanos imperscrutaveis. Procurei vêr se a sua imaginação viva o tornava illuminado, se era a consciencia da segunda vista, da percepção immediata que o tornava ocioso e inerte:

– O que lês? Que livro é esse que um dia te prendeu a attenção inconciliavel?

– Uma terrivel obra prima, uma perigosissima e espantosa maravilha de arte! É um romance de Diderot, que contém em si o germen de uma revolução moral, o Neveu de Rameau. Nunca o leste? É impossivel observar mais profundamente o coração do homem, isolar-lhe os sentimentos e reproduzil-os em uma creação mais brilhante. Somos todos como elle. Rameau é a grande contradicção da nossa natureza, com a differença que obra segundo essa força, não se contrafaz pelas conveniencias da sociedade, obedece-lhe fatalmente, e é por isso que horrorisa; as maximas do cynismo mais revoltante e abjecto, as doutrinas mais subversivas de toda a ordem, vêm-lhe no dialogo animado, seguidas de sentimentos purissimos, intenções boas e justas, de um modo abrupto, que espanta. Os seus paradoxos são os da humanidade, com a differença que a educação os abafa no intimo de nossa consciencia, e elle, o parasita, o musico, o bandido, o desgraçado Rameau, tem a infelicidade de pensar alto; deixa vêr, através da sua ingenuidade, todas as paixões despertadas por desenfreados instinctos, que existem egualmente em nós, mas que os refreamos e os detestamos, como se fossem a degradação nos outros. Este livro é a synthese da philosophia do seculo XVIII; ella avançou principios de uma verdade inconcussa, de rasão profunda, a rasão universal, de todos os tempos, mas que foram combatidos e ainda hoje não são completamente admissiveis, por esta maldita necessidade de transigirmos com as conveniencias.

Esquecera-se n'aquelle dia do habitual silencio; fallava com uma verbosidade febril; observações penetrantissimas, rasgos de uma intuição pasmosa lampejavam brilhantes, no decurso da conversação. Expressando-se sempre com difficuldade, então, jorravam-lhe as palavras faceis e promptas, com uma nitidez que acompanhava as mais delicadas analyses.

A este tempo, assomou a uma janella fronteira ao seu quarto uma visinha, que vivia honestamente na desgraça, irmã d'aquella flor de Magdala, calcada aos pés pelos que não comprehenderam o impulso dos sentimentos que a transviaram. A pobre trabalhava e distraía-se a vêr os que passavam; cantava e ria esquecida do seu opprobrio. Estava vestida com uma côr triste, que lhe realçava a expressão dolorosa. Elle viu-a; cumprimentou-a com um sorriso leve, que traduzia um epigramma, que fôra comprehendido. Depois voltou-se para dentro:

– Ha uma affinidade intima entre a mulher e as côres; a escolha, a preferencia, a seducção por uma, é a linguagem de um sentimento recondito, que resôa dentro em si, e que ella não sabe exprimir, é o symbolo na sua fórma mais poetica e simples. A mulher é sempre uma criança, chora e ri ao mesmo tempo; como sente mais do que pensa, quer mais do que pode. A grande contradicção, que faz com que realise as nossas aspirações vagas e ideaes! Como uma criancinha que tem sêde, e, não sabendo ainda pedir agua, aponta para ella e exulta, assim a mulher não podendo revelar o sentimento indefinido que a eleva, que a faz soffrer e amar, serve-se da linguagem symbolica das côres, para completar a expressão que lhe transluz no rosto. Raphael, na sua inspiração divina, entreviu este mysterio quando ao determinar o ideal da Virgem na arte moderna, tomou a côr do azul ethereo para colorir-lhe o manto. O ideal da mulher no mundo antigo, menos espiritual, mas egualmente bello, mostrava-a como uma flor, a creação mais aprimorada da natureza, a planta mimosissima e languida; é assim Sacuntala, na poesia da India; a fraqueza, que póde tanto como a constancia heroica, quasi impossivel, de sua irmã Griselidis na Edade média; ella confidencia com as aves, os arbustos choram na despedida, as flôres amam-n'a como uma irmã gémea, um carpello tenuissimo animado á luz do sol brilhante, perfumado com todas as essencias de uma atmosphera limpida e serena. É por isso que do Oriente veiu aquelle modo de fallar de amores pelo salem, um ramilhete allegorico das paixões que perpassam na alma. Ha rostos de mulher archangelicos, sublimes, realçados pelas côres; a côr é a expressão da luz, como a luz uma expressão do espirito. Quantas mulheres perdidas, com um ár de innocencia que illude! a preferencia pelas côres, que as fazem realçar tanto, é por certo o desejo mais intimo de sua alma, que os labios não se atrevem a proferir. Como para cada zona ha uma analogia com as côres luxuriantes da vegetação, pelas côres das roupagens se pode conhecer a mulher; a oriental voluptuosa, enlevada n'um tropel de pensamentos de alegria, sentindo o coração a trasbordar-lhe desejos, que desconhece, orna-se com as côres que mais fallam aos sentidos, as mais vivas, as que mais seduzem. Não é isto assim?

– É; porque o genio póde dizer tudo impunemente. Dá vida ás creações que inventa, soffre com ellas, que são a alma da sua alma.

– Se assim fosse, não andaria no mundo travado este antagonismo do senso commum, positivo e costumeiro, inflexivel nos seus juizos praticos, com aquelles que procuram realisar na vida os sentimentos superiores e eternos com que animaram a argila fragil, que procura constantemente elevar-se acima da materia a que está presa. É a lenda do cego de Smyrna, corrido, perseguido de terra em terra; não lhe comprehendem a vocação. Afferem-lhes as acções pelos factos vulgares, de todos dias, e a disparidade faz com que se lhes chame um desgraçado, um extravagante, um doido.

– Revoltas-te contra o senso commum?

– Revolto-me contra toda a generalidade, que procura absorver o individuo, assimilal-o, confundil-o. Quero que a individualidade se constitua e imprima o seu caracter, de modo que o tempo e o espaço attestem a passagem do grande homem.

– Revoltas-te contra a natureza?

– O que é a natureza diante da obra d'arte? – e elevando-se em um hegelianismo de sectario, elle proprio respondeu: Um verbo insignificativo, que apresenta todas as formas de que o bello pode revestir-se, o archetypo material que só se espiritualisa no typo, que é um facto da consciencia humana. Quando na imitação do archetypo a verdade é tão exacta, que o typo se confunde com elle, o sentimento que então disperta é incompleto, porque não deixou perceber que á determinação do facto presidiu uma consciencia. O bello é uma creação toda subjectiva; é despertada pela natureza, mas não existe lá; escolhemos as imagens em que melhor a podemos manifestar nas suas multiplices e variadas realisações, as caracteristicas que a traduzem fóra de nós. O bello é absoluto. Não existe o feio, que é apenas uma hypothese negativa em que se funda a synthese das realisações artisticas; o bello! o ponto onde convergem todas as evoluções da forma, incluidas na polaridade do bonito e do feio, e gravitando em volta d'esse principio unico, eterno, é o ideal que as faz tender para elle. O bonito e o feio são as duas relações que nos levam á comprehensão da idéa do bello. O bonito desperta-nos esse sentimento espontaneo por inspiração intuitiva; o feio leva ao mesmo resultado pela reflexão. O Sapo, de Victor Hugo, asqueroso, repellente, depois de idealisado, é profundamente bello. Quando se espiritualisa a imagem, e é esta a missão da arte, o espirito ha de amar a sua creação. O estatuario delira com o amor da Galathea. Não posso deixar de obedecer a esta fatalidade do meu caracter; deixo-me arrastar pela contradicção. O bello tem algum tanto de convencional; assim admiramos uma illuminura da Edade média, os arabescos de uma janella gothica. O que parece convenção não é mais do que a reflexão, que nos faz descobrir n'aquillo que contemplamos um progresso do espirito, e nos mostra a tendencia da natureza a ser espiritualisada. Pelo sentimento do bello se obtem o desenvolvimento e elevação que podem prestar-nos na vida a religião e o direito; o verdadeiro e o justo não são mais do que as manifestações do bello no mundo moral. Ha só uma religião, é a da arte! O pantheismo é a suprema creação poetica, a identificação dos sentimentos do bello e do verdadeiro. Mesmo o direito primitivo teve um caracter pantheista, a natureza é animada, é testemunha na accusação, é pura como no ordalio, firma o contrato, submette-se tambem á penalidade, tem personalidade; os animaes compareciam tambem em juizo. A arte sobre tudo! ella suppre a sciencia e a observação, pela intuição viva; a realidade é contingente, variavel; o ideal, a creação pura do homem, é intangivel, eterno, emquanto a obra de Deus se converte em pó. Sacrifiquemos-lhe tudo na vida.

 

– Mesmo o amor?

– O amor? Rio-me da tua credulidade. Ainda fazes uma religião d'esse sentimento egoista, que procuras elevar acima da animalidade. Querem afferir as affinidades electivas pelo que vêem nas paixões descriptas pelos poetas. O amor como o imaginas, só existe nas obras d'arte; fóra de lá é uma falsificação, uma loucura, um impossivel. Eu explico o egoismo olympico de Goethe recusando o beijo de Frederica, a dedicação symbolisada no que a mulher tem de mais apaixonado e expressivo. Pede ao amor a paixão, como pedes á natureza a paizagem; depois de te possuires de todos esses sentimentos, eleva-te acima da passividade pela reflexão fria, calculada, e terás a consciencia das fórmas com que has de fazer sentir os outros, dominal-os, possuir os segredos de suas emoções, e és grande! Não fallo mais n'isto; só fica bem na bocca de Dyotima.

E começou a assoviar uma ária caprichosa, passeiando vagarosamente; depois voltou-se para mim:

– Ha ainda que descobrir na musica; falta-lhe realisar o principio da ironia, como ha em todas as fórmas particulares da arte. A poesia tem a satyra; a pintura a caricatura e o grotesco; só a musica precisa attingir a antithese do pathetico. O pathetico e a ironia são os dois polos de toda a evolução esthetica. Todas as creações na arte sáem d'estas duas paixões oppostas. Uma é o natural, a outra é o não natural como natural; uma sustenta o sublime, a outra o ridiculo. Ao pathetico eleva-se todo o que soffre; só o riso é a força das grandes individualidades. Ri-te de tudo; o riso denota sempre uma superioridade.

Não o comprehendia; o seu riso pungente de ironia desarmava-me. O genio é uma nevrose, uma disformidade; o que nos outros me parecia egoismo, n'elle não sabia como chamar-lhe. Para elle a gratidão era a justificação do servilismo; o sentimento religioso uma tradição da ignorancia primitiva; o amor de mãe uma impertinencia, que só se dá entre os animaes da classe dos mamiferos, pela conversão do habito em instincto. Explicava tudo assim. Parecia uma alma devastada por longas abstracções, que andava errante no mundo, á busca de uma formula impossivel. A analyse continua dava-lhe uma certa malvadez, tornava-o intratavel.

O caracter faz-se. Quaes seriam as circumstancias que o transformaram até áquelle ponto? Indagava-o como um problema interessante. Fui por deducções pequeninas. Muitas vezes me fallava elle da harmonia plastica das fórmas. Contou-me uma historia original: uma menina engraçada, cuja belleza realçava com uns dentes alvissimos de jaspe; a vaidade de mostral-os tornara-a jovial. Infelizmente tropeçou em uma escada e quebrou um dente. Perdera o seu melhor encanto. D'ahi em diante, procurando encobrir esse defeito, tornou-se taciturna, melancholica, apprehensiva, até que se foi definhando e morreu de desgosto. Contava-me isto como uma grande verdade, como doutrina que professava. Admirava o costume de Sparta, que mandava despenhar de uma rocha as crianças disformes. Pobre rapaz! Como uma circumstancia pequenissima lhe influiu no caracter e na existencia. Elle era aleijado de um pé, como Byron, e era este o seu desgosto intimo, que o trazia solitario e o tornava aggressivo, porque se via amarrado a um ridiculo.

O sonho de Esmeralda

Oh! meu amigo, oh! meu poeta, tu não sabes o que é um rapaz que sáe aos vinte annos da sua agua furtada, sem conhecer o mundo, ignorando a vida, tendo vivido alimentado por sonhos impossiveis, rico de todas as leituras, levado por ambições altivas, que o fazem grande, sentindo muito, amando tudo, e que o acaso atira ao meio de uma cidade opulenta, onde ninguem se conhece, onde todos se egualam e atropellam! Foi quando comprehendi aquelle tercetto de Dante, de uma profundesa nocturna, que me abysmava, cada vez que o repetia na mente:

 
No meio do caminho d'esta vida
Dei por mim na amplidão de selva escura,
Pois que a vereda certa era perdida.
 

Não sabes como o ruido de uma cidade immensa, o dédalo das ruas, a extranhesa e indifferença dos que passavam, me tornava solitario no meio das multidões. Tantas vozes perdidas no ár, e nenhuma para mim! Tantos braços cahidos com desdem, e sem nenhum me estreitar a si. Parecia-me o tumulto como um naufragio em que a ancia do salvamento nos torna egoistas, insensiveis para as agonias dos outros.

Todas as aspirações que me fizeram deixar o retiro benigno onde me voaram os primeiros annos, mostrando-me o mundo como uma grande festa, que me despertaram o desejo de ser tambem um dia conviva, iam-se apagando, abandonavam-me como no encontro fortuito de um desconhecido. Sentia-me pequeno, incapaz de luctar, de me impôr a admiração dos outros.

O que teria sido de mim nas horas monotonas do desalento, nos longos dias do desamparo, se não fôra a poesia! Até então tinha ella sido um folguedo, um brinco infantil, innocente, um vagido timido e suave da alma, que anceava a luz, como uma borboleta prateada antes de romper a chrysalida nocturna. Sem ter quem me fallasse, pedi á poesia os seus antigos carinhos, um alento de esperanças, um orvalho para refrescar a aridez do dezerto em que me via. Ella, a irmã dos tristes, a alma dos que soffrem, como veiu terna, espontanea, compassiva para consolar-me! Cantava, como uma criança, quando tem medo e procura esvaecer os vultos caprichosos que lhe voejam na phantasia. Foi a poesia tambem que salvou o desgraçado Jacopone, quando, abalado pelos desastres da vida, errando pelas ruas desvairado e doido, apupado da plebe, perseguido, veiu bater ás portas de um mosteiro, d'onde egualmente o repelliam. Foi ella que lhe deu a paz da cella e a serenidade da contemplação.

Oh santa e divina poesia! bem hajam os que choraram por que te descobriram e trouxeram á vida, como uma pérola nunca vista trazida do fundo do oceano. Bem hajam os que ainda choram, por que te guardam em si, como uma vestal solicita ateando continuamente a labareda do altar. Bem hajam os que hão de vir para soffrerem, por que nos comprehenderão sentindo-se aliviados.

Andava pela cidade sem destino, vagabundo; eu mesmo ia comprar o alimento para o dia, e enojava-me esta guerra mesquinha e vil do pequeno commercio para os que chegam incautos, inexperientes. Os fundos, e bem poucos que eram, iam-se reduzindo de dia para dia; estava quasi sem dinheiro, e com um orgulho e altivez incrivel para affrontar o futuro.

Enrolado, dentro de uma gaveta, tinha um manuscripto, que escrevera para distrair-me na solidão das minhas horas. Quando me lembrei d'elle comecei então a dar-lhe o valor que até alli não conhecia. A necessidade, que se approximava, a cada instante, fazia-me procurar n'elle todas as esperanças. Pobre manuscripto! Quem o poderá entender, quem dará dinheiro por essas paginas sem sentido, que a ninguem tocam e que nem ao menos fazem rir? Demais, estava escripto com uma letra inintelligivel, entrelinhado e sublinhado, em um papel repassado de tinta amarella, que mal se percebia. Quando me vi quasi sem dinheiro, á porta inferi, tornei a enrolar o manuscripto, metti-o debaixo do braço, e sahi. Passava pela porta dos editores e não me atrevia a entrar. Tinha medo que me insultassem com um riso de escarneo, por me verem tão criança e já com pretenções a auctor. Guardava sempre para ámanhã a extrema resolução, e tornava a trazer o livro para casa e a fechal-o na gaveta. Não imaginas que horas de tormentos! Eu temia que me apagassem com um riso todas estas esperanças, e me convencessem com argumentos assim da minha nullidade; bem conhecia o que me haviam de dizer, previa-o, cheguei a escrever a resposta que os editores me dariam: «O seu manuscripto não tem leitores; não é um romance, nem um conto; tem algumas paginas excellentes, mas não póde dar lucro de maneira alguma.»

Era esta a resposta que eu antecipava, para me não doêr tanto depois quando a recebesse. Um dia, o ultimo, sai a tremer com o manuscripto. Oh meu amigo, para que te hei de fallar n'estas cousas? Nem eu queria chegar a este ponto, quando te prometti contar a historia d'essa mulher, que tu conhecias melhor do que eu. N'esse dia, comecei a sentir povoar-se-me a soledade da vida, mas com outras dores, desesperanças novas.

Nos primeiros mezes que passei n'aquella cidade, tinha lido e estudado desesperadamente; a meditação fôra o refugio do tedio, mas era como um abutre que me lacerava as entranhas.

Vi-a! leve, delgada, divertida, olhando para todos, com uma graça encantadora de infancia, com uma gentileza de senhora, confundida pelo meio da plebe, sorrindo para os que a fitavam. Foi um d'esses sorrisos que me levou a alma presa. Que lucta obstinada e escura dentro d'esta pobre alma! o estudo e a paixão debatiam-se, arcavam, procuravam mutuamente supplantar-se. Eu tinha acabado de ler a Notre Dame de Paris, e achava em mim não sei que analogias sinistras com Claudio Frollo. A Notre Dame de Victor Hugo é a rosa emmurchecida, que rejuvenesce ao sol do mysticismo, é a Turris eburnea por quem o poeta se apaixona no sublime delirio da arte. Claudio Frollo! o desgraçado arcediago deixou tambem correr tranquilla a mocidade no retiro do estudo; depois a Esmeralda enfeitiça-o, dançando, no volteio vertiginoso das praças. São duas paixões que se combatem. Qual d'ellas triumphará? A fatalidade do impossivel?

Eu não conhecia o labyrintho de ruas da cidade populosa e immensa, ía em busca d'ella sem saber para onde. Encontrava-a quasi sempre, por uma coincidencia fatal. De uma vez, lembra-me ainda, foi quando a vi mais bella do que nunca, mesmo do que todas as mulheres. Estava confundida entre a multidão, que a abafava na sua onda; mas para mim realçava tanto como um carbunculo que reflecte em si a luz de todos os cirios. Via-lhe na expressão languida e curiosa a alma de todas as almas dos que a cercavam. O povo amontoara-se para vêr subir aos áres um balão. Era um dia de alegria e de festa; quando a descobri estava com os olhos erguidos para o céo. Oh! se ella soffresse, se implorasse a Deus uma consolação, não estaria mais sublime e radiante. O que a fazia confundir o azul dos seus olhos com a limpidez do firmamento era a curiosidade de criança. E contemplava o balão que subia, alheia á vozeria da gentalha. Desejaria elevar-se tambem ás alturas, e então estava pensando no devaneio d'esse desejo? Quem sabe os caprichos que passam pela alma de uma mulher? Quem póde contar todas as ondas que faz uma brisa perpassando levemente á flôr das aguas? Quando baixou os olhos á terra deu com os meus, que a contemplavam, sorriu-se. Oh! como aquelle sorriso me faria esquecer todos os pezares, me daria coragem para todas as luctas, me insuflaria alento para os mais inauditos esforços, se ella se não sorrise assim para todos.

Para todos! É este egoismo do sentimento que gera os nossos males, exacerba a mais terrivel das paixões, a mais selvagem e vil, que é só grande pela loucura. Eu tinha ciumes de todos, porque ella sorria prodiga de encantos, tanto para os que passavam indifferentes, como para o que a contemplava com o desinteresse com que se olha para um marmore antigo ou adorando a sua morbidez de Madona, como para aquelles espiritos baixos e abjectos que a fitavam desassombrados, preoccupados de um desejo faminto e estupido de sensualidade.

Criança e indiscreta, seria a innocencia que a fazia sorrir para todos, como uma borboleta que vôa de flor em flor, ou como uma rosa que embalsama de perfumes todas as virações que passam? Eu não sabia, e tinha medo da verdade. O amor triumphava completamente do estudo. A verdade, que procurava incansavel no ardor das vigilias, agora já não me mostrava os mesmos encantos. Queria que se escondesse, que se não deixasse tocar por mim, como um arcano divino. Quem podesse viver sempre illudido! Oh! verdade! verdade! para que vens agora, que te não busco, acordar-me tão cedo do sonho doirado?

 

A multidão dispersou-se ao vir da noite; eu fui seguindo para onde ella habitava. Ia perdido, a distancia, sem conhecer as ruas; a pequena, distrahida, como por descuido olhava para traz. Depois que soube onde morava, procurava a cada instante vel-a. Havia uma fatalidade que me atirava para essa mulher. Só, no meio de uma cidade grande, desconhecido, amava a perdição, e sentia-me arrastado, sem ter ao menos um Tiberge que me salvasse, como o amigo do infeliz Des Grieux, amante da Manon Lescaut. O futuro! nem já podia vêl-o, com a vertigem que um olhar fascinador me causava; apagava-se esse ideal que me dera tantas vezes coragem nos transes e provações da vida. Ria-me do futuro. E que é o futuro? De que me vale preparal-o, consummindo a vida, se me foge antes de o gosar? Viver obscuro! embora n'uma trapeira, mas ter um dia, ao menos, a mais pequena realidade de tantos sonhos! Ter que apalpar entre as visões brilhantes, sem corpo, e que nos mentem sempre. Viver obscuro! Que haverá melhor, quando se tem ao lado aquella que se ama e resume todos os encantos e riquezas do mundo na mais pequenina de suas fallas?

Sentia-me escorregar lentamente para o precipicio; a paixão dava-me uma lucidez com que explicava a loucura e a justificava diante da consciencia que me accusava de instinctos baixos, sem dignidade. Apparecia-me á janella todas as tardes; sentava-se ali e costurava. Tinha um orgulho indizivel ao lembrar-me que, de entre todo aquelle bulicio de gente desconhecida, havia uma mulher que pensava em mim e me estava esperando. O amor tornava-me timido; queria fallar-lhe e não sabia. Pedi então á poesia que fallasse por mim.

Para um amor puro, ethereo, que se esconde e não se atreve a declarar-se, nada o exprime melhor no seu vago ideal do que um soneto. Estudei esta fórma, a mais completa das fórmas lyricas. Elevado como a ode, melifluo e simples como o madrigal, sentencioso como o epigramma, é a synthese de todas as fórmas do lyrismo. Como o não desenvolveu o genio da Italia, nas suas elevações erotico-mysticas! Nas duas primeiras strophes do soneto, o sentimento revela-se pela imagem, occulta-se sob ella como indefinido, intangivel; o predominio da imagem tem a quadra, fórma livre para as representações do mundo exterior. Depois é que o sentimento se mostra no seu esplendor absorvendo em si todas as potencias da alma; é o terceto que o traduz, a triade fatidica, que se imprime mysteriosamente em todos os factos do espirito. Do accordo entre a imagem e o sentimento, provém a diversidade das fórmas poeticas. Se a imagem se mostra na sua complexidade finita, a poesia tem um caracter didactico e descriptivo; se o sentimento se sobreeleva á imagem e se manifesta na sua subjectividade, eis o lyrismo puro. É por isso que o soneto é a fórma suprema do lyrismo. Santificaram-n'o Dante, no retrato do amor ideal, na Vita Nuova; Petrarcha, exaltando o amor religioso de Laura na solidão de Vauclusa; Miguel Angelo, esse Protheu que encarna todas as fórmas do bello, e Vittoria Colonna, confidenciando ambos com os sonhos da arte, de um modo que ninguem macularia o seu platonismo radiante. É tambem nos sonetos religiosos de Lope de Vega, que se conhece a profundidade de sua alma sensivel, e nos de Camões, que se aspira o perfume da saudade de seus mallogrados amores.

Esquecia-me a dissertar sobre o soneto para evitar o ridiculo de ter assim cantado esse desvario. Eu a via todas as tardes á janella; tinha a seu lado um passarinho, que saltitava, chilreando contente, para quem fallava, dizendo o que queria que eu ouvisse. Como não perceberia elle estes segredos de amor, quando o estava embalando com o seu cantar soffrego, tremente. De uma vez atirei para dentro da janella este soneto traduzido do hespanhol de Lope de Vega. Não ha expressões humanas que possam dizer mais:

 
Dava alimento a um passarinho um dia
Lucinda, e pela estreita portinhola
Foi-se-lhe a ave das grades da gaiola
Ao vento livre, onde a cantar vivia.
 
 
Entre-rindo, a mãosinha ella estendia
Para o suster; na dor que a desconsola,
Diz (pois como a vergontea se estiola
Sem luz, sua face a pallidez tingia):
 
 
«Para onde vás? e deixas este ninho
«Que de frouxel teceu a doce amiga,
«Que a brincar com o teu bico se enamora?»
 
 
Ouviu-a enternecido o passarinho,
Bate as azas para a prisão antiga,
Que tanto póde uma mulher que chora.
 

O que haverá na poesia antiga que exceda este primor? Quem soube idealisar assim uma lagrima? Comprehenderia ella a profundidade d'este sentimento? E sorria-se de cada vez que lhe enviava novas confidencias, mas do mesmo modo que sorria para todos. Para todos! Sempre esta idéa infernal a envenenar-me todas as horas da vida. O poder das lagrimas que lhe descobri, a fraqueza que vence todas as forças, não tinha esse mysterio, quando as derramei ao vêr-me nú, abandonado pela esperança fagueira, que fugira como o passarinho de Lucinda. Disseram-me… nem eu sei o que me disseram. Fôra a mãe, a mesma que a susteve nos joelhos quando a atirou á vida e a amamentou com seu leite, quem a arrojou á perdição. Quem havia de adivinhar que sob um ár de candura, que a cercava de uma auréola divina, vergava uma alma oppressa pelos insultos dos que lhe pagavam! O que é uma cidade grande! Não se devoram com os horrores da anthropophagia, mas a vida vae continuamente alimentando-se da vida. Não sei, não posso contar-te tudo.»

Um anno depois encontrámo-nos; o pobre rapaz estava possuido novamente da paixão dos livros. Era uma anciedade de saber, não menos funesta, que o amputava para todos os gosos da vida. Não me atrevia a fallar no antigo amor; tinha medo de acordar-lhe as agonias que estariam talvez já adormecidas. De uma vez, estavamos juntos, vi passar a distancia uma rapariga, um typo raphaelico de candura; ia seguida por uma mulher velha e tropega. Era uma antithese que fazia pensar muito. Elle olhou-a e foi acompanhando-a com a vista, com certa anciedade; depois, como refreado pela reflexão, olhou para mim envergonhado, córou e disse, procurando esconder esta impressão repentina:

– É ella.

Não comprehendi immediatamente; fui barbaro, pedindo que me explicasse o mysterio d'essas palavras intercortadas. Elle apenas pôde proferir uma, mas que era o resumo de todas as dores e decepções, da compaixão que ainda sentia, do ideal a que tinha aspirado, da fatalidade a que tinha succumbido. Olhou-a, ella já ia longe; depois que a viu desapparecer, disse, contemplando ainda e com a voz a apagar-se:

– Uma ruina!

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