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As aguias do norte

(CONTO POLACO)

Harpa sacrosanta, orvalhada pelas lagrimas dos videntes, que repousam sobre ti frontes encanecidas, banhadas no pranto do captiveiro, quando á tarde abandonada na solidão do exilio, á beira da torrente, a aragem vespertina vinha gemer em tuas cordas, o cantico remoto era como o anceio de um coração oppresso, ai, que se perde confundido com o rojar das cadeias.

Inclina-te agora em meus braços, e vibra-me um canto de desespero, insoffrido, eterno, para acordar a turba, que dorme sob o peso das gargalheiras.

O vento livre saberá levar a toada longinqua, para achar ecco no peito dos desgraçados. Patria! patria! és a tunica inconsutil sobre que rodam os dados do infortunio.

Polonia! tu és o peito exangue, ferido pela lança do incredulo. Podesse o teu sangue dar a vista ao que te fere com mão obstinada. Ao menos, que o teu ultimo arranco afaste para bem longe o bando dos abutres selvagens que pairam sobre ti, Prometheu, algemado em terra, mas, que ainda nas convulsões da agonia mostra a animação do fogo divino da liberdade.

Oh! mas o que vale ao poeta desterrado contemplar a ruina da patria! Para que ha de elle pedir á sua harpa um canto de angustia e saudade, se aquelles que o escutam e se sentem fortes para luctar com um esforço sobrehumano, são depois martyres do sublime enthusiasmo?

Que tristeza profunda o lembrar-me que o meu poema a Tentação, exaltando os estudantes da Lithuania para sacudirem os tyrannos, fez com que os oppressores arrojassem para os steppes e minas da Siberia a flôr da mocidade da Polonia! Pobre Karl; ainda tenho aqui a carta em que elle me conta os trabalhos da jornada para o desterro:

De um estudante de Lithuania ao Poeta anonymo da Polonia

«Em todos os tempos a poesia tem sido a expressão dos sentimentos profundos da humanidade; chora com as suas dôres, e é ella que vae ao sepulchro das nações proferir o Surge et ambula á raça supplantada pela pressão dos despotas. Desde os prophetas de Israel, e Tyrteu e Callino até Rouget de Lisle, Kerner e Poetefi, a poesia tem dirigido as revoluções; é como a columna de fogo que leva á terra promettida através dos errores do dezerto.

Nós eramos crianças, animados dos sentimentos mais puros, que a edade não deixa contaminar; choravamos de magoa e despeito, com vergonha de vermos envilecida, sob o jugo obscurante dos czares, esta pobre patria esmagada por um colosso de inercia e barbarie. Um dia appareceu-nos um poema estranho, novo, um grito ancioso em que se exhalava uma alma. Pareceu-nos a voz da Polonia que nos chamava em seu desalento; sentimo-nos fortes no primeiro impulso.

Estudavamos em Lithuania; uma noite reunimo-nos para lêr o poema. Brilhava em cada rosto um lampejo de colera e esperança. Cada estrophe era um sobresalto, a anciedade do sacrificio. Eramos como aquelles crentes dos primeiros seculos do christianismo, tinhamos a sêde do martyrio. A noite da conjuração era tempestuosa como os pensamentos que nos agitavam. Jurámos alli, com as mãos sobre as estancias mysteriosas que nos vieram despertar do lethargo da oppressão, abnegar do amor, da familia, da vida, por esta desgraçada Polonia. A alampada solitaria que allumiava o aposento deixava uma penumbra phantastica e terrivel, como em um tribunal whemico; os olhos coruscavam com brilho de alegrias sanguinarias. O enthusiasmo precipitava-nos. Sentiamos forças de Atlante, uma audacia e tenacidade para a lucta; mas, via-se ao mesmo tempo em cada rosto a sombra, não sei de que pensamento funesto, de uma aspiração irrealisavel. Seria uma desgraça imminente?

Quando nos abraçamos como irmãos na mesma crença, para os transes mais dolorosos, correram as lagrimas, ferventes, como nos momentos rapidos de uma despedida para sempre. Havia um silencio augusto. Parecia que o céo e a terra escutavam o nosso juramento; que a patria agrilhoada interrompera os lamentos para escutar a voz consoladora de seus filhos, que esperavam o dia da redempção.

Foi então que ella appareceu, Hedwige, a mulher que eu amava, o cabello destrançado pelo vento da noite, cansada, offegando, sem côres, enfiada de susto. Julguei-a uma apparição angelica, que baixava para trazer-nos a palma do martyrio, a annunciar os transes d'este horto em que estavamos recordando as agonias da Polonia. Como ella estava bella, radiante; era uma prophetisa, altiva como Débora quando proclamava ás gentes a lei, a sombra das palmeiras entre Rama e Bethel, sobre as fronteiras de Benjamim e Ephraim. Ficámos suspensos, esperando o hymno que havia romper dos labios sellados por um mysterio profundo. Como deixou ella a casa de seus paes, nas sombras da noite medonha? Como soube onde estavamos; quem a trouxe aqui? Fôra o amor, esta illuminação da segunda vista. Hedwige proferiu, depois de alguns instantes de repouso, com a voz entrecortada e tremula:

– Ainda é tempo! Os soldados russos vêm em busca de nós; sabem da conjuração, e perseguem-nos; poupemo-nos para a hora suprema do resgate.

Depois ella veiu para mim e abraçou-me. Ia começar a fallar, quando se sentiu na rua o estrepito de armas, e vozearia de uma soldadesca brutal e desenfreada. Não me custava a vida; mas tel-a a meu lado, alli! vêl-a sujeita á irrisão e malvadez dos que vinham para prender-nos! Pobre Hedwige; ella abraçou-me e sorriu-se:

– Tens medo? vejo-te tão pallido! Receias que eu não tenha coragem para corresponder á tua bravura? Eu sou mulher, é verdade. Era ao suspiro de uma mulher que a liberdade romana acordava sempre. Lucrecia e Virginia ensinaram-me tambem a ser forte um dia. Karl! eu sinto que n'este instante nos une um amor mais alto e desinteressado, que nada tem das paixões terrenas. Dá-me o abraço que ha de fundir n'uma só as nossas almas para sempre. Agora já te posso dizer como Arria, se te visse esmorecer no perigo, o que elle disse levando o punhal ao peito: Pœ, us, non dolet!

O tumulto, o som confuso das armas, o tropear dos soldados, não me deixaram ouvil-a mais. Entraram na sala sombria, como uma onda turbulenta que irrompe derrubando os diques e se precipita como um vertice fremente. As armaduras reluziam, e nos causavam a vertigem do terror. Um frio lethal escoou-se por mim; lembrou-me luctar para defendel-a.

Reinava um silencio de morte. Já sabiamos a sorte que nos esperava. Depois vieram lançar-nos as cadeias pesadas, as gargalheiras infamantes da escravidão, ultrajando com risos aquelle sentimento puro que nos dava constancia para o martyrio. Era impossivel resistir; todo o esforço seria inutil. Deixei passivamente algemarem-me. Um olhar firme de Hedwige inspirou-me uma resignação indizivel. Não sei que apparencia divina, que irradiação sublime, etherea, envolvêra o rosto da minha amada, que os soldados não se atreviam a aproximar-se. Seria esse terror, que fazia cair em terra, fulminados, os que tocavam na Arca sacrosanta? Na serenidade altiva que ella mostrava n'este instante, conheci-lhe uma resolução extrema; Hedwige queria tambem ser prisioneira, para soffrer commigo as dores do desterro. Ella lançou mão do poema que estava sobre a mesa, e começou a recitar algumas das estrophes mais arrebatadas, com uma voz prophetica, no tom mysterioso de uma sibylla. A magia d'aquella voz sentida prendia; ficaram immoveis, quedos, escutando-a:

Fragmentos de uma Elegia polaca

– «E lentamente, mui lentamente, por detraz do Homem-Deus, avança deslumbrante de belleza e sem vestigios de morte a minha dilecta Polonia. – Ella pára sobre os umbraes da Sião promettida a todos os povos, e – d'estas alturas sagradas sua voz retumba, dirigindo-se ás nações reunidas muito longe, lá em baixo, nos términos do espaço.

«A mim, a mim, oh vós, raças fraternas! A ultima lucta do derradeiro combate terminou; – os embustes das traições e das mentiras terrestres estão destruidos. – Subi commigo para o reino da paz.» – E o côro das nações lhe responde: «Benção e gloria a ti, oh Polonia! porque ainda que tenhamos todas soffrido, – tu supportaste mais tormentos que nenhuma de nós, – Pela enormidade das injustiças accumuladas sobre ti, conservavas constantemente o inimigo debaixo do raio de Deus! – No transe do martyrio, tiravas de teu coração uma vida mais energica que a dos teus oppressores, – e pelo teu sacrificio nos salvaste. – Benção e gloria a ti, oh Polonia!»

Oh! quantas vezes por uma noite sombria do outomno, a voz de minha mãe ou de algum antepassado sáe do tumulo, e chega até mim para me fallar do futuro. – Eis que a este ruido mysterioso, visões estranhas me apparecem. – O canto de triumpho soltando-se do peito de milhões de homens, resôa em derredor. – Os vencedores passam em phalanges innumeraveis, – eu vejo as brancas, resplandecentes figuras das irmãs e dos irmãos libertados da escravidão; – a centelha da immortalidade faisca de todas as frontes. – Mesmo sem azas, elles vogam no ár, como se fossem alados; sem corôas brilham como se fossem coroados. – E eu mesmo prosigo no meio de todos, e me sinto em uma especie de céo desconhecido, antecipado.

E, quem sabe? talvez que a prophecia dos meus sonhos se realisasse já sobre o tumulo da Polonia! E não havia senão eu, eu cadaver, que faltava entre os resuscitados! Oh, através d'estas grades e d'estes muros que me fecham como as taboas de um feretro, o meu espirito se illumina e se expande ao longe, transpondo o tempo e o espaço! – Sim, eu vejo: além, por toda a parte myriades de estrellas e flores; – o mundo regenerado celebra suas nupcias com a joven liberdade! – Na aresta dos Alpes, no cimo dos Carpathos, o céo resplandece com os raios da mesma aurora, – e todos os povos unidos, confundidos, parecem formar um só oceano, por sobre o qual é levado o espirito de Deus1

 

Á medida que ia proseguindo no canto, Hedwige, como a Sulamite dos Cantares, comparada á torre que olha para o occidente, parecia suspensa; o semblante com a graça diaphana de um seraphim. N'aquella elevação surprehendente, a commoção embaraçou-lhe a voz; não pôde fallar; ficou hirta, livida, como na concentração violenta do extasis. Era o genio da Polonia incarnado em uma mulher que soffria. Hedwige ficou silenciosa; nem um queixume, uma lagrima sequer, quando lhe roxearam os pulsos. Quando tornou a si, e conheceu que ia compartilhar commigo a mesma sorte, sorriu-se, com a expressão divina da alegria dolorosa e da resignação.

Dias depois leram-nos a sentença. Doze annos de desterro e trabalhos na Siberia. Hedwige escutou impassivel. Custava-me tanto vel-a soffrer em silencio; ella fazia um esforço inaudito para não vergar com as dores excessivas; não queria redobrar o meu soffrimento. Oh meu Poeta! foi então que me convenci de que o homem é o lobo do homem; peior ainda que o lobo cerval, porque espia os segredos da nossa alma, e antes que nos inflijam as sevicias do corpo, torturam-nos o espirito, insultando os sentimentos mais recatados e santos que nos dão coragem nos desalentos da vida.

Partimos todos na carroça dos desterrados, um kibitka peior que o tormento inventado para matar o integerrimo Atilio. As rajadas do inverno eram cortantes, e tiravam-nos todo o vigor para avançar; depois, vieram amontoando-se os gelos, e nos obrigaram a proseguir a pé; a desolação dos steppes, por onde passavamos, despertava-nos não sei que sympathia, talvez porque eram uma similhança visivel do abandono e ruinas em que estavam nossas almas.

Hedwige, delicada e fragil não podia caminhar mais, via-a desmaiar pouco a pouco; a lividez do sepulchro no semblante desbotado! Parecia-me a flor mimosa, emmurchecida com as geadas da noite. As pancadas do knut, um látego formado de tiras de couro crú e rosetas de ferro, com que a verberavam para adiantar caminho, esgotaram-lhe as forças. Eu não sei que haja palavras humanas para exprimir a dor e a raiva que senti n'esse instante, porque o coração do homem nunca soffreu tanto, para descobrir uma expressão para este infinito da angustia. Hedwige nem se atrevia a olhar para mim; depois vi-a cair transida de frio e cansaço; esgotára o ultimo esforço. Quizeram deixal-a sepultada entre o gelo. A noite vinha a fechar-se asperrima, atroz; eu não podia sequer lembrar-me que o corpo da minha amada ia ser em breve pasto dos abutres. Via-me tambem já sem forças. Pedi para leval-a aos meus hombros.

Era a loucura e egoismo do amor, que fazia com que a conduzisse, para sentir ainda agonias mais violentas que a morte.

– «Oh! antes me deixasses sepultada na solidão dos steppes, exposta ás aves nocturnas, do que vermo-nos agora separados para sempre!» – Disse-me ella a abraçar-me phrenetica, louca, quando nos separaram, mal que chegámos ás minas da Siberia.

Os meus companheiros do infortunio não os tornei mais a ver; Hedwige foi condemnada ao trabalho das minas de mercurio, muito longe. Não soube mais d'ella. A mim, enfiaram-me um capote de feltro e desceram-me por uma corda pelas gargantas da terra, por um boqueirão escuro; á medida que ia baixando, ia sentindo vozes confusas, ruido de enxadas. Então, vi na obscuridade profunda a luz baça e mortiça das lampadas de segurança, e uma multidão de homens escaveirados, magros; era uma cidade de mumias. Era aquella a minha habitação para doze annos de existencia. Admirava-me de ver alli crianças; filhos dos desgraçados obreiros, rachiticos, enfezados, não conheciam a luz do mundo, a vida resumia-se no trabalho insano. As dores que supportava haviam-me embotado o sentimento, tinha a impassibilidade do idiotismo, a mudez do assombro. Ás vezes uma lembrança longiqua de Hedwige e de minha mãe, a quem não pude dizer ao menos o extremo adeus, me davam a consciencia de que ainda vivia; mas não podia alliviar-me com as lagrimas.

Os que me viam nunca se atreveram a perguntar qual o meu crime. Não sei que esperança me prendia á vida, para que me não despedaçasse contra as rochas que ia arrancando. Estava já acostumado á obscuridade. Um dia começou a lembrança de Hedwige a occupar-me a imaginação. Seria uma saudade viva? algum presentimento? Lembrar-se-hia ella tambem de mim n'esse instante? Julgava-a já morta, criança e debil como era. Sem Hedwige, para que queria eu a vida? Oh! se a visse ainda uma vez morreria contente, resignado, perdoando tudo quanto os que se dizem meus similhantes me fizeram soffrer.

Era uma loucura esta idéa. E continuavamos silenciosos a romper a mina lobrega e funda. Começámos a sentir um écco surdo; eram os trabalhadores de outras minas, que se encontravam. Continuei a trabalhar com mais afan, na direcção d'onde vinham os sons abafados.

Encontrámo-nos dias depois. Que alegrias, que abraços intimos entre aquelles socios da desgraça. Se estivesse ali Hedwige! Que fatalidade! o meu desejo era o presentimento. «Já te esqueceste de mim?» Senti um abraço sem vigor; fitei nas sombras o vulto, que me fallava e me estreitava a si. Era ella, livida, desconhecida, com a magreza da consumpção; o mercurio penetrára-lhe a parte esponjosa dos ossos. Tive horror do ente que amava, era só a compaixão que me prendia a ella.

– «Lembras-te das palavras de Simeão quando na apresentação do templo viu o Messias em seus braços? Hoje digo-te o mesmo, Karl; já posso morrer.»

E eu continuei a viver para vêr prolongados a miseria e os flagicios incriveis, que me cercavam. Já não tinha o amor, que alimentava as horas da minha solidão. Hedwige tinha-me expirado nos braços; soltára a alma candida, acrysolada nas tribulações, no ultimo beijo, que recebeu de mim. D'ahi por diante a vida pareceu-me mais impossivel de supportar; eu não vivia, vegetava como o lichen no fundo de uma caverna escura. A imbecilidade proveniente da atonia e dos pesares indescriptiveis prolongara-me a existencia vegetativa.

Lembrava-me minha mãe. Se a tornaria a vêr ainda! Estaria ella já no sepulchro, ralada com a saudade da ausencia, cansada de esperar a volta do captiveiro? Sem successos, nem distracções, que me preoccupassem a vida, cada momento parecia-me um seculo de desesperação. Estes doze annos foram uma outra existencia. Quando voltei á patria julguei um renascimento; mas tornava a apparecer á luz do mundo para mais provações e dôres, porque minha mãe estava morta; a patria, o que ainda me fazia palpitar o coração com vida, vejo-a esquecida, inerte sob o jugo prepotente da Russia. Hoje escrevo-lhe, meu Poeta, porque é a unica pessoa, que me resta no mundo, e só me prende á vida o juramento, que fiz de immolal-a no altar da patria. —Karl

O Poeta anonymo da Polonia produziu com os seus poemas o mesmo que Mickiewich, o auctor do Banquete de Walenrood. Só depois de morto é que se soube o seu nome; era o conde Sigismundo de Krasinski. A liberdade da Polonia fôra o unico ideal da sua inspiração; é ella sempre que transluz nas maravilhas com que enriqueceu a litteratura polaca, nos Psalmos do Futuro, no Iridion na Comedia Infernal e na Tentação, a que anda ligado este facto que narrámos.

O relogio de Strasburgo

(CONTO DE 1352)

A Edade média está completamente caracterisada nas suas lendas; porque se não hade por ellas recompôr a historia, animal-a com essas côres vivas, dar-lhe movimento. A mais extensa, a que absorveu todas as imaginações rudes e creadoras, foi a lenda do Diabo, reproducção do dualismo persa, que apparece fatalmente no periodo instinctivo da genése religiosa. D'esta idealisação do mal provém, na arte, a realisação anonyma do grotesco, muitos dos velhos fabularios, e na ascese divina a tentação de que estão cheios Ribadaneyras e Bollandistas.

A sciencia, nos primeiros seculos da Egreja, foi despresada, amaldiçoada como inutil e perigosa, porque tornava o espirito rebelde, orgulhoso; a alma perdia com ella a simplicidade, que a elevava até Deus. A observação das leis physicas do mundo era uma impiedade; Bacon e Sylvestre II foram olhados como feiticeiros. É um martyrologio interminavel o desenvolvimento da razão. Foi um dos algozes Sam Paulo: «Eu destruirei a sabedoria dos sabios e rejeitarei a sciencia dos eruditos. O que é feito dos sabios? O que é feito d'estes espiritos curiosos das sciencias do seculo? Não os ha convencido Deus da loucura das sciencias d'este mundo?» A Egreja não se contentou com a acrimonia da invectiva, quiz encarnar este verbo do obscurantismo. As luctas e as agonias que se seguiram estão perpetuadas em um sem numero de lendas sobre as revoltas do espirito, que vieram a synthetisar-se no typo do Fausto.

Em pleno seculo XIV. O sol brilhante, em um céo sereno e limpido de um dia de alegria, derramava-se em torrentes sobre a cathedral de Strasburgo. Voltada para o oriente, segundo o rigor do symbolismo religioso, recebia a luz do alto, como um cenaculo em que as linguas de fogo vinham revelar os mysterios da vida e a serenidade, que ella havia de infundir aos tristes que se accolhessem, corridos das tempestades do mundo, na tranquillidade do seu recinto. A luz reflectia-se coruscante das vidraças, que ostentavam um rosicler das côres mais caprichosas e vivas; cada pedra, cada angulo, cada saliencia destacava-se mostrando os rendilhados e lavores exquisitos; a torre parecia então mais altiva, não topetava com as nuvens, perdia-se na profundesa do espaço azulado e puro. Era um bello dia de primavera.

Diante da cathedral magestosa foram-se agrupando pouco a pouco alguns vultos ociosos; e, attrahida na razão directa das massas, instantes depois a multidão fluctuava impaciente, como quem espera um prodigio annunciado, exempligratia, um ecclipse. Não era nenhum ecclipse, nem tampouco o apparecimento de um cometa, que então fazia tremer os pontifices e os reis. Não era mesmo procissão esplendida, que o povo e os amadores de tertulias estavam esperando com anciedade. O que seria então?

Uma figura extranha, embuçada em um tabardo escuro, chapéo emplumado ao uso da côrte, vinha montado, a passapello, em um cavallo fouveiro; custava-lhe a romper por entre a turba apinhada; estrangeiro ali, não quiz atropellar ninguem, e resolveu esperar que o concurso fosse diminuindo.

– O que está toda esta gente aqui a fazer, em um dia de trabalho? – perguntou o desconhecido para um rapaz, que parecia esconder-se entre o vulgo, com um ár de tristeza e de uma dôr indizivel. – Ha alguma procissão ou festa de jubileu? Ainda as portas da cathedral estão fechadas.

– É certo que vindes de bem longe, – volveu-lhe vivamente o pobre rapaz – pois que ainda vos não chegou a fama do grande Relogio de Strasburgo. É uma maravilha da Allemanha. Não vêdes aquella estatuasinha da Virgem? Diante d'ella, vem ao bater do meio dia os trez Reis Magos com seus presentes, e o Gallo automato, que lá está, saccode as azas logo que o sol toca o zenith.

O cavalleiro não teve tempo para comprehender o que ouviu, porque um susurro immenso, repentino, burburinhou por toda a praça. O carrilhão de Strasburgo dava meio dia. Ficaram boquiabertos, attentos esperando o apparecimento dos Reis Magos. Sentiu-se primeiro o ruido estrepitoso de umas azas pesadas, depois o clangor de uma voz énea, soturna. O cavalleiro estava pasmado com o que via. A fama do Relogio de Strasburgo correra as partidas do mundo. Os palacios, os mosteiros, os castellos desejavam uma maravilha egual. Ignorava-se o nome do artista. O cabido da cathedral ufanava-se com tão magnifico e singular artefacto.

– Oh! dize-me, – acudiu o cavalleiro, saindo do espasmo da admiração – dize-me quem fez esta obra prodigiosa, que é a inveja de todas as cidades do mundo! Porque se não fala no nome d'elle? Onde está o artista? Venho de França para vel-o.

– Perguntaes, nobre cavalleiro, como se eu pudesse violar tal segredo! Mal sabeis que as vossas palavras acordam na minha alma uma dôr profunda como um ecco n'um páramo aziago. Quem fez o Relogio, perguntaes vós, e a gloria tenta-me, precipita-me, impelle-me a arriscar a vida! Foi meu pae! – E as lagrimas de alegria e pesar foram-lhe arrasando os olhos, até que rompeu em um choro insoffrido de criança. O cavalleiro apeou-se e estreitou-o nos braços.

– É a saudade de teu pae, que te lava o rosto com esse pranto de ingenuidade e amor? Não soube a morte respeitar tão preclaro engenho? E eu que vinha da parte de Carlos V, de França, para visital-o e fallar-lhe!

 

– Elle ainda vive, senhor. Mas que vida! Oh! antes a morte o tivesse envolvido nas suas trevas geladas; antes houvesse nascido sem aquella luz do talento, que é sempre a predestinação do martyrio.

A praça estava já deserta, e os dois partiram enleiados n'esta conversação. Chegaram á officina do relojoeiro. Era um velho; as cans alvissimas formavam-lhe um diadema venerando; tinha o rosto escondido entre as mãos, como quem se abysmára n'uma abstracção intensa, ou n'uma grande e entranhavel agonia. O estrangeiro permaneceu hirto sob a soleira da porta; não se atrevia a interromper os processos mysteriosos d'aquella mente perscrutadora. A criança aproximou-se com familiaridade, e segredou-lhe longamente umas palavras mal articuladas e confusas. O velho ergueu então a fronte banhada em uma alegria suave, e voltou-se para a porta:

– Buscam-me da parte de el-rei Carlos V de França? – perguntou elle com um ár affavel e indicando um assento ao desconhecido.

– Em verdade, el-rei me envia aqui.

– E o que pretende de mim, que nada posso, el-rei, que tudo manda?

– Conhecendo a vossa boa fama, vendo que enriquecestes a Allemanha com essa maravilha do Relogio de Strasburgo, elle quer tambem collocar na torre do palacio da Justiça uma machina, que dividindo com justeza as doze horas do dia, ensine a observar a justiça e as leis.

– Como o não serviria eu de boa vontade, se me não houvessem apagado para sempre o lume dos olhos. Não vêdes estas orbitas vasias? Cegaram-me. Ha já dezeseis annos que vivo mergulhado n'estas sombras cerradas, que me antecipam a escuridão tetrica do sepulchro, mas que me prolongam a vida, no abandono da desgraça, para soffrer a cada instante as mais excruciantes provações. Eu vivo ao desamparo; nem sei já trabalhar. N'esta solidão do espirito, para esquecer o tedio e a desesperação que me pungem, eu invento machinismos complicados, que o meu pobre filho executa. É elle o herdeiro do meu engenho. Cada pancada do relogio no carrilhão da cathedral, é uma palavra de sarcasmo, um insulto vibrado por uma lingua satanica, só entendida por mim. Vou contando as horas na mudez das noites de insomnia, e cada uma me descreve com mais feias côres esta morte onde fui precipitado em vida.

Havia nas palavras do velho um mixto de resignação e dor, uma conformidade, uma santidade admiravel. A fronte, enrugada pelos annos e o estudo, pendia-lhe sobre o peito; o filho ainda imberbe, engraçado, ingenuo, estava de pé a seu lado, mudo, com os olhos no chão.

– Como houve mãos tão barbaras, que ousaram pôr diante do vosso espirito, para sempre, a sombra eterna da morte? Foi o acaso? Foi a malvadez que vos despenhou n'essa desgraça? Seria a inveja quem vos supplantou á traição, vendo-se obrigada a admirar os artefactos que não podia exceder? Oh, contae-me. Não! não! tenho horror de ouvir; deve custar-vos muito isso. El-rei ha de sabel-o e acudir-vos.

O velho ergueu lentamente a fronte; poisou as mãos sobre a cabeça loira do filho, brincando distraido com os cabellos anellados. Depois de um momento de indecisão, começou:

– O bispo João de Lichtenberg encommendou-me um relogio grande para a torre de Strasburgo. Era preciso que as horas canonicas fossem observadas com escrupulo; as irregularidades na divisão do tempo causavam graves inconvenientes ás resas e officios divinos do côro. Eu trabalhei dois annos consecutivos; tinha empenhada n'aquella obra a minha fama. Inventei um kalendario em que representava as indicações das principaes festas moveis: ao lado puz-lhe um quadro em que estavam escriptas em verso as principaes propriedades dos sete planetas; ao meio colloquei-lhe um astrolabio, em que os ponteiros notavam o movimento do sol e da lua, as horas e os quartos. Ao alto estava uma estatua da Virgem, ante a qual se inclinavam, ao dar do meio dia, as figuras dos tres Reis Magos. Ficaram espantados com a maravilha da obra; soôu por toda a parte a fama d'ella. O povo agglomerava-se na praça para vêr. O cabido receiou que os outros mosteiros ou as côrtes da Europa quizessem ter um monumento egual. Como impedil-o? Uma noite, estava eu descançando do trabalho assiduo, improbo que levava, quando me bateram á porta. Vieram dizer-me que o relogio estava parado. Levantei-me á pressa, atterrado, confuso, e dirigi-me para a torre. Quando ia subindo, e já a uma altura vertiginosa, apagaram-se de repente os archotes; os que me acompanhavam, lançaram mão de mim para me precipitar; as unhas prenderam-me ás fendas da cantaria, com a tenacidade do amor á vida. Por fim, cansados, agarraram-me, arrancaram-me os olhos. Aos meus gritos, os malvados respondiam que me désse por feliz em não ser queimado vivo na praça publica, exposto á irrisão da plebe, por feiticeiro; que eu tinha pacto com Satanaz, que o evocava com linhas cabalisticas com que formava as rodas denteadas.

O pobre velho permaneceu um instante silencioso reflectindo no assombro d'aquella noite infernal; depois mudando de conversa, o embaixador pediu-lhe para levar o filho, que havia de fazer por certo o relogio para o palacio da justiça. Não faltaram negações e hesitações. O velho conhecia o talento do filho, e temia um egual desastre. O cavalleiro jurou protejel-o com a vida, e trazel-o incolume a casa de seu pae, logo que tivesse findado o trabalho.

O relogio foi posto na torre do palacio da Justiça, e, elle que aconselhava a observancia da justiça e das leis, foi o mesmo que, dois seculos mais tarde deu o signal para a execranda carnificina da noite de S. Bartholomeu.

Quando o filho do relojoeiro de Strasburgo voltou á patria, ainda o pobre velho vivia. Estava no meio da sua desgraça, possuido de uma alegria infinita. Na solidão do espirito em que ficara, procurara constantemente vingar-se. Vingou-se afinal. Um dia conseguiu aproximar-se do Relogio, e tocou em uma roda de tal forma, que não tornou mais a regular, apesar de todos os esforços; em 1574, intentou restaural-o Dasypodius, outros em 1669, em 1731, até que cessou de trabalhar em 1789, como uma riliquia ultima da Edade media que arrebatava a Revolução. O desgraçado levava esta unica consolação do mundo. A mesma lenda se conta dos relogios de Nuremberg, de Auxerre e Lyon, em que as versões parecem filhas da comprehensão de uma mesma verdade.

1Strophes XIX, XX, XXI do poema O Ultimo, do conde Sigismundo Krasinski.

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