Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco

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Este edificante discurso de caridade foi interrompido pela madre escrivã, que vinha, palitando os dentes, pedir à prelada um copinho de certo vinho estomacal com que todas as noites era brindada.

— Estava eu a dizer a esta menina as peças que são a organista e a mestra - disse a prioresa.

— Oh! são para o que eu lhe prestar! Lá foram ambas para a cela da porteira. A esta hora está a menina a ser cortada por aquelas línguas, que não perdoam a ninguém.

— Vais tu ver se ouves alguma coisa, minha flor? - disse a prelada.

A escrivã, contente da missão, foi imperceptivelmente ao longo dos dormitórios até parar a uma porta, que não vedava o ruído estridente das risadas.

No entanto, dizia a prelada a Teresa:

— Esta escrivã não é má rapariga. Só tem o defeito de se tomar da pingoleta; depois, não há quem a ature. Tem uma boa tença, mas gasta tudo em vinho, e tem ocasiões de entrar no coro a fazer ss que é mesmo uma desgraça. Não tem outro defeito; é uma alma lavada, e amiga da sua amiga. ~ verdade, que, às vezes... (aqui a prelada ergueu-se a escutar nos dormitórios, e fechou por dentro a porta); é verdade que, às vezes, quando anda azoratada, dá por paus e por pedras, e descobre os defeitos das suas amigas. A mim já ela me assacou um aleive, dizendo que eu, quando saía a ares, não ia só a ares, e andava por lá a fazer o que fazem as outras. Forte pouca vergonha! Lá que outra falasse, vá; mas ela, que tem sempre uns namorados pandílhas que bebem com ela na grade, isso lá me custa; mas, enfim, não há ninguém perfeito!... Boa rapariga é ela... se não fosse aquele maldito vício...

Como tocasse ao coro nesta ocasião, a veneranda prioresa bebeu o segundo cálice do vinho estomacal, e disse a Teresa que a esperasse um quarto de hora, que ela ia ao coro, e pouco se demoraria. Tinha ela saído, quando a escrivã entrou a tempo que Teresa, com as mãos abertas sobre a face, dizia em si: "Um convento, meu Deus! Isto é que é um convento?"

— Está sozinha? - disse a escrivã.

— Estou, minha senhora.

— Pois aquela grosseira vai-se embora, e deixa uma hóspeda sozinha?! Bem se vê que é filha de funileiro!... Pois tinha tempo de ter prática do mundo, que tem andado por lá que farte... Eu havia de ir ao coro... Mas não vou, para lhe fazer companhia, menina.

— Vá, vá minha senhora, que eu fico bem sozinha - disse Teresa, com a esperança de poder desafogar em lágrimas a sua aflição.

— Não vou, ....... A menina aqui estarrecia de medo; mas a prelada não tarda aí. Ela, se pode escapar-se do coro, não para lá muito tempo. Apostar que ela lhe esteve a falar mal de mim?

— Não, minha senhora, pelo contrário...

— Ora, diga a verdade, menina! Eu sei que esta cegonha não fala bem de ninguém. Para ela tudo são libertinas e bêbedas.

— Nada, não, minha senhora; nada me disse a respeito de alguma freira,

— E, se disse, deixá-la dizer. Ela o vinho não o bebe, suga-o; é uma esponja viva. Enquanto à libertinagem, tomara eu tantos mil cruzados como de amantes ela tem tido! Faz lá uma pequena idéia, menina!...

A escrivã bebeu um cálice do vinho da sua prelada, e continuou:

— Faz lá uma pequena idéia! Ela é velhíssima como a sé. Quando eu professei, já ela era velha como agora, com pouca diferença. Ora eu sou freira há vinte e seis anos. Calcule a menina quantas arrobas de esturrínho ela tem atulhado naqueles narizes! Pois olhe, quer me creia, quer não, tenho-lhe conhecido mais de uma dúzia de chichisbéus, não falando do padre capelão, que esse ainda agora lhe fornece a garrafeira, à nossa custa, entende-se. É uma dissipadora dos rendimentos da casa. Eu, que sou escrivã, é que sei o que ela rouba. Eu tenho imensa pena de ver a menina hospedada em casa desta hipócrita. Não se deixe levar das imposturices dela, meu anjinho. Eu sei que seu pai lhe mandou falar, e a encarregou de a não deixar escrever, nem receber cartas; mas olhe, minha filha, se quiser escrever, eu dou-lhe tinteiro, papel, obreias e o meu quarto, se para lá quiser ir escrever. Se tem alguém que lhe escreva, diga-lhe que mande as cartas em meu nome; eu chamo-me Dionísia da Imaculada Conceição.

— Muit9 agradecida, minha senhora - disse Teresa, animada pelo oferecimento. - Quem me dera poder mandar um recado a uma pobre que mora no beco do...

— O que quiser, menina. Eu mando lá logo que for dia. Esteja descansada. Não se fie de alguém, senão de mim. Olhe que a mestra de noviças e a organista são duas falsas. Não lhes dê trela, que, se as admite à sua confiança, está perdida. Ai vem a lesma... Falemos noutra coisa...

A prelada vinha entrando, e a escrivã prosseguiu assim:

— Não há, não há nada mais agradável que a vida do convento quando se tem a fortuna de ter uma prelada como a nossa... Aí! eras tu, menina? Olha se estivéssemos a falar mal de ti!

— Eu sei que tu nunca falas mal de mim - disse a prelada, piscando o olho a Teresa. - Aí está essa menina que diga o que eu lhe estive a dizer das tuas boas qualidades...

— Pois o que eu disse de ti - respondeu sóror Dionísia da Imaculada Conceição - não precisas de perguntar porque felizmente ouviste o que eu estava dizendo. Oxalá que se pudesse dizer o mesmo das outras que desonram a casa, e trazem aqui tudo intrigado numa meada, que é mesmo coisa de pecado!

— Então não vais ao coro, Nini? - tornou a prioresa.

— Já agora é tarde... Tu absolves-me da falta, sim?

— Absolvo, absolvo; mas dou-te como penitência beberes um copinho...

— Do estomacal?

— Pudera!

Dionisia cumpriu a penitência, e saiu para, dizia ela deixar a prelada na sua hora de oração.

Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do convento onde Tadeu de Albuquerque mandara sua filha a respirar o puríssimo ar dos anjos, enquanto se lhe preparava crisol mais depurador dos sedimentos do vício no convento de Manchique.

Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida conventual. Ignorava ela que o mundo tinha daquilo. Ouvira falar dos mosteiros como de um refúgio da virtude, da inocência e das esperanças imorredoiras. Algumas cartas lera de sua tia, prelada em Monchique, e por elas formara conceito do que devia ser uma santa. Daquelas mesmas dominicanas, em cuja casa estava, ouvira dizer às velhas e devotas fidalgas de Víseu virtudes, maravilhas de caridade, e até milagres. Que desilusão tão triste e, ao mesmo tempo, que ânsia de fugir dali!

A cama de Teresa estava na mesma cela da prioresa, em alcova. separada, com cortinas de cassa.

Quando a prelada lhe disse que podia deitar-se, querendo, perguntou-lhe a menina se poderia escrever a seu pai. A freira respondeu que no dia seguinte o faria, posto que o senhor Albuquerque ordenasse que sua filha não escrevesse; assim mesmo, ajuntou ela, que lho não proibiria, se tivesse tinteiro e papel na cela.

Teresa deitou-se, e a prelada ajoelhou diante dum oratório, rezando a coroa a meia voz, Se o murmúrio da oração enfadasse a hóspeda, não teria ela muita razão de queixa, porque a devota monja, ao segundo Padre-nosso, cabeceava de modo que já não atinou com a primeira Ave-Maria. Levantou-se, cambaleando uma mesura às imagens do santuário, foi deitar-se, e pegou a ressonar.

Teresa afastou sutilmente as cortinas do quarto, e tirou de entre o seu fato o tinteiro de tarraxa e o papel.

A lâmpada do oratório lançava um frouxo raio sobre a cadeira em que Teresa pusera os seus vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao pé da cadeira, e escreveu a Simão, relatando-lhe minuciosamente os sucessos daquele dia. A carta rematava assim:

"Não receies nada por mim, Simão. Todos estes trabalhos me parecem leves, se os comparo aos que tens padecido por amor de mim. A desgraça não abala a minha firmeza, nem deve intimidar os teus projetos. São alguns dias de tempestade, e mais nada. Qualquer nova resolução que meu pai tome dír-ta-ei logo, podendo, ou quando puder. A falta das minhas noticias deves atribuí-la sempre ao impossível. Ama-me assim desgraçada, porque me parece que os desgraçados são os que mais precisam de amor e de conforto. Vou ver se posso esquecer-me, dormindo. Como isto é triste, meu querido amigo!... Adeus".

VIII

Mariana, a filha de João da Cruz, quando viu seu pai pensar a chaga do braço de Simão, perdeu os sentidos. O ferrador riu estrondosamente da fraqueza da moça, e o acadêmico achou estranha sensibilidade em mulher afeita a curar as feridas com que seu pai vinha laureado de todas as feiras e romarias.

— Não há ainda um ano que me fizeram três buracos na cabeça, quando eu fui à Senhora dos Remédios, a Lamego, e foi ela que me tosqueou e rapou o casco à navalha - disse o ferrador. - Pelo que vejo, o sangue do fidalgo deu volta ao estômago da rapariga!... Estamos então bem aviados! Eu tenho cá a minha vida, e queria que ela fosse a enfermeira do meu doente... És, ou não és, rapariga? - disse ele à filha quando ela abriu os olhos, com semblante de envergonhada da sua fraqueza.

— Serei com muito gosto, se o pai quiser.

— Pois, então, moça, se hás de ir costurar para a varanda, vem aqui para a beira do senhor Simão. Dá-lhe caldos a miúdo, e trata-lhe da ferida; vinagre e mais vinagre, quando ela estiver assim a modo de roxa. Conversa com ele, não o deixes estar a malucar, nem escrever muito, que não é bom quando se está fraco do miolo. E vossa senhoria não tenha aquelas de cerimônia, nem me diga à Mariana - a menina isto, a menina aquilo. É - rapariga, da cá um caldo; rapariga, lava-me o braço, da cá as compressas - e nada de políticas. Ela está aqui como sua criada, porque eu já lhe disse que, se não fosse o pai de vossa senhoria, já ela há muito tempo que andava por aí às esmolas, ou pior ainda. E verdade que eu podia deixar-lhe uns benzinhos ganhos ali a suar na bigorna há dez anos, afora uns quatrocentos mil réis que herdei de minha mãe, que Deus haja; mas vossa senhoria bem sabe que, se eu fosse à forca ou pela barra fora, vinha a justiça, e tomava conta de tudo para as custas.

 

— Vossemecê tem uma casinha sofrível - atalhou Simão - pode, querendo, casar a sua filha numa boa casa de lavoura.

— Assim ela quisesse. Maridos não lhe faltam; até o alferes da casa da Igreja a queria, se eu lhe fizesse doação de tudo, que pouco é, mas ainda quatro mil cruzados bons; o caso é que a moça não tem querido casar, e eu, a falar a verdade, sou só e mais ela, e também não tenho grande vontade de ficar sem esta companhia, para quem trabalho como moiro. Se não fosse ela, fidalgo, muitas asneiras tinha eu feito! Quando vou às feiras ou romarias, se a levo comigo, não bato, nem apanho; indo sozinho, é desordem certa. A rapariga já conhece quando a pinga me sobe ao capacete do alambique; puxa-me pela jaqueta, e por bons modos põe-me fora do arraial. Se alguém chama para beber mais um quartilho, ela não me deixa ir, e eu acho graça à obediência com que me deixo guiar pela moça, que me pede que não vá por alma da mãe. Eu cá, em ela me pedindo por alma da minha santa mulher, já não sei de que freguesia sou.

Mariana ouvia o pai. escondendo meio rosto no seu alvíssimo avental de linho. Simão estava-se gozando na simpleza daquele quadro rústico, mas sublime de naturalidade.

João da Cruz foi chamado para ferrar um cavalo, e despediu-se nestes termos:

— Tenho dito, rapariga; aqui te entrego o nosso doente: trata-o como quem é e como se fosse teu irmão ou marido.

O rosto de Mariana acerejou-se quando aquela última palavra saiu, natural como todas, da boca de seu pai.

A moça ficou encostada ao batente da alcova de Simão.

— Não foi nada boa esta praga que lhe caiu em casa, Mariana! - disse o acadêmico - Fazerem-na enfermeira dum doente, e privarem-na talvez de ir costurar na sua varanda, e conversar com as pessoas que passam...

— Que se me dá a mim disso? - respondeu ela, sacudindo o avental, e baixando o cós ao lugar da cintura com infantil graça.

— Sente-se, Mariana; seu pai disse-lhe que se sentasse... Vá buscar a sua costura, e dê-me dali um folha de papel e um lápis que está na carteira.

— Mas o pai também me disse que o não deixasse escrever... - replicou ela, sorrindo.

— Pouco, não faz mal. Eu escrevo apenas algumas linhas.

— Veja lá o que faz... - tornou ela, dando-lhe o papel e o lápis - Olhe se alguma carta se perde, e se descobre tudo...

— Tudo o quê, Mariana? Pois sabe alguma coisa.?

— Era preciso que eu fosse tola... Eu não lhe disse já que sabia da sua amizade a uma menina fidalga da cidade?

— Disse. Mas que tem isso?

— Aconteceu o que eu receava. Vossa senhoria está ai ferido, e toda a gente fala nuns homens que apareceram mortos.

— Que tenho eu com os homens que apareceram mortos?

— Para que está a fingir-se de novas?! Pois eu não sei que esses homens eram criados do primo da tal senhora? Parece que vossa senhoria desconfia de mim, e está a querer guardar um segredo que eu tomara que ninguém soubesse, para que meu pai e o senhor Simão não tenha alguns trabalhos maiores...

— Tem razão, Mariana; eu não devia esconder de si o mau encontro que tivemos.

— E Deus queira que seja o último!... Tanto tenho pedido ao Senhor dos Passos que lhe dê remédio a essa paixão!... O pior futuro é o que ainda está por passar...

— Não, menina, isto acaba assim: eu vou para Coimbra logo que esteja bom, e a menina da cidade fica em sua casa.

— Se assim for, já prometi dois arráteis de cera ao Senhor dos Passos; mas não me diz o coração que vossa senhoria faça o que diz...

— Muito agradecido lhe estou pelo bem que me deseja - disse Simão, comovido. - Não sei o que lhe fiz para lhe merecer a sua amizade.

— Basta ver o que o seu paizinho fez pelo meu - disse ela, limpando as lágrimas. - O que seria de mim, se ele me faltasse, e se fosse à forca como toda a gente dizia!... Eu era ainda muito nova quando ele estava na enxovia. Teria treze anos; mas estava resolvida a atirar-me ao poço, se ele fosse condenado à morte. Se o degredassem, então ia com ele; ia morrer onde ele fosse morrer. Não há dia nenhum que eu não peça a Deus que dê a seu pai tantos prazeres como estrelas tem o céu. Fui de propósito à cidade para beijar os pés à sua mãezinha, e vi suas manas, e uma, que era a mais nova, deu-me uma saía de lapím, que eu ainda ali tenho guardada como uma relíquia. Depois, cada vez que ia à feira, dava uma grande volta para ver se acertava de encontrar a senhora D. Ritinha à janela; e muitas vezes vi o senhor Simão. E talvez não saiba que eu estava a beber na fonte quando vossa senhoria, há dois para três anos8 deu muita pancada nos criados, que era mesmo um rebuliço que parecia o fim do mundo. Eu vim contar ao pai. e ele caiu ao chão a dar risadas como um doido... Depois nunca mais o vi senão quando vossa senhoria entrou com o tio de Coimbra; mas já sabia que vinha para esta desgraça. porque tinha tido um sonho, em que via muito sangue, e eu estava a chorar porque via uma pessoa muito minha amiga a cair numa cova muito funda...

— Isso são sonhos, Mariana!...

— São sonhos, são; mas eu nunca sonhei nada que não acontecesse. Quando o meu pai matou o almocreve, tinha eu sonhado que o via a dar um tiro noutro homem; antes de minha mãe morrer, acordei eu a chorar por ela, e mais ainda viveu dois meses... A gente da cidade ri-se dos sonhos, mas Deus sabe o que isto é... Aí vem meu pai... Senhor dos Passos! Não vá ser alguma má nova!...

João da Cruz entrou com uma carta que recebera da pobre do costume. Enquanto Simão leu a carta escrita do convento, Mariana fitou os seus grandes olhos azuis no rosto do acadêmico, e, a cada contração da fronte dele, angustiavase-lhe a ela o coração. Não teve mão da sua ânsia, e perguntou:

— E noticia má?

— Tu és muito atrevida, rapariga! - disse João da Cruz.

— Não é, não - atalhou o estudante. - Não é má noticia, Mariana, Senhor João. deixe-me ter na sua filha uma amiga, que os desgraçados é que sabem avaliar os amigos.

— Isso é verdade; mas eu não me atrevia a perguntar o que a carta diz.

— Nem eu perguntei, meu pai; foi porque me pareceu que o senhor Simão estava aflito quando lia.

— E não se enganou - tornou o doente, voltando-se para o ferrador. - O pai arrastou Teresa ao convento.

— Sempre é patife duma vez! - disse o ferrador, fazendo com os braços instintivamente um movimento de quem aperta às mãos um pescoço.

Neste, lance, um observador pespícaz veria luzir nos olhos de Mariana um clarão de inocente alegria.

Simão sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Mariana espontaneamente lhe chegou, dizendo:

— Enquanto escreve, vou olhar pelo caldinho, que está a ferver.

"E necessário arrancar-te daí - dizia a carta de Simão. - Esse convento há de ter uma evasiva. Procura-a, e dize-me a noite e a hora em que devo esperar-te. Se não puderes fugir, essas portas hão de abrir-se diante da minha cólera. Se daí te mandarem para outro convento mais longe, avisa-me, que eu irei, sozinho ou acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensável que te refaças de ânimo para te não assustarem os arrojos da minha paixão. És minha! Não sei de que me serve a vida, se a não sacrificar a salvar-te. Creio em ti, Teresa, creio. Ser-me-ás fiel na vida e na morte. Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão é uma ignomínia quando o poder paternal é uma afronta. Escreve-me a toda a hora que possas. Eu estou quase bom. Dize-me uma palavra, chama-me, e eu sentirei que a perda do sangue não diminui as forças do coração".

Simão pediu a sua carteira, tirou dinheiro em prata, deu-o ao ferrador, e recomendou-lhe que o entregasse à pobre com a carta.

Depois ficou relendo a de Teresa, e recordando-se da resposta que dera.

Mestre João foi à cozinha, e disse a Mariana:

— Desconfio de uma coisa, rapariga.

— O que é, meu pai?

— O nosso doente está sem dinheiro.

— Porquê? O pai como sabe isso?

— E que ele pediu-me a carteira para tirar dinheiro, e ela pesava tanto como uma bexiga de porco cheia de vento.

Isto bole-me cá por dentro! Queria oferecer-lhe dinheiro e não sei como há de ser...

— Eu pensarei nisso, meu pai - disse Mariana. refletindo.

— Pois sim; cogita lá tu, que tens melhores idéias que eu.

— E, se o pai não quiser bulir nos seus quatrocentos, eu tenho aquele dinheiro dos meus bezerros: são onze moedas de ouro menos um quarto.

— Pois falaremos: pensa tu no modo de ele aceitar sem remorsos.

Remorsos, na linguagem pouco castigada de mestre João, era sinômico de escrúpulos, ou repugnância.

Foi Mariana levar o caldo a Simão, que lho rejeitou como distraído em profundo cismar.

— Pois não toma o caldinho? - disse ela com tristeza.

— Não posso, não tenho vontade, menina; será logo. Deixe-me sozinho algum tempo; vá, vá; não passe o seu tempo ao pé dum doente aborrecido.

— Não me quer aqui? Irei, e voltarei quando vossa senhoria chamar.

Dissera isto Mariana com os olhos a verterem lágrimas.

Simão notou as lágrimas, e pensou um momento na dedicação da moça; mas não lhe disse palavra alguma.

E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe idéias aflitivas que os romancistas raras vezes atribuem aos seus heróis. Nos romances todas as crises se explicam, menos a crise ignóbil da falta de dinheiro. Entendem os novelistas que a matéria é baixa e plebéia. O estilo vai de má vontade para coisas rasas. Balzac fala muito em dinheiro; mas dinheiro a milhões. Não conheço, nos cinqüenta livros que tenho dele, um galã num entre ato da sua tragédia a cismar no modo de arranjar uma quantia com que um usurário lhe lança, desde a casa do juiz de paz a todas as esquinas, donde o assaltam o capital e o juro de oitenta por cento. Dist0 é que os mestres em romances se escapam sempre. Bem sabem eles que o interesse do leitor se gela a passo igual que o herói se encolhe nas proporções destes heroizinhos de botequim, de quem o leitor dinheiroso foge por instinto, e o outro foge também, porque não tem que fazer com ele. A coisa é vilmente prosáica, de todo o meu coração o confesso. Não é bonito deixar a gente vulgarizar-se o seu herói a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois que escreveu à mulher estremecida uma carta como aquela de Simão Botelho. Quem a lesse, diria que o rapaz tinha postadas, em diferentes estações das estradas do país, carroças e folgadas parelhas de mulas para transportarem a Paris, a Veneza, ou ao Japão a bela fugitiva! A estradas, naquele tempo, deviam ser boas para isso, mas não tenho a certeza de que houvesse estradas para o Japão. Agora creio que há, porque me dizem que há tudo.

Pois eu já lhes fiz saber, leitores, pela boca de mestre João, que o filho do corregedor não tinha dinheiro. Agora lhes digo que era em dinheiro que ele cismava, quando Mariana lhe trouxe o caldo rejeitado.

A meu ver, deviam atribulá-lo estes pensamentos:

Como pagaria a hospitalidade de João da Cruz?

Com que agradeceria os desvelos de Mariana?

Se Teresa fugisse, com que recurso proveria à subsistência de ambos?

Ora, Simão Botelho saíra de Coimbra com a sua mesada, que não era grande, e quase lha absorvera o aluguel da cavalgadura, e a gorjeta generosa que dera ao arreeiro, a quem devia o conhecimento do prestante ferrador.

As relíquias desse dinheiro dera-as ele à portadora da carta naquele dia. Má situação!

Lembrou-se de escrever à mãe. Que lhe diria ele? Como explicaria a sua residência naquela casa? Deste modo não iria ele dar indícios da morte misteriosa dos dois criados de Baltasar Coutinho?

Além de que, sobejamente sabia ele que sua mãe o não amava; e, a mandar-lhe algum dinheiro em segredo, seria o escassamente necessário para a jornada até Coimbra. Péssima situação!

Cansado de pensar, favoreceu-o a providência dos infelizes com um sono profundo,

E Mariana entrara pé ante pé na sala, e, ouvindo-lhe a respiração alta, aventurou-se a entrar na alcova. Lançou-lhe um lenço de cassa sobre o rosto, em roda do qual zumbia um enxame de moscas. Viu a carteira sobre uma banqueta que adornava o quarto, pegou nela, e saiu pé ante pé. Abriu a carteira, viu papéis, que não soube ler, e num dos repartimentos duas moedas de seis vintéis. Foi restituir a carteira ao seu lugar, e tomou de um cabide as calças, colete e jaqueta à espanhola, do hóspede. Examinou os bolsos e não encontrou um ceitil.

 

Retirou-se para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve meia hora assim, e meditava angustiada a nobre rapariga. Depois ergueu-se de golpe, conversou longo tempo com o pai. João da Cruz escutou-a, contrariou-a, mas ia de vencida sempre pelas réplicas da filha, até que, a final, disse:

— Farei o que dizes, Mariana. Dá-me cá o teu dinheiro, que não vou agora levantar a pedra da lareira para bulir no caixote dos quatrocentos mil réis. Tanto faz um como outro: teu é ele todo.

Mariana deu-se pressa em ir à arca, donde tirou uma bolsa de linho com dinheiro em prata, e alguns cordões, anéis e arrecadas. Guardou o seu oiro numa boceta, e deu a bolsa ao pai.

João da Cruz aparelhou a égua. e saiu. Mariana foi para a sala do doente.

Acordou Simão.

— Não sabe!? - exclamou ela com semblante entre alegre e assustado, perfeitamente contrafeito.

— Que é, Mariana?

— Sua mãezinha sabe que vossa senhoria aqui está.

— Sabe?! Isso é impossível! Quem lho disse?

— Não sei; o que sei é que ela mandou chamar meu pai.

— Isso espanta-me!... E não me escreveu?

— Não, senhor!... Agora me lembro que talvez ela soubesse que o senhor aqui esteve, e cuide que já não está, e por isso lhe não escreveu... Poderá ser?

— Poderá... Mas quem lho diria!? Se isto se sabe, então podem suspeitar da morte dos homens.

— Pode ser que não; e ainda que desconfiem, não há testemunhas. O pai disse que não tinha medo nenhum. O que for soará. Não esteja a cismar nisso... Vou-lhe buscar o caldinho, sim?

— Vá, se quer, Mariana. O céu deparou-me em si a amizade duma irmã.

Nã0 achou a moça na sua alegre alma palavras em resposta à doçura que o rosto do mancebo exprimia.

Veio com o "caldinho" - diminuitivo que a retórica duma linguagem meiga sanciona; mas contra o qual protestava a larga e funda malga branca, ao lado da travessa com meia galinha loura, de gorda.

— Tanta coisa! - exclamou, sorrindo, Simão.

— Coma o que puder - disse ela corando. - Eu bem sei que os senhores da cidade não comem em malgas tamanhas, mas eu não tinha outra mais pequena; e coma sem nojo, que esta malga nunca serviu, que a fui eu comprar à loja, por pensar que vossa senhoria não quisera ontem comer por se atrigar da outra.

— Não, Mariana, não seja injusta, eu não tinha, nem tenho vontade.

— Mas coma por eu lhe pedir... Perdoe o meu atrevimento... Faça de conta que é uma sua irmã que lhe pede. Ainda agora me disse...

— Que o céu me dava em si a amizade duma irmã...

— Pois aí está...

Simão achou tão necessário à sua conservação o sacrifício, como ao contentamento da carinhosa Mariana. Passou-lhe na mente, sem sombra de vaidade, a conjetura de que era amado daquela doce criatura. Entre si dizia que seria uma crueza mostrar-se conhecedor de tal afeição quando não tinha alma para lha premiar, nem para lhe mentir. Assim mesmo, bem longe de se afligir, lisonjeavam-no os desvelos da gentil moça. Ninguém sente em si o peso do amor que se inspira e não comparte. Nas máximas aflições, nas derradeiras horas do coração e da vida, é grato ainda sentir-se amado quem já não pode achar no amor diversão das penas, nem soldar o último fio que se está partindo. Orgulho ou insaciabilidade do coração humano, seja o que for, no amor que nos dão nós graduamos o que valemos em nossa consciência.

Não desprazia, portanto, o amor de Mariana ao amante apaixonado de Teresa. Isto será culpa no severo tribunal das minhas leitoras; mas, se me deixam ter opinião, a culpa de Simão Botelho está na fraca natureza, que é toda galas no céu, no mar e na terra, e toda incoerências, absurdas e vícios no homem, que se aclamou a si próprio rei da criação, e nesta boa fé dinástíca vai vivendo e morrendo.

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