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Contos Phantasticos

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EPISODIO DA HISTORIA DA INQUISIÇÃO EM HESPANHA
I

Quem o visse sentia-se atrahido para elle por uma fatalidade irresistivel. O olhar encovado e scintilante tinha a fascinação da onça refalsada. A estamenha monastica da humildade era uma arma de que se servia. A côr sombria do remorso, que o ralava interiormente, sabia invertel-a tão bem na maceração da penitencia, que assim facil lhe era devassar todas as consciencias, e submettel-as ao seu capricho, tyrannisal-as, alimentando sempre uma infinidade de horrores futilissimos, com que as trazia suspensas. Cabisbaixo, meditando continuamente um longo plano de vingança, de uma sevicia obscura e mesquinha, os que o viam achavam n'aquella gravidade satanica de monge um ár contemplativo de compunção piedosa.

O frade fez-se Director espiritual.

De uma extração illustre, rico, herdeiro de um grande nome, porque despresaria as pompas do mundo, os amores do seculo, as glorias? Acordar-lhe-hiam os annos todos esses sentimentos a um tempo na alma, e o horror do impossivel tornal-o-hia hypocrita, apagando-lhe a esperança com o sopro do cynismo? Elle amára a filha de um velho fidalgo de Hespanha, que desejava tambem realisar essa alliança dos seus pergaminhos com as grossas sommas do enamorado de Hernanda, a madrilena engraçada, de ingenua desenvoltura. Hernanda, na morbidez voluptuosa da sua natureza oriental, nunca mais sorriu, nunca mais deixou vêr aquella alegria impaciente que a animava, logo que soube a resolução da familia. Detestava o galanteador, aborrecia-o de morte, resistindo sempre ás instancias e ameaças do pae, que procurava sacrifical-a aos interesses e pompas do seu brazão de armas.

Hernanda tinha um amor de infancia, puro, recondito; como um raio de luz que nos fecunda ao desabrochar da vida, aquella affinidade precoce e ignorada de todos fora uma intuição do sentimento. Amaram-se longo tempo sem saber o que era amor. Quando um dia acordaram á luz sentiram necessidade um do outro, a anciedade de uma mesma aspiração identificou as suas almas para sempre. Cedo o noivo proposto soube da existencia de um rival obscuro. Procurou-o, farejou-o na sombra, lançou-lhe o repto. Encontraram-se. Ambos corajosos e fortes bateram-se destemidos em um duello a todo o transe.

Logo que Hernanda soube da morte do seu amor primeiro jurou um odio eterno ao assassino. O velho fidalgo não comprehendia estas coisas; ameaçou-a com o convento. A idéa da clausura, em vez de amedrontal-a, sorriu-lhe; era um refugio, o unico que lhe restava no mundo, depois de perdida a esperança que resume todas as que se podem ter na vida. Professou.

O galanteador assistiu impassivel na egreja, para ouvil-a pronunciar os votos. Havia n'aquella coragem uma alegria selvagem, egoista, para vêr que a mulher que elle amava debalde, não havia de pertencer a mais ninguem. Depois de satisfeito este instincto, lembrando-se de que fôra ludibriado, despresado, passou-lhe pela cabeça uma idéa atroz de vingança. Queria salvar o seu orgulho ferido. Lembrou-se tambem de abandonar o mundo, esconder-se debaixo da cugula monastica. Para os que o conheciam foi um rasgo heroico de resignação; para elle era um meio de poder vêr de mais perto Hernanda: só assim podia tortural-a, vir a ser seu Director espiritual.

O socego da solidão deixa apreciar os ruidos mais imperceptiveis; Hernanda na mudez da cella, na ausencia completa de interesses que lhe povoassem a existencia, era impressionada profundamente pelos sentimentos mais leves que lhe passavam n'alma como as auras suaves pelas cordas de uma harpa. A imaginação desenvolvera-se a tal ponto, que a fazia soffrer. Foi assim que frei Pedro, o disfarçado monge, veiu a ser seu Director de consciencia. Elle exagerava as doutrinas mysticas do dualismo, o predominio do mal, essa lucta incessante do espirito contra a carne, fortificada pelas mortificações do corpo, pela vigilia, cilicios, jejuns, e orações fervorosas. Provocava-a a abstrahir do goso dos sentidos, a contrariar a natureza e abnegar da vida. Apontava-lhe a natureza risonha e luxuriante como uma voluptuosidade, o regosijo e sêde de amor que a harmonia do universo infunde como uma infracção á regra austera da perfectibilidade.

Era preciso a solidão para gosar essa existencia intima, recondita, e arrebatar-se até Deus. Com o silencio imposto, arvorado em preceito, exaltou-lhe a vida interior, e o tumulto de idéas que se succediam prolongava a excitação cerebral. A vigilia extensa e continua, a maceração e a leitura piedosa foram-lhe desconcertando o equilibrio nervoso. As visões extravagantes cercavam-na; vozes estranhas segredavam-lhe palavras assombrosas, que ella repetia tremendo na penumbra do confessionario.

Foi então que o monge, depois de a ter desprendido pela ascese insistente dos limos da terra, lhe começou a falar de amor, o amor divino, a anciedade preenchida pelo vacuo, a sêde mitigada com a calma do dezerto. A imaginação perdida n'esse ideal vago, sem realidade possivel, delirava, revestia a imagem palpavel com todos os encantos de um devaneio sensual, dava-lhe vida, amor, para corresponder ao que tumultuava na sua alma solitaria. Mulher, menos curiosa da razão sufficiente das cousas, sujeita a perturbações hystericas, enamorava-se da fronte altiva e conjuntamente modesta do Christo, como a representavam os pintores da Edade media; esquecia-se da vida exterior, parecia que a alma livre se absorvia na imanencia da divindade. Era este amor, inspirado pelas imagens dos templos, tão desvairado como a paixão do artista grego pela estatua eburnea que palpitava debaixo do escôpro. Santa Rosa de Lima amava uma imagem da Virgem que tinha nos braços o bambino. Ozana de Mantua, diante de uma imagem linda, caía em extasis. Estas figuras de Jesus, radiantes de candura e fascinação, bellas, fallavam aos sentidos; é por isso que o amor divino tem na sua vehemencia e transporte um caracter sensual, como o exprimiram o solitario da Ombria nos seus cantos a Santa Clara, S. João da Cruz a Santa Thereza de Jesus, Madame Chantal e S. Francisco de Sales, Fenelon e Madame Guyon.

O Director espiritual da desditosa Hernanda, descrevendo-lhe o amor divino, isempto da zelotypia das paixões do mundo, não tendo a alma candida de nenhum d'esses apaixonados e santos poetas, presentira, dois seculos antes, a theoria ascetica de Molinos. Tinha em vista matar o peccado pelo peccado. Era impossivel já. Hernanda pairava em espirito pelo empyreo; sua alma pura abysmara-se na immensidade do fóco de todo o amor. O extasis em Hernanda, originado pelo fervor piedoso, era o entorpecimento dos sentidos, um scismar indolente á cadencia dos inefaveis concertos das cytharas dos cherubins.

Então o Director de consciencia descobriu uma nova tortura para flagellal-a; tinha um prazer infernal em tornar-lhe lento o soffrimento. Elle mostrava-lhe que era o extasis o mais alto favor do céo concedido aos seus eleitos, e descobria ao mesmo tempo como isso era para todos os grandes santos uma provação difficil, pelo terror dos proprios merecimentos. Sam Paulo, o que melhor revelou nos seus escriptos o espirito do christianismo, na Epistola segunda aos Corynthios, fala d'este terror.

N'aquella virgindade timida da alma, o corpo foi caindo em inanição; tinha uma immobilidade beatifica. Apesar de todos os flagicios e macerações, o rosto conservava ainda a frescura da rosa entreaberta, rociada pelo orvalho matutino. No passamento das virgens, sereno como o declinar de uma aurora vespertina de primavera, Jesus visitava as suas desposadas, como referem os legendarios. Hernanda abrazára-se no amor ardente do céo; o vacuo absorvera-lhe o derradeiro alento e sua alma soltou-se na ancia do infinito. Alta noite, sentiram-se umas harmonias transbordando em enchentes do orgão do mosteiro; era uma musica indisivel, nunca ouvida na terra. Foram vêr; ninguem percorria o teclado. Melodias suavissimas e remotas derramavam-se da cella de Hernanda. Entraram. Respiravam-se perfumes aérios em torno d'ella. Um sorriso diaphano, angelico, lhe ficára nos labios desbotados, como a ultima vibração de uma harpa que se quebrara; parecia a incarnação de um sonho melifluo das harmonias de Palestrina.

II

Desde o romper d'alva, que os sinos da Cathedral eccoavam clangorosos n'um dobre funerario; o povo agitava-se inquieto pelas ruas, como na impaciencia de uma grande festa. Era o dia de um Auto de Fé em Hespanha, uma solemnidade extraordinaria, com que se celebrava e honrava a coroação dos reis, o nascimento do herdeiro presumptivo, e a sua maioridade; era o grande drama judiciario da velha jurisprudencia theocratica revestido dos horrores do symbolo, mesclado de sangue derramado pelo fanatismo e prepotencia monachal. A procissão vinha coleando ao longe, com uma gravidade funebre, misturada de risos do rapazio que tudo parodía. Por todas as janellas negrejavam cabeças, donzellas engraçadas, contentes, distraidas com a festividade apparatosa. Á frente das confrarias e irmandades, os carvoeiros traziam a lenha para a fogueira, imitando o passo da Escriptura, em que Isaac caminhava para a montanha do sacrificio. Seguiam-se em filas extensas os frades dominicanos, arvorada na frente a cruz branca, e o bolsão inquisitorial de damasco vermelho do duque de Medina Celli. Os penitenciados vinham vestidos de um modo irrisorio e grotesco, descalços, cobertos de um sambenito, com um chapeu afunilado, com figuras cabalisticas, diabos, labaredas e caveiras pintadas.

A multidão pavida e credula, sentia aquella grande contradição do coração humano, apupava os miseraveis que interiormente a commoviam e lhe arrancavam lagrimas de compaixão. Chegados proximo do estrado real, o Inquisidor geral veiu receber o juramento da extirpação das heresias. Os brandões crepitavam nas mãos dos condemnados; tornavam mais lugubre o momento. Depois viu-se levantar uma figura macilenta, a cabeça encoberta no capuz, cruzadas as mãos sobre o peito em que tinha repousado um crucifixo, o mesmo que um dia apresentára diante dos reis catholicos Fernando e Izabel, dizendo-lhes que – o vendessem por trinta dinheiros, já que se queriam tornar menos rigorosos contra os judeus. Era o prégador frei Pedro. A voz taurina fazia estremecer as turbas, representando-lhes ao vivo, nos esgares e visagens que fazia, os terrores das penas do inferno. A multidão estava suspensa ante as vociferações sangrentas do dominicano.

 

– Sabes… (disse um desconhecido para um cavalleiro ainda novo, que estava attento) não o conheces?

O outro respondeu-lhe em voz baixa, de um modo quasi imperceptivel:

– Ah, és tu, Diego Ortis? Bem o conheço pela fama de seu nome. É Pedro de Arbués.

E não te sentes possuido de raiva ao pronunciar esse nome de um hypocrita e assassino?

– Assassino?

– Sim! Bem o devêras saber, porque é a ti a quem compete a vingança. Elle pretendeu por todos os meios desposar Hernanda, tua irmã. Lembras-te? Era rico, e teu pae desejava com todas as veras d'alma este enlace. A infeliz menina resistiu sempre, até que se viu obrigada a professar em um mosteiro, abandonada da familia. Não é verdade isto? Ferido no orgulho, elle metteu-se a padre, disfarçou-se debaixo da cugula monastica e fez-se seu Director espiritual. Matou-a lentamente com jejuns e macerações, com a lembrança continua da tentação e da condemnação eterna. Pobre Hernanda! o mundo disse que morrera como uma santa; Deus sabe que desesperos profundos lhe abalaram a vida, e quantas vezes, no intimo da alma oppressa, não amaldiçoou a hora do seu nascimento!

– E como sabes isso?

– Como o sei? Eu digo-te só que a vingança não dorme. Tambem tenho um legado de sangue a cumprir. Era meu irmão o apaixonado, o eleito de Hernanda. Se ha nada mais santo do que um amor que nos acompanha desde a infancia. Alonso Ortis, doestado pelo rival audacioso, bateu-se generosamente e caiu ferido, morto á traição. Já comprehendes tudo.

– Inferno! Para que me disseste essas cousas aqui, entre esta gente? Sinto a convulsão da raiva que prostra, a sêde de sangue que me atira para elle. Hernanda! a desgraçada, a silenciosa, a timida, que tudo soffreu e nunca soube queixar-se! Eu quero trocar todas as tuas dores por um prazer egoista de vingança. Fala-me, Diego Ortis; o que queres de mim?

– Quero prudencia! Eu tenho esperado dia e noite, por toda a parte, e nunca o tenho encontrado! nunca esta mão deixou de repousar sobre o punhal, e ainda me parece que não é chegado o momento.

A este tempo o frade estava na peroração do discurso; a turba batia nas faces, consternada, por terra. Os dois vultos permaneciam de pé, insensiveis. O prégador desceu do pulpito e vinha acercando-se d'elles com um olhar ameaçador, para reprehendel-os da insólita irreverencia. O joven fidalgo precipitou os planos de vingança, e arremetteu com um punhal no ár: apesar do impeto com que foi brandido resvalou sobre o habito que encobria debaixo uma armadura cerrada.

Ergueu-se um susurro repentino. Era impossivel a salvação; com a ancia do desespero Diego Ortis descarregou-lhe promptamente sobre o craneo tonsurado a sua espada de cavalleiro. O povo alarmou-se e ia a precipitar-se sobre os facinoras; recuou de horror diante da impassibilidade dos dois. A estatura corpulenta do padre tomou as proporções de um Goliath, derrubado, banhado de sangue negro, a massa encephalica derramando-se pelas soturas fracturadas do craneo. Fazia horror.

N'aquelle mesmo dia os dois assassinos foram penitenciados; interrompeu-se a missa, e a procissão proseguiu levando-os para o Quemadero, onde, com os demais, foram devorados pelas chammas. Seguiram-se as pesquizas, as vexações e os sequestros; com os seus processos tenebrosos a Inquisição lançou a rede por sobre muitas familias. A Hespanha era, como se disse, uma grande fogueira. Mas como ha uma antithese fatal na natureza humana, manifestada muitas vezes, a cada instante da vida, na transição instantanea do sublime ao ridiculo, Roma parodiou tambem esta scena sanguinolenta do drama tetrico de Torquemada na farça jocosa da canonisação do frade prégador, que ainda hoje se venera nos altares e de quem resa a folhinha com o nome de S. Pedro de Arbués.

Ora pro nobis.

A adega de Funck

CONTO FUNDADO DAS NOTAS DE HOFFMANN

A ironia, quando não é despertada pela lucta incessante de contrariedades imprevistas, que cercam o espirito de duvidas e desesperos, e o deixam na prostração da indifferença e do cynismo, é uma doença, uma febre lenta, que vae devorando a existencia, depois de a ter despido de todas as alegrias. Observa-se no pessimismo do poeta. O riso com que a ironia se traduz, que é a expressão que mais de prompto lhe acode no accesso do phrenesi suscitado pela vista repentina de um contraste, para quem o comprehende, é uma visagem infernal, um esgar que gela, um arremedilho de cadaver sacudido por uma pilha galvanica. É uma descarga nervosa pela via muscular, como uma compensação, como notaram os physiologistas.

A gargalhada é tambem a linguagem das grandes agonias; é esta polaridade mysteriosa da nossa natureza dupla, constituida já em aphorismo: os extremos tocam-se. A ironia, derivada do mesmo principio supremo, é a impressão abrupta de uma idéa infinita que se compara com outra finita, cuja disparidade intuitiva desperta em nós todas as vibrações do sentimento comico. A primeira manifestação do comico na vida foi por certo o grotesco; Susarion e Thespis caracterisavam os seus personagens com borras de vinho. Elle apparece-nos no mundo moderno como uma arma da burguezia contra a pressão do clero e as extorsões dos senhores feudaes, na Festa do Asno, nos serviços, nos fabliaux, nos baixos relêvos e goteiras das cathedraes. O pico, a agudeza do pensamento estão completamente materialisadas na imagem; eis o comico pela sua parte visivel ou objectiva, tanto da sympathia popular.

O humour é um gráo elevado; no contraste que se funda na antithese da acção e o pensamento, a fórma não corresponde, contraría mesmo a expressão da idéa, d'onde resulta uma monotonia triste; o esforço do que procura alegrar-se infunde nos que o contemplam uma melancholia indefinida, como na Viagem de Sterne.

A ironia é a impossibilidade de conciliar os elementos da antithese, ou o contraste mental que gera todo o sentimento comico: tal é o desespero de Hamlet propondo ao seu espirito o problema insoluvel e eterno:

 
To be or not to be that is the question.
 

A imaginação de Hoffmann similha um kaleidoscopo onde estas trez cambiantes do sentimento se reflectem, confundem, se cruzam em direcções infinitas, formando um espectro a que chamamos o phantastico. A ironia, o humorismo e o grotesco succedem-se, como phases da sua inspiração. Quando elle sente estas inversões do systema nervoso, annuncio da tabes dorsalis que progride de um modo irremissivel, o pensamento então dá fórma a todas as vertigens; a dôr torna a creação pessoal, caprichosa; os retratos que elle faz são quasi sempre caricaturas, a incarnação de um riso de desespero. As bebidas e o seu cachimbo de Kumer vêm distrail-o da consumpção que elle observa a cada instante em si. O fumo que se ennovella em fórmas extravagantes no ár, e se dissipa como uma chimera fugitiva, representa-lhe os typos que reproduz nos seus contos. Ao fogão, na concentração intima da familia, o cachimbo povoa-lhe o aposento de sylphos e gnomons, que embalam a phantasia enlevada em sonhos incriveis, com musicas estranhas que o deliciam no egoismo do soffrimento que o corróe. Elle tem uma affeição particular ás pessoas espirituosas, porque lhes suppõe talvez a veia sarcastica proveniente de algum estado morbido. Quando se retrata caricaturisa-se.

Muitas vezes acceita-se uma creação comica, rimo-nos, sem saber que a inspiração que a produziu foi a doença que arrebatou Molière, o desalento de Gil Vicente, a resignação de Scarron. Porque não procuraria Hoffmann distrair-se com o vinho, afogar n'elle a preoccupação do mal irremediavel, que lhe atacava a espinha dorsal?

O seu editor Funck, homem estimavel de caracter, a quem a especulação não poz em guerra com os que têm a infelicidade de precisar escrever, convidou-o para passar alguns dias na sua residencia em Bamberg. Funck tinha uma magnifica adega e lembrava-se perfeitamente d'aquellas expressões de Hoffmann: «Fala-se muito do enthusiasmo que procuram os artistas no uso das bebidas fortes; citam-se musicos, poetas que não podem trabalhar senão assim; eu não sei, mas é certo que com esta feliz disposição, direi, quasi sob a constellação favoravel, em que se está quando o espirito passa da concepção á realisação, as bebidas espirituosas acceleram a torrente das idéas.»

Funck tinha o mais excellente de todos os vinhos, como lhe chamava Hoffmann, o Porto, que no seu nome traz o segredo da sua força. O escriptor original era esperado com anciedade em Bamberg. Chegou por uma tarde fria. O céo estava escuro, carregado de nuvens; relampejava a espaços, como o preludio de uma grande trovoada nocturna. Quando a natureza é triste sentimos uma vontade de nos reconcentrarmos; o lar domestico é a grande poesia do norte. Um dos maiores castigos no antigo direito germanico era a pena severa expressa n'aquella formula romana interdictio tecti; o banido é comparado ao lobo solitario; a casa era arrasada, tapado o poço, extincto para sempre o fogo do lar.

Hoffmann esquecia todas as dôres ao abraçar aquelle amigo; com toda a liberdade de uma confiança intima sentou-se logo ao piano. O phrenesi da inspiração fazia-o percorrer desesperadamente o teclado. Era a sua ultima composição, meio improvisada com o jubilo que sentia. Começou um canto com uma voz desentoada, que fazia arripiar os nervos; parecia que estava em delirio. N'isto um trovão rebentou com um estampido soturno.

– A natureza, disse elle para Funck, escarnece-se de mim, parodia-me a voz roufenha. Ha bastantes dias que tenho sentido humor para o romantico religioso. Jovis omnia plena! Hoje, não sei se é o excesso da alegria, predomina em mim uma exaltação humoristica levada até á idéa da aberração.

Funck continuava silencioso. Hoffmann permaneceu alheiado alguns instantes, como levado por uma serie de deducções, que absorvem fatalmente toda a contenção do espirito. Estava a diagnosticar-se; a prolongada doença dera-lhe um certo conhecimento do seu estado. Depois proseguiu:

– É notavel! Que diversidade de sensações agora. Disposições humoristicas, colericas, com um humor musical exaltado, e sentimento de um bem estar com indifferença. Como conciliar tudo isto? O systhema nervoso inverte-se-me de dia para dia.

Restrugia um aguaceiro espesso. Ha no cair da agua uma magia, que adormece.

– Vamos, disse Funck, interrompendo aquella reflexão penosa, eu tenho um excellente remedio. Vejo-te tiritar com frio, de um modo que me tira a satisfação do agasalho que presto a um amigo. O seio de Abrahão deve estar com uma temperatura suave; refugiemo-nos lá.

– Como isso era bom! mas infelizmente as azas da poesia não nos desprendem da terra; a realidade é peior do que o sol para as azas de Icaro; ella toca-nos o corpo com mais aspereza do que o velho Satan quando experimentava o desgraçado varão da terra de Hus. Agora acho-me divorciado com a poesia, com a musica, com a pintura; são as tres furias que sob uma apparencia seductora surgiram das sombras do paganismo para attribularem-me o espirito.

– E por que não havemos de refugiar-nos, em uma tarde d'estas, no seio de Abrahão? – disse Funck procurando interromper a corrente das idéas afflictivas. – Não é tão dificil como pensas. Nem são precizas azas para ir lá. Para descermos basta obedecer á lei eterna da gravidade, que sobre nós pésa. Não sabias ainda que a gravidade é o nosso peccado original?

Hoffmann sorriu-se; o seu amigo tomou um tom humoristico para se adequar ao caracter d'elle n'esse dia.

– Apesar da facilidade que apresentas ainda não resolvi o problema. Como iremos nós procurar conforto ao seio de Abrahão?

– Segue-me.

Funck caminhava adiante com um ár victorioso. Hoffmann sorria-se com um modo duvidoso, para que o riso o defendesse do logro que esperava. Desceram uma escadaria escura; uns ferrolhos pesados gemeram, como se se abaixasse uma ponte levadiça. Entraram. Era um subterraneo fundo, allumiado por um lampadario de bronze. Depois de affeito á sombra, Hoffmann pôde discriminar grandes toneis dispostos, como uma longa fila de cachaci-pansudos conegos.

 

Era a adega do seu amigo Funck. De facto havia ali uma temperatura tepida, de fermentação. Nenhum olhar importuno através da abobada calada.

– Se os velhos patriarchas, principalmente nosso pae Noé, não trocariam de boa vontade a tua adega pelo seio de Abrahão! – Hoffmann estava animado de uma alegria indisivel; era um homem de extremos; a sensibilidade excessiva deixava-lhe apreciar os mais desapercebidos contrastes, era por isto que elle possuía mais do que ninguem o genus irritabile vatum.

Mal acabava de proferir aquellas palavras, quando se atirou de um salto, com uma loucura de criança, e se escarranchou em um tonel.

Funck seguiu o exemplo.

– A vida é um grande mar, que estua em convulsões interminaveis; felizes os que caindo na voragem encontram d'estes delphins, que os tomam sobre si e os levam a porto seguro.

– Foste feliz na imagem, principalmente, porque o vinho desperta-me o humor erotico-musical, e os delphins, se dermos credito a antigos fabuladores, eram levados pela magia da musica.

E começou a cantar alguns trechos da sua opera a Ondina, que só interrompeu para levar á bocca o sifão de lata que estava mergulhado na pipa. Hoffmann tocava a realidade dos seus contos.

– Este não dá pelos calcanhares do teu dilecto Porto? – accudiu Funck; o vinho de Nuits é dos melhores de Borgonha, e, graças ao céo, podemos nadar em mar de rosas.

A noite corria tempestuosa e tetrica: os trovões rebentavam com uma detonação tremenda. Nos áres, coriscou um relampago repentino e veiu illuminar com um clarão pallido o rosto dos dois amigos, que tocavam n'este momento os copos espumantes. Era um quadro com toda a verdade e simplicidade de Teniers, como o proprio Funck, em uma nota de uma edição do seu amigo, confessa com aquella ingenuidade allemã.

Hoffmann ficou deslumbrado com o fulgor instantaneo; tinha a mudez do terror.

– Em que pensas?

– Um conto, um conto horrivel!

– Mais uma saude, e narra-me essa historia ponto por ponto.

– Historia? dizes bem; porque tem muita verdade, ao menos a verdade da arte. Nunca te fallaram n'isso? Admira! Foi tão notorio. Quem a não conheceu! Bella, como era, ninguem podia fital-a sem experimentar o pasmo da admiração. As linhas do semblante tinham uma irradiação etherea, perdiam-se no ár. Era uma visão suspensa, a incarnação de um sonho indizivel de amor.

A tristeza realçava-lhe a candura angelica. Para ella, a vida era um desterro no mundo. Passava, alheia de tudo, distraida, sem saber que levava apoz si todas as aspirações que um olhar de relance, fortuito, gerava na alma. Um dia vi-a pelo braço de um homem feio, que a conduzia com burlesca familiaridade! Disseram-me que era o marido.

Perscrutei o segredo de uma união para mim impossivel, inexplicavel. Não tinha sido arrojada a hypothese: viviam com uma certa paz artificial, um accordo de convenção ante a sociedade. O marido bem conhecia, que a familia da engraçada criança a forçara áquella união desegual; a consciencia da riqueza não conseguira persuadil-o de que a merecesse; e espreitava, espiava-lhe todos os olhares, interpretava-lhe cada gesto insensivel.

O que não idearia o ciume? O ciume que não tem a franqueza selvagem de Othello é vil, infame. Um dia, a infeliz senhora, começou a sentir-se indisposta; não faltavam carinhos da parte do esposo, não poupava esforços para consolal-a, com uma solicitude hypocrita. O mal progredia, convulsões violentas a accommettiam, vertigens assombrosas, dores intensas, como se lhe retalhassem as entranhas. O marido escutava os gemidos com um pungimento affectado.

Conhecera que morria: – «Sabes, disse ella tomando-lhe uma das mãos, eu deixo a vida, mas custa-me baixar á frieza do sepulchro sem te dizer uma palavra. Oh! nem sei como revelar-te esse segredo, esse desvario de uma paixão infantil. Não soube guardar a fidelidade do thalamo.» O marido ouviu a confidencia solemne com um ár estupido de imbecilidade: – És n'este momento tão generosa e grande! A verdade nos teus labios vibra-me de um modo que tudo te perdôo. Choras? escuta. Deixa tambem fazer-te uma revelação tremenda: envenenei-te.

Hoffmann não pôde tirar do conto a moralidade que se espera, e caiu, esquecido do mundo, entre os toneis do seu amigo.

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