A Carícia da Morte

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CAPÍTULO DOIS

Riley acordou apreensiva na manhã seguinte. Aquele ia ser o primeiro dia da vida de Jilly na sua nova casa. Tinham muito que fazer e Riley esperava que tudo corresse pelo melhor.

Na noite anterior apercebera-se que a transição de Jilly para a sua nova vida envolveria trabalho árduo de todos. Mas April tinha intervido e ajudara Jilly a instalar-se. Tinham escolhido roupas para Jilly usar no dia de hoje – não das que trouxera consigo num saco de compras, mas das coisas novas que Riley e April lhe tinham comprado.

Jilly e April tinham ido para a cama, por fim.

Riley também tinha ido, mas o seu sono fora perturbado e agitado.

Agora levantara-se e vestira-se, e dirigia-se para a cozinha onde April ajudava Gabriela a preparar o pequeno-almoço.

“Onde está a Jilly?” Perguntou April.

“Ainda não se levantou,” Disse April.

Riley ficou preocupada.

Dirigiu-se ao fundo das escadas e gritou, “Jilly, é altura de te levantares.”

Nenhuma resposta lhe chegou. De repente, foi dominada pelo pânico. Teria Jilly fugido durante a noite?

“Jilly, ouviste-me?” Chamou. “Temos que te matricular na escola agora de manhã.”

“Estou a ir,” Respondeu Jilly.

Riley respirou de alívio. O tom de Jilly era soturno, mas pelo menos estava ali e a colaborar.

Em anos recentes, Riley ouvira com frequência aquele mesmo tom de April. Agora April parecia ter passado essa fase, embora ainda tivesse recaídas de tempos a tempos. Riley interrogou-se se estaria mesmo à altura da tarefa de criar outra adolescente.

E naquele preciso momento, alguém bateu à porta. Quando Riley abriu a porta, deparou-se com o seu vizinho Blaine Hildreth.

Riley estava surpreendida por vê-lo, mas não desagradada. Blaine era alguns anos mais novo do que ela, um homem atraente e encantador, proprietário de um restaurante sofisticado na cidade. Na verdade, ela sentira uma inconfundível mútua atração entre eles que impossibilitava qualquer hipótese de restabelecer a ligação com Ryan. Mas mais importante do que tudo, Blaine era um vizinho maravilhoso e as filhas de ambos, melhores amigas.

“Olá Riley,” Cumprimentou Blaine. “Espero que não seja demasiado cedo.”

“De maneira nenhuma,” Disse Riley. “O que se passa?”

Blaine encolheu os ombros com um sorriso triste.

“Vim cá para me despedir,” Disse ele.

Riley ficou perplexa.

“O que é que queres dizer com isso?” Perguntou.

Ele hesitou e antes de responder, Riley viu um enorme camião estacionado em frente à sua casa. Homens transportavam mobília da casa de Blaine para o camião.

Riley ainda não conseguia acreditar no que via.

“Vais-te mudar?” Perguntou.

“Pareceu-me o melhor a fazer,” Disse Blaine.

Riley quase não conseguiu evitar perguntar, “Porquê?”

Mas era fácil adivinhar. Viver como vizinho de Riley provara ser perigoso e aterrador, tanto para Blaine como para a filha, Crystal. O penso que ainda ostentava no rosto provava-o. Blaine fora gravemente ferido quando tentara proteger April do ataque de um assassino.

“Não é o que estás a pensar,” Disse Blaine.

Mas Riley conseguia perceber pela sua expressão que se tratava exatamente daquilo em que ela estava a pensar.

Ele prosseguiu, “Chegámos à conclusão que este lugar não era o mais conveniente. Fica muito longe do restaurante. Encontrei uma casa bem agradável mais perto. Tenho a certeza que compreendes.”

Riley sentia-se demasiado confusa e aborrecida para responder. Memórias do terrível incidente regressaram numa torrente arrasadora.

Ela estava em Nova Iorque a trabalhar num caso quando soubera que um assassino brutal estava à solta. Chamava-se Orin Rhodes. Dezasseis anos antes, Riley fora obrigada a abater a namorada num tiroteio e ele fora preso. Quando Rhodes foi finalmente libertado de Sing Sing, jurara vingar-se de Riley e de todos os que ela mais amava.

Antes de Riley conseguir chegar a casa, Rhodes invadiu a sua casa e atacou April e Gabriela. Na casa ao lado, Blaine apercebera-se da luta e interviera para ajudar. O mais certo era ter salvo a vida de April. Mas fora gravemente ferido ao tentar.

Riley visitara-o duas vezes no hospital. Da primeira vez fora devastador. Ele ainda estava inconsciente com tubos intravenosos nos dois braços e uma máscara de oxigénio. Riley culpara-se amargamente do que lhe acontecera.

Mas quando o visitou pela segunda vez, ficou mais animada. Ele estava alerta e alegre, e até brincara com um pouco de orgulho da sua imprudência.

Acima de tudo, ela lembrava-se do que ele lhe dissera na altura…

“Eu faria qualquer coisa por ti e pela April.”

Era óbvio que já não tinha tanta certeza. O perigo de ser vizinho de Riley provara ser um fardo demasiado pasado para ele e agora ia-se embora. Ela não sabia se se devia sentir magoada ou culpada. De uma coisa tinha a certeza: sentia-se desiludida.

Os pensamentos de Riley foram interrompidos pela voz de April atrás dela.

“Oh meu Deus! Blaine, vocês vão-se mudar? A Crystal ainda está cá?”

Blaine anuiu.

“Tenho que lá ir dizer-lhe adeus,” Disse April.

April desatou a correr porta fora em direção à porta do lado.

Riley ainda estava a tentar organizar as suas próprias emoções.

“Peço desculpa,” Disse ela.

“Desculpa porquê?” Perguntou Blaine.

“Tu sabes.”

Blaine assentiu. “A culpa não foi tua Riley,” Disse ele com um tom de voz carinhoso.

Riley e Blaine fitaram-se durante um momento. Por fim, Blaine forçou um sorriso.

“Ei, eu não vou propriamente abandonar a cidade,” Disse ele. “Podemos sempre encontrar-nos quando quisermos. E as miúdas também. E elas ainda vão frequentar a mesma escola. Será como se nada tivesse mudado.”

Um sabor amargo apoderou-se da boca de Riley.

Isso não é verdade, Pensou. Tudo mudou.

E nessa altura a desilusão começou a dar lugar à fúria. Riley sabia que não estava certo sentir-se zangada. Ela não tinha esse direito. Ela nem sequer sabia porque é que se sentia assim. Tudo o que sabia era que não o conseguia evitar.

E o que deviam fazer agora?

Dar um abraço? Apertar as mãos?

Ela tinha a sensação de que Blaine sentia a mesma estranheza e indecisão.

Conseguiram trocar um adeus conciso. Blaine voltou para casa e Riley regressou para dentro da sua. Encontrou Jilly a tomar o pequeno-almoço na cozinha. Gabriela já colocara o pequeno-almoço de Riley na mesa por isso, sentou-se à mesa e comeu com Jilly.

“Então, estás entusiasmada com o dia de hoje?”

A pergunta de Riley saiu antes de perceber quão desajeitada soara.

“Acho que sim,” Disse Jilly, espetando um garfo nas panquecas. Nem olhou para Riley.

*

Um pouco mais tarde, Riley e Jilly entravam na Brody Middle School. O edifício era atraente com cacifos com portas de cores coloridas alinhados no corredor e arte de estudantes visível em todo o lado.

Uma aluna educada e agradável ofereceu ajuda e direcionou-as para o gabiente principal. Riley agradeceu-lhe e continuou a percorrer o corredor, segurando nos papéis de matrícula de Jilly com uma das mãos e segurando na mão de Jilly com a outra.

Anteriormente, tinham-se registado no gabinete central. Tinham levado a papelada que os Serviços Sociais de Phoenix tinham reunido – boletim de vacinas, transcrições escolares, a certidão de nascimento de Jilly e uma declaração de que Riley era a tutora oficial de Jilly. Jilly tinha sido retirada da custódia do pai, apesar dele ter ameaçado contestar essa decisão. Riley sabia que o caminho para finalizar e legalizar uma adoção não seria rápido ou fácil.

Jilly apertou com força a mão de Riley. Riley teve a sensação de que a rapariga se sentia muito pouco à vontade. Não era difícil imaginar porquê. Por muito dura que tivesse sido a vida em Phoneix, era o único lugar onde Jilly jamais tinha vivido.

“Porque é que não posso ir para a escola com a April?” Perguntou Jilly.

“No próximo ano vais estar no mesmo liceu,” Disse Riley. “Mas primeiro tens que terminar o oitavo ano.”

Encontraram o gabinete principal e Riley mostrou os papéis à rececionista.

“Gostaríamos de ver alguém para matricular a Jilly na escola,” Disse Riley.

“Tem que se encontrar com um orientador escolar,” Disse a rececionista com um sorriso. “Venham por aqui.”

Ambas precisamos de alguma orientação, Pensou Riley.

A orientadora era uma mulher na casa dos trinta anos com um cabelo castanho encaracolado. Chamava-se Wanda Lewis e o seu sorriso era tão terno quanto um sorriso pode ser. Riley pensou que ela podia realmente ajudar. Com certeza que uma mulher naquela posição já teria lidado com outros alunos com passados problemáticos.

Wanda Lewis fez-lhes uma visita guiada à escola. A biblioteca era impecável, organizada e bem fornecida de computadores e livros. No ginásio, raparigas jogavam basquetebol com alegria. A cantina era limpa e reluzente. Tudo parecia absolutamente perfeito para Riley.

Durante todo aquele tempo, Wanda Lewis colocou a Jilly várias perguntas acerca da sua anterior escola e sobre os seus interesses. Mas Jilly quase não disse nada em resposta e não colocou quaisquer perguntas. A sua curiosidade pareceu espevitar um pouco quando espreitou para a sala de arte. Mas mal se prosseguiu, voltou ao seu silêncio e indiferença.

Riley interrogou-se do que poderia estar a passar pela cabeça da rapariga. Ela sabia que as suas notas mais recentes haviam sido fracas, mas já tinham sido ótimas em anos anteriores. A verdade era que Riley quase não sabia nada sobre a experiência escolar passada de Jilly.

 

Talvez até odiasse a escola.

Esta nova devia ser assustadora, um lugar onde Jilly não conhecia ninguém. E claro, não ia ser fácil recuperar o atraso nos estudos quando só faltavam algumas semanas para o fim do período.

No fim da visita guiada, Riley conseguiu persuadir Jilly a agradecer a Wanda Lewis. Concordaram que Jilly começaria as aulas no dia seguinte. Depois Riley e Jilly saíram para o exterior rumo ao frio cortante de Janeiro. Uma fina camada da neve do dia anterior repousava no parque de estacionamento.

“Então o que te pareceu a tua nova escola?” Perguntou Riley.

“Bem,” Disse Jilly.

Riley não conseguia perceber se Jilly estava a ser soturna ou se estava simplesmente atordoada com todas as alterações que tinha que encarar. Ao aproximarem-se do carro, notou que Jilly tremia muito e que os dentes batiam. Usava um casaco pesado de April mas o frio estava mesmo a ser um problema para ela.

Entraram no carro e Riley ligou a ignição e o ar quente. Mesmo com o carro mais quente, Jilly ainda tremia.

Riley manteve o carro estacionado. Chegara o momento de descobrir o que incomodava aquela menina que estava ao seu cuidado.

“O que é que se passa?” Perguntou. “Há alguam coisa na escola que te incomode?”

“Não é a escola,” Disse Jilly, com a voz agora a tremer. “É o frio.”

“Bem sei que não faz frio em Phoenix,” Disse Riley. “Isto deve ser estranho para ti.”

Os olhos de Jilly encheram-se de lágrimas.

“Às vezes faz frio,” Disse ela. “Sobretudo à noite.”

“Diz-me o que é que se passa,” Pediu Riley.

As lágrimas começaram a correr pelo rosto. Ela falava numa vozinha mínima e abafada.

“O frio faz-me lembrar…”

Jilly calou-se. Riley esperou pacientemente.

“O meu pai culpava-me sempre por tudo,” Disse Jilly. “Culpava-me por a minha mãe se ter ido embora, e pelo meu irmão e até me culpava por ser despedido dos empregos que arranjava. Tudo o que corria mal, era sempre culpa minha.”

Agora Jilly soluçava silenciosamente.

“Continua,” Disse Riley.

“Uma noite ele disse-me que queria que eu me fosse embora,” Disse Jilly. “Disse que eu era um peso morto, que eu o atrasava, que já estava farto de mim. Expulsou-me de casa. Fechou as portas e eu não conseguia entrar.”

Jilly engoliu em seco perante aquela memória.

“Nunca senti tanto frio na minha vida,” Disse ela. “Nem agora com este tempo. Encontrei um grande tubo de canalização numa vala e era suficientemente grande para eu caber lá dentro, por isso foi lá que passei a noite. Era tão assustador. Às vezes as pessoas andavam por perto mas eu não queria que me descobrissem. Não pareciam pessoas que me ajudassem.”

Riley fechou os olhos, imaginando a rapariga escondida naquele tubo escuro. Murmurou, “E o que aconteceu depois?”

Jilly prosseguiu, “Fiquei por lá a noite toda. Não consegui dormir. Na manhã seguinte, voltei para casa e bati à porta e chamei pelo pai e implorei-lhe que me deixasse entrar. Ele ignorou-me, como se eu nem sequer ali estivesse. Foi quando fui para a paragem de camiões. Ali estava quente e havia comida. Algumas das mulheres eram simpáticas comigo e eu pensei que faria qualquer coisa para ficar ali. Foi nessa noite que me encontraste.”

Jilly acalmou ao contar a sua história. Parecia aliviada por libertar aquele peso de dentro de si. Mas agora Riley chorava. Mal podia acreditar o que aquela pobre rapariga tinha suportado. Colocou o braço à volta de Jilly e abraçou-a com força.

“Nunca mais,” Disse Riley no meio dos soluços. “Jilly, prometo-te, nunca mais te vais sentir assim outra vez.”

Era uma grande promessa e Riley sentia-se pequena, fraca e frágil naquele momento. Só esperava poder cumpri-la.

CAPÍTULO TRÊS

A mulher não parava de pensar no pobre Cody Woods. Ela tinha a certeza que ele já estaria morto por aquela altura. Saberia, com toda a certeza, pelo jornal da manhã.

Por muito que estivesse a apreciar o seu chá quente e granola, esperar pelas notícias impacientava-a.

Quando é que o jornal chega? Pensou, olhando para o relógio da cozinha.

A entrega parecia estar a atrasar-se cada vez mais nos últimos dias. É claro que não teria estes problemas com uma assinatura digital, mas a verdade era que não gostava de ler o jornal no computador. Gostava de se sentar numa cadeira confortável e desfrutar da sensação antiquada de segurar um jornal nas suas mãos. Ela até gostava da forma como a tinta por vezes ficava agarrada aos dedos.

Mas o jornal já estava atrasado quinze minutos. Se demorasse muito mais, teria que ligar e fazer uma reclamação. Odiaria ter que o fazer. Amargurava-a.

De qualquer das formas, o jornal era a única forma que tinha de descobrir o que sucedera a Cody. Não podia simplesmente ligar para o Centro de Reabilitação Signet para saber dele. Isso seria muito suspeito. Para além disso, para o pessoal de lá, ela já estava no México com o marido sem planos para regressar.

Ou melhor, Hallie Stillians estava no México. Era triste que nunca mais pudesse voltar a ser Hallie Stillians. Tinha-se afeiçoado particularmente àquele pseudónimo. Tinha sido simpático da parte do pessoal do Centro de Signet terem-lhe feito uma surpresa com um bolo no seu último dia no centro.

Sorriu ao lembrar-se. O bolo tinha sido decorado com sombreros coloridos e uma mensagem:

Buen Viaje, Hallie e Rupert!

Rupert era o nome do seu marido imaginário. Iria ter saudades de falar dele de forma tão carinhosa.

Terminou a sua granola e continuou a bebericar o seu chá caseiro preparado segundo uma antiga receita de família – uma receita diferente da que tinha partilhado com Cody e é claro que sem os ingredientes especiais que tinha acrescentado para ele.

Começou a cantar ociosamente…

Longe de casa,

Tão longe de casa-

Este bebé pequenino está longe de casa.

Definha

De dia para dia

Demasiado triste para rir, demasiado triste para brincar.

Como o Cody tinha gostado daquela canção! Também tinham gostado os outros pacientes. E muitos mais pacientes no futuro iriam gostar em igual medida. Aquele pensamento aquecia-lhe o coração.

E naquele preciso momento, ouviu um baque na porta da frente. Apressou-se para a abrir e olhou para o exterior. Repousado no degrau frio estava o jornal da manhã. A tremer de excitação, apanhou-o, voltou para a cozinha e abriu-o nos anúncios de mortes.

E lá estava:

SEATTLE – Cody Woods, 49, de Seattle…

Parou por um momento naquele ponto. Estranho. Quase podia jurar que ele lhe tinha dito que tinha cinquenta anos. Depois leu o resto…

… no Hospital South Hills, Seattle, Wash.; Serviços Funerários e de Cremação Sutton-Brinks, Seattle.

E era tudo. Era conciso, mesmo para um simples anúncio de morte.

Esperava que houvesse um simpático obituário nos próximos dias, mas estava preocupada que talvez não houvesse. Quem o iria escrever afinal de contas?

Estivera sozinho no mundo, pelo menos pelo que ela sabia. Uma mulher tinha falecido, outra tinha-o deixado e os dois filhos não lhe falavam. Não lhe dissera mais nada sobre mais ninguém – amigos, familiares, colegas de trabalho.

Que importa? Interrogou-se.

Sentiu uma fúria amarga e familiar a subir-lhe na garganta.

Fúria contra todas as pessoas na vida de Cody Woods que não queriam saber se ele estava vivo ou morto.

Fúria contra o pessoal sorridente no Centro de Signet, fingindo que gostavam e que teriam saudades de Hallie Stillians.

Fúria contra toda a gente e as suas mentiras e os seus segredos e a sua maldade.

Como fazia com frequência, imaginou-se a sobrevoar o mundo com as suas asas negras, a provocar a morte e a destruição aos maldosos.

E todos eram maldosos.

Toda a gente merecia morrer.

Até Cody Woods fora mau e merecia morrer.

Que tipo de homem fora ele na verdade para deixar este mundo sem que ninguém o amasse?

Com certeza um homem horrível.

Horrível e detestável.

“É bem feito,” Rosnou.

Depois saiu do seu estado de fúria. Sentiu-se envergonhada por ter dito tantas coisas em voz alta. Na verdade, não fora com intenção. Lembrou a si própria que não sentia nada mais do que amor e boa vontade em relação a todo o mundo.

Para além disso, era quase hora de ir trabalhar. Hoje chamava-se Judy Brubaker.

Olhando-se ao espelho, assegurou-se de que a peruca castanho-avermelhado estava devidamente colocada e de que a franja se espalhava de forma natural na sua testa. Era uma peruca cara e nunca ninguém tinha reparado que não era o seu cabelo natural. Por baixo da peruca, o cabelo curto e louro de Hallie Stillians tinha sido pintado de castanho-escuro e cortado num estilo diferente.

Não restava sinal de Hallie, nem no vestuário, nem na forma de se comportar.

Pegou nuns óculos de leitura modernos e pendurou-os num cordão brilhante à volta do pescoço.

Sorriu satisfeita. Era acertado investir nos acessórios apropriados e Judy Brubaker merecia os melhores.

Todos gostavam de Judy Brubaker.

E todos gostavam da canção que Judy Brubaker cantava frequentemente – uma canção que cantava alto quando se vestia para ir trabalhar…

Não chores,

Sonha até mais não poderes.

Deixa-te vencer pelo sono.

Não há mais suspiros,

Fecha os olhos

E estarás em casa pelo sono.

Ela transbordava paz, paz suficiente para partilhar com todo o mundo. Ela dera paz a Cody Woods.

E em breve daria paz a mais alguém que dela precisasse.

CAPÍTULO QUATRO

O coração de Riley bateu descompassadamente e os seus pulmões queimavam de respirar rápida e dificultosamente. Uma música familiar não lhe saía da cabeça.

“Segue a estrada de tijolo amarelo…”

Por muito cansada e sem fôlego que estivesse, Riley não conseguia evitar sentir-se divertida. Era manhã cedo e estava frio enquanto ela corria os dez quilómetros na pista de obstáculos de Quantico. A pista era vulgarmente apelidada de Estrada de Tijolo Amarelo.

Os Marines que a tinham construído é que lhe tinham dado esse nome por terem colocado tijolos amarelos na marcação de cada quilómetro. Os formandos do FBI que sobreviviam à pista recebiam um tijolo amarelo como recompensa.

Riley já recebera o seu tijolo amarelo há muitos anos, mas de vez em quando, voltava à pista, só para se assegurar de que ainda era capaz. Depois do stress emocional dos últimos dias, Riley precisava de algum esforço físico para limpar a mente.

Até ao momento, já tinha ultrapassado uma série de desafiantes obstáculos e tinha passado três tijolos amarelos. Tinha trepado paredes improvisadas, ultrapassado obstáculos e saltado por janelas simuladas. Há apenas alguns momentos, tinha-se içado por uma corda e agora já descia.

Quando chegou ao chão, olhou para cima e viu Lucy Vargas, a brilhante e jovem agente com quem gostava de trabalhar a treinar. Lucy estava a gostar de ser a companheira de treino de Riley naquela manhã. Estava no topo da face da rocha a olhar para baixo para Riley.

Riley chamou-a, “Não consegues acompanhar uma velhota como eu?”

Lucy riu-se. “Estou a ir nas calmas. Não quero exagerar – não com alguém da tua idade.”

“Ei, não te atrases por minha causa,” Gritou Riley. “Dá tudo o que tens.”

Riley tinha quarenta anos, mas nunca tinha descurada o seu treino físico. Ser capaz de se movimentar com rapidez e responder em força podiam revelar-se cruciais na luta contra monstros humanos. A simples força física tinha salvado vidas, incluindo a sua, mais do que uma vez.

Ainda assim, não ficava feliz por olhar para a sua frente e ver o próximo obstáculo – uma piscina de águas baixas, frias e lamacentas ia deixá-la encharcada e gelada.

Aqui vai disto, Pensou.

Atirou-se na direção da lama. O seu corpo foi trespassado pelo choque tremendo da água gelada. Ainda assim, esforçou-se por rastejar e espalmou-se quando sentiu o arame farpado a raspar ligeiramente nas suas costas.

 

Um entorpecimento corrosivo começou a apoderar-se dela, acionando uma memória indesejável.

Riley estava num espaço escuro debaixo da casa. Acabara de fugir de uma jaula onde estivera presa e fora torturada por um psicopata com um maçarico de gás propano. Na escuridão, perdera a noção do tempo que passara desde que fora capturada.

Mas conseguira forçar a porta da jaula e agora rastejava às cegas em busca de uma saída. Chovera há pouco tempo e a lama por baixo de si era pegajosa, fria e funda.

À medida que o seu corpo se entorpecia mais por causa do frio, um enorme desespero apoderou-se dela. Estava fraca das noites acordada e da fome.

Não consigo, Pensou.

Ela tinha que libertar a sua mente dessas ideias. Ela tinha que continuar a rastejar e a procurar a saída. Se ela não saísse, ele acabaria por matá-la – tal como o tinha feito com as outras vítimas.

“Estás bem, Riley?”

A voz de Lucy despertou Riley da memória de um dos seus mais assombrosos casos. Era uma situação que jamais esqueceria, sobretudo porque a sua filha fora mais tarde capturada por esse mesmo psicopata. Interrogava-se se alguma vez se libertaria daquelas recordações.

E April alguma vez se veria livre de memórias tão devastadoras?

Riley regressara ao presente e apercebeu-se de que se detivera debaixo do arame farpado. Lucy estava logo atrás dela, à espera que ela terminasse o obstáculo.

“Estou bem,” Disse Riley. “Desculpa atrasar-te.”

Esforçou-se por voltar a rastejar. À beira da água, ergueu-se e reuniu forças e energia. Depois desceu o trilho de madeira, certa de que Lucy não estava muito longe dela. Ela sabia que a sua próxima tarefa seria trepar uma rede. Depois disso, ainda tinha quase três quilómetros até terminar e mais alguns obstáculos duros para ultrapassar.

*

No fim da pista de dez quilómetros, Riley e Lucy tropeçavam juntas, ofegantes e rindo e dando os parabéns uma à outra pelo seu triunfo. Riley ficou surpreendida por ver o seu parceiro de longa data à sua espera onde o trilho terminava. Bill Jeffreys era um homem forte e robusto da idade de Riley.

“Bill!” Disse Riley, ainda sem fôlego. “O que é que estás aqui a fazer?”

“Vim à tua procura,” Disse ele. “Disseram-me que te encontraria aqui. Mal podia acreditar que quisesses fazer isto – e no pico do inverno! És alguma espécie de masoquista ou quê?”

Riley e Lucy riram-se.

Lucy disse, “Talvez a masoquista seja eu. Espero conseguir percorrer a Estrada de Tijolo Amarelo como a Riley quando tiver a sua provecta idade.”

Em jeito de provocação, Riley disse a Bill, “Ei, estou pronta para outra rodada. Queres vir comigo?”

Bill abanou a cabeça e riu.

“Huh-uh,” Disse ele. “Ainda tenho o meu velho Tijolo Amarelo em casa e uso-o como batente. Um é suficiente para mim. Mas estou a pensar em candidatar-me a ganhar um Tijolo Verde. Queres fazer-me companhia?”

Riley riu-se novamente. O chamado “Tijolo Verde” era uma piada que corria no FBI – um prémio concedido a quem conseguisse fumar trinta e cinco cigarros em trinta e cinco noites consecutivas.

“Passo,” Disse Riley.

E de repente a expressão de Bill ficou séria.

“Tenho um novo caso em mãos Riley,” Disse ele. “E preciso que me ajudes. Espero que não te importes. Eu sei que é muito em cima do nosso último caso.”

Bill tinha razão. Para Riley, parecia que apenas no dia anterior tinham apanhado Orin Rhodes.

“Sabes que acabei de trazer a Jilly para casa. Estou a tentar ambientá-la na sua nova vida. Nova escola… tudo novo.”

“Como é que ela está?” Perguntou Bill.

“Está irregular, mas está a tentar. Está tão feliz por fazer parte da família. Penso que vai precisar de muita ajuda.”

“E a April?”

“Está fantástica. Ainda estou abismada por ela se ter fortalecido graças à luta com Rhodes. E já gosta muito da Jilly.”

Depois de uma pausa, Riley perguntou, “Que tipo de caso é esse que tens em mãos, Bill?”

Bill ficou calado durante alguns instantes.

“Vou agora reunir-me com o chefe a propósito disso,” Disse ele. “Preciso mesmo da tua ajuda, Riley.”

Riley olhou para o seu amigo e parceiro. A sua expressão era de profundo desespero. Quando ele dissera que precisava da sua ajuda, não estava a brincar. Riley ficou curiosa.

“Deixa-me tomar um duche e vestir roupa seca,” Disse ela. “Vou ter contigo à sede num instante.”