Czytaj książkę: «Escada E Cristal»
ESCADA E CRISTAL
Alessandra Grosso
Título original: Scala e Cristallo
Tradução de: Adérito Francisco Huo
Este livro é uma obra de ficção. Todos os nomes das pessoas, personagens, lugares e organizações mencionados nesta obra são puramente fictícios. Qualquer semelhança com factos reais ou pessoas vivas ou falecidas, é mera coincidência.
Escada e Cristal
Copyright © 2020 Tektime
1ª edição: Março de 2019
Edição em português: Agosto de 2020
Tradutor: Adérito Francisco Huo
Publicação: Tektime – www.traduzionelibri.it
Todos os direitos reservados. É proibida a publicação e a reprodução desta obra por qualquer meio seja manual ou electronico sem o consentimento escrito da editora, excepto breves passagens extraidas de propósito para a revisão.
INTRODUÇÃO
Bem-vindos. Esta é uma simples colecção de pesadelos, não tem grandes pretensões se não vos deixar entrar nas partes íntimas da minha mente. Creio que todos nós tivemos alguns pesadelos, seja de olhos abertos como de olhos fechados; pois bem, eu sou uma super especialista de pesadelos a olhos fechados.
Os pesadelos a olhos fechados são a minha maldição pessoal: os tenho desde sempre, desde criança e nunca percebi o motivo. A minha infância esteve sempre ligada ao medo que alguma coisa catastrófica estivesse para acontecer, a mim ou a pessoas que amava. Tinha muitas vezes sensações tipo aquele ar frio que te provoca um calafrio atrás do pescoço, aquela mão viscosa e gélida que te toca no ombro e te deixa estremecer, assombrado; muitas vezes via tudo negro e em seguida devia ir dormir. Mal entrava no quartinho ficava com medo daquilo que seria fechando os olhos.
Durante a adolescência as coisas não melhoraram: sonhava e despertava trémula e suada. Depois duma noite assim devia como todos enfrentar a vida, mas estava cheia de dúvidas sobre o futuro, todas as vezes que tinha uma escolha por fazer os pesadelos pioravam. A minha vida tornava-se um inferno, fechava-me em mim e questionava-me sempre em que ponto estivesse, onde estivesse e onde quisesse ir.
Com o tempo aprendi a escrever os meus sonhos para procurar percebê-los, enquanto numa outra folha escrevo os meus desejos para ver se realizavam-se. Esta última ideia ajudou-me mais de uma ocasião a trazer a luz, mas agora voltemos aos pesadelos. Pensei que contar-vos todos os meus pesadelos romanceando-os e ligando-os um atrás do outro para presentear-vos com a colecção de todos os arrepios que congelam e que experimentei.
Desculpem pelo gélido presente, mas a minha mente é um lugar frio e desorganizado. É a mente de uma mulher, de uma combatente que enfrentou o mal a peito descoberto e que decidiu falar. As minhas palavras podem de vez em quando ferir as almas mais susceptíveis, mas não sou nem me sinto de forma alguma melhor que ninguém de vocês. Vocês vêem o mundo através dos vossos filtros e a vossa sensibilidade; eu pelo contrário uso a minha. Procuro usar o terceiro olho para criar uma visão dum futuro mais fértil e profícuo, depois de todas as aventuras que passei na vida. Procuro ver um futuro repleto de sonhos, de estudos e de viagens… lembro-vos que os sonhos são desejos; agora voltemos aos pesadelos. Pois que os pesadelos a olhos fechados são a minha especialidade desde sempre, os motivos deste fenómeno são múltiplos… e talvez o mais importante é isto: tenho paciência mas também sou uma pessoa emotiva e sensível; no decurso da vida tive tantos estilhaços nos pés e os meus períodos obscuros.
Contudo, procurei sempre a luz para ilustrar esta parte da minha vida, e agora hei-de vos pôr a par da minha poesia preferida: A escada de cristal.
A ESCADA DE CRISTAL
Filhote, vou dizer-te uma coisa:
A vida para mim não foi uma longa escada de cristal.
Tive pregos,
E estilhaços,
E pranchas desconexas,
E troços sem tapete:
Nus.
Mas sempre
Continuava a subir,
Alcançando um patamar,
Virava numa esquina,
E algumas vezes entrava no escuro
Onde não havia luz.
Por isso, filho, não voltas para trás.
Não te detenhas nos degraus
Porque é cansativo para ti andar.
Não caias, agora:
Porque eu ainda continuo, amor,
Ainda trepo,
A vida para mim não foi uma escada de cristal.
A MISSÃO (PROLOGO)
A missão da nossa heroína é de preservar a sua vida e de encontrar o seu equilíbrio a sua liberdade e independência depois de ter enfrentado todos os seus monstros, que são tantos.
Tantos são os obstáculos internos e externos que tive que enfrentar, que se materializaram e se desmaterializaram nos meus pesadelos, mas sempre procurei a luz, como podem ver na poesia A escada de cristal.
A escada de cristal representa o período de confusão que estou a atravessando e a vontade de realizar-me.
No livro será notável antes uma heroína muito tímida que foge continuamente perante aos próprios monstros; depois começa a combater, se bem que, às vezes, quando a situação é mais perigosa, fuja. No fim dum complicado processo interior, será notável uma prevalência de luta relativamente à fuga.
Nestas passagens falo de uma evolução pessoal de fuga ao ataque, mas tudo isto acontece para preservar-me ou para salvaguardar aquilo que julgo justo.
No livro serei ajudada por alguns e obstruída por outros, mas agora vos deixo ler.
Boa leitura.
1ª PARTE
Sonhadores…
«Só quem sonha pode afastar as montanhas…» citação do filme Fitzcarraldo
1º CAPITULO
«Aponte sempre a lua, mal que vá, terás deambulado entre as estrelas» (Les Brown)
A FUGA
«A vida é uma longa lição de humildade» (James Matthew Barrie)
Estava a correr nas escadas para buscar a chave que nos teria finalmente libertado. Sabia instintivamente que eram cinquenta e cinco degraus para subir e outros cinquenta e cinco para descer. Atrás de mim fechavam-se as portas, os portões e grades antiquíssimos; tudo era escuro e desespero.
Medo e ansiedade os sentimentos, respiração curta e ofegante, paredes que desde o amarelo até ao branco creme transformam-se cada vez mais matizados… estava entrando no inferno mas não podia abrandar. Na minha corrida a chave de saída daquele lugar era tudo: era a salvação!
Chegado ao último degrau saltei lá para a sala onde estava a chave. Ela era o símbolo de libertação, era o nosso Livramento das trevas… mas sabia que o monstro com as garras o teria defendido: não teria sido simples.
Enfrentar o monstro requeria força. Tinha sido um homem na vida precedente, um homem forte, pedófilo e de poder.
Podia apenas saltar para direita e atacar com a única cadeira de madeira que tinha encontrado, uma cadeira contra um monstro que tinha sido um mito em vida… uma vida feita de excessos, bebidas até a madrugada, cocaína, mulheres, milhões de mulheres, pedofilia, até que não foi tremendamente queimado vivo.
Tinha sido sempre sensível em vida e tinha percebido, notado às fraquezas do monstro, e de repente ataque: com uma finta de lado lhe despedacei a cadeira na cabeça. A cadeira partiu-se e na mão fiquei com dois cotos. Agitada, espetei-os com raiva no tórax e no pescoço do monstro.
Já a tremenda figura queimada estava no chão. Podia apenas tentar de lhe atear fogo. O teria afrouxado: tinha a fobia… o horrível monstro tinha a fobia do fogo que teria varrido a inveja que tinha nutrido durante a sua vida, uma inveja feroz no que diz respeito à beleza e à inocência – efectivamente tinha sido psicopático e manipulativo.
Eu estava quase certa desta sua fobia, mas devia mesmo defender-me e torná-lo inofensivo.
Durante a vida tinha percebido que a inveja e o ciúme eram mal vistas, desta forma as mascarava atrás duma carapaça feita de charme e intelectualismo, mas obscuros e áspero eram os seus pensamentos; diz-se de facto «o mal maior é a fome». Para mim a inveja é pior, e na história originou guerra, brigas, conflitos e infinitas lutas.
Achei o meu isqueiro dos bons tempos, o tinha dado o nome de «isqueiro dos meus dezasseis anos», quando fumarolava às escondidas. Movi-me rapidamente e lancei o isqueiro, depois vi a chave, peguei-a e corri em direcção às escadas.
Cinquenta e cinco degraus.
Era jovem, e os percorri voando.
Sentia dores no joelho mas persistia. Pensava que cada degrau fosse a vida, contava-os e os contava outra vez.
Chegado em cima, virei enfim atrás do corrimão que protegia as escadas e rapidamente entreguei a chave aos colegas encontrados ali que procuravam a luz, mas também a quem queria ir na direcção oposta e aventurar-se para os abismos.
A chave girou, mas pelo meio senti que o monstro estava a recompor-se e estava aproximando: queria percorrer outra vez as escadas.
Não queríamos sair dali e fugir em direcção à luz… luz que procurava desde sempre, mas no entanto tinha sempre em frente as emaranhadas grades do portão pintadas de branco que me lembravam a pureza e uma vez ainda a luz.
As grades eram robustas e cerradas e o monstro teria ficado longe delas porque a luz me protegia… mas o que podia ser por acaso este elemento protector? A luz? O que é por acaso a luz? Deus? Luz como Lúcifer? Eh, são perguntas, são perguntas… mas a resposta?
Continuava a procurá-la, e depois de ter escapado do monstro da cave aventurei-me para uma igreja obscura.
O monstro tinha rogado pragas, furioso, com a sua voz gutural e assustadora; tinha praguejado, mas as grades estavam fechadas, todos tinham fugido e a chave estava agora disponível para quem quisesse morrer ou ir matá-lo definitivamente.
Eu mais que isto não podia fazer.
Não percebia o que houvesse de estranho na velha igreja obscura, mas improvisamente encontrei-me sozinha e na escuridão, naquela igreja poerenta e com as paredes em mau estado e pobres.
Aventurei-me ao longo da cela que acredito que fosse a nave da direita e vi um estranho genuflexório com uma estátua.
Estranha estatua, pensei. O que terá por ventura…
Estava repleta de sangue.
Um arrepio e depois uma voz.
«Não existe uma única Morte!».
A morte será na verdade o fim de tudo ou iremos ao passado? Ou ao futuro? Ou esmoreceremos lentamente numa nuvem de fumo? Um passado recente ou longínquo ou uma dimensão paralela?
Questionava-me isso enquanto encontrava-me de novo fora da igreja misteriosa a deambular no meio dos fetos. Fetos gigantes, majestosos, com folhas lúcidas que tinham cheiro de selvagem e lembravam-me a minha infância perto do lago na velha casa do campo. Aquela casa do campo estava próxima, mas eu estava curiosa e queria ultrapassar a fileira dos fetos, numa atitude de pesquisa e exploração típica da primeira puberdade. A minha juventude efectivamente dizia: «explora», a minha consciência «pensa», o meu coração «tenta». Prosseguia seguindo a minha natureza aventurosa… e mesmo naquele momento estava a fazê-lo, como típico do meu carácter.
Detectei uma cena do passado, uma luta cruel entre tiranossauros (repteis), e fugi. Antes da fuga, posso testemunhar de ter visto os dentes aguçados dos dois animais e a atitude deles que de desafio transformava-se num ataque verdadeiro. Com os seus corpos mastodônticos e musculosos lutavam. Destruindo tudo o que atropelavam. Tinham derrubado árvores e destruídos os meus amados fetos, numa luta típica do período reprodutivo.
Correndo, caí sobre as pedras que caiam aos trambolhões umas sobre as outras.
O ruído atraiu o sensibilíssimo brutamontes, que voltaram e começaram a caça.
Sentiam todo cheiro e percebiam o medo, como muitas feras selvagens.
Fugi desesperada, a respiração que se tornava pesada. O baço activo, cansado, mas não podia ceder e parar: devia haver uma saída. E algumas vezes ela é mais assustadora que se prolongava num cubículo rachado e escuro inserido numa cavidade.
Tenho que enfrentar a claustrofobia.
Com o ultimo golpe dos rins enfiei-me ali. Fora, as gigantescas feras rugiam rancorosas de raiva, pois que não viam mais a sua presa.
Rastejei por um instante, o ar mofento, fedorento e detestável para respirar. Temia arranhas e ratos… tinha sempre odiado as arranhas e os ratos. Especialmente estes últimos me amedrontavam: desde criança tinha ido na capoeira e tinha visto um enorme rato atento para roubar os ovos a uma galinha.
Mas era criança, agora pelo contrário era uma mulher e era tempo de lutar pela vida.
Lutar para sobreviver ou fugir se o demónio era mais enorme: este era o mecanismo como base de sobrevivência humana. Sempre tinha sido, e eu continuava a usá-lo, para mim, para a sobrevivência da espécie humana, para toda a humanidade.
A humanidade não tinha sido assim no centro dos meus pensamentos.
Antes de todas estas aventuras tinha sido uma desajeitada; um individuo difícil, fechado, sempre vestido de preto e frequentemente deprimida, precisamente com pensamentos suicidas. Todavia agora era tempo de lutar e sair do túnel.
Rastejava, arranhava-me e tentava de avançar.
Quando saí para fora era noite, uma noite assustadora quase sem lua, com um céu negro e espaçadamente tornou-se dominante e agressivo a partir das nuvens. As nuvens tinham a força de um leopardo pelas cores que se aventuravam sobre os músculos do animal com inquietantes tonalidades encarnadas.
E vi tudo. Vi um tiranossauros que vagueava diante de mim, enquanto eu observava escondida naquela espécie de balcão natural.
Desci dali apenas durante o dia e me senti mais forte, pronta para ver outros monstros e explorar para perceber a verdadeira natureza das coisas: a mente estava aberta para cada eventualidade, para ver outras criaturas estranhas e para captar outros sonhos estranhos.
Os sonhos tinham sido tudo para mim, o alívio de todos os meus desejos; eram a percepção das coisas precisamente antes que acontecessem, a percepção do não ao meu pedido de ajuda para com um amigo querido que não me tinha percebido como ser humano.
Tinha sonhado esta negação de ajuda, mas com a minha natureza teimosia e corajosa tinha ido contra aquilo que tinha percebido, e tinha continuado. Tinha batido a porta porque não tinha escutado a minha natural e sensível voz interior. Sentia-a desde a tenra infância, mas tinha tomado a consciência há pouco, só a partir de agora que fugia dos monstros ou os combatia.
Comecei a caminhar por um vale que se escalava, folhas de carvalho vermelho por toda a parte. Era Outono, as folhas separavam-se das árvores, cheiro de chuva acabada de cair, de musgo selvagem.
Perto de mim um ambiente abafado, onde finalmente podia acender um fogo para aquecer-me. Felizmente na sacola tinha ainda a minha reserva de carne posta a secar; preparei o fogo e pus-me comodamente a acampar. Depois deitei-me para julgar a noite.
A noite foi longa e sonhei viajando pelos mares nos deselegantes barcos.
Ao despertar, a geada e depois gotas de orvalho. Devia ser no meio de Setembro e as folhas tinham criado uma camada de vários centímetros onde as minhas botas altas enterravam-se.
Eram botas femininas, confortáveis, e tinham a elegância das antigas botas para Cowboy. O próprio pensamento atenuava as reflexões na solidão, a pontada fria e profunda da nostalgia e os pensamentos íntimos e tristes. Era certamente esta intimidade que sentia no profundo daquela estranha floresta de carvalho vermelho, onde as folhas caiam e eram vermelho de sangue.
Todavia me sentia seguida, espiada.
Esta sensação de ser espiada, a percepção que algo de obscuro estivesse apinhando-se e estivesse projectando-se nas minhas costas, a tivera anos depois da adolescência, quando alguém tinha ocultado as minhas estranhas mensagens no correio, mensagens que pareciam de amor, porém não eram claras e por isso mais perturbadoras ainda.
Não obstante aqueles obscuros pressentimentos, avançava no bosque e muitas vezes virava para trás para controlar porque não me sentia tranquila; notava a neblina, o orvalho e não percebia o que era.
Depois, de repente, a incerteza e o receio materializaram-se e foi verdadeiro medo, terror como aquele que só as crianças podem sentir.
Senti-me pequena e fugi daquele homem com as botas altas pretas que me seguiam, questionando-me como um doido:
«Por quê?»
Mas como por quê?
Porque pelo contrário és tu a fazer-me esta pergunta? Disse para mim.
Enquanto corria para não cair em pânico, pensava de como organizar-me para sobreviver: era o instinto de sobrevivência, era uma espécie de frieza natural e orgulho.
Podia matar-me mas não teria entrado por acaso na minha cabeça.
A minha cabeça concentrava-se no momento em que o meu corpo fugia.
Corria sobre as raízes esperando que o homem feroz que me seguia caísse. Não o reparava por acaso nos olhos, aqueles olhos que te controlavam furtivamente, olhos de crocodilo que apontam a presa por baixo do nível mais alto da água.
Por intuição tinha percebido que o meu seguidor era diabético. Tinha-o notado graças a uma das minhas estranhas intuições e graças a algumas vozes provenientes de outras dimensões muito distantes. Ainda mais sabia que era diabético porque tinha os pés atormentados por chagas; em breve deviam ser cortados.
A minha esperança vinha da minha alma tenaz e esperava que se esgotasse, esperava que a estranha doença da qual provavelmente sofria o atingisse de repente na corrida, que lhe paralisasse o metabolismo dos açúcares, ou que tivesse uma crise e acocorar-se no chão.
Corria e no entanto os ramos faziam-se mais baixos e emaranhados. Abaixei-me esperando que ele tivesse mais dificuldade, sendo mais alto do que eu; puxava os ramos para comigo desejando que lhe atingissem na cara.
Odiava profundamente aquilo que me estava a fazer. O meu ódio era provocado, especialmente, pelo medo que sentia.
Era em parte orgulho, admito: quem estava para forçar-me à fuga, para afligir os meus membros na mordaça atormentadora do medo?
Entretanto continuava a correr e ele, com o seu físico robusto, parecia tolerar que aquela corrida de velocidade estivesse transformada numa corrida de resistência.
O meu suor caia no chão juntamente com enormes lágrimas, e sentia que a esperança estava a abandonar-me… mas eis que vi algo novo: o meu avô, diante de mim.
Vendo-me preocupada, o avô teria me projectado numa outra situação, numa dimensão muito mais íntima e menos perigosa, e me teria tranquilizado, estava certa.
A minha certeza bem cedo teria tido tempo para materializar-se ou destruir-se.
2º CAPITULO
«O futuro pertence a quem crê na beleza dos próprios sonhos» (Eleonor Roosevelt)
A CONSOLAÇÃO E PROBLEMAS ALTERNATIVOS
Era próprio o meu querido avô, tenro na velhice, terrível na juventude. Tinha sido sempre um indivíduo difícil, implicativo, pungente, e por alguns gestos era o típico macho italiano.
Desde jovem tinha sido moreno de cabelos, olhos escuros como dos espanhóis, pele olivácea queimada pelo sol, ombros largos como de um camponês. Não era alto, mais ou menos como eu, mas muito mais robusto. Apenas as mãos as tínhamos iguais, mãos compridas e afuseladas, mãos que os inglese definem como de forneiro, de padeiro, e efectivamente tinha sido propriamente esta a sua profissão durante a sua vida. Levantava-se antes do canto do galo para trabalhar duramente, e não tinha necessidade do rádio: tinha efectivamente uma voz viva e completa como de barítono, uma voz que te acompanha a te tranquiliza ao longo do caminho, e ao longo do meu caminho nos meus sonhos o tinha reencontrado.
O nosso encontro tinha sido tranquilizador. Tinha colocado a sua mão calejada e comprida nos meus ombros e tinha sussurrado para não me preocupar, que tudo se teria ajustado e que me entendia, consolava-me e sabia como tivesse sido difícil o meu percurso. Verdade, ao longo do meu trajecto emotivo havia moitas e picos, e os meus pés estavam repletos de vesículas. Moralmente estava muito abatida.
Ele sabia o que estava a pensar. Tinha sido chefe partidário, tinha lutado contra a opressão de Mussolini. Amava a liberdade e propriamente este nome lhe tinha sido dado: chamava-se livre. Era livre, era aeriforme; era um espírito enfim, depois que em 1996 um enfarte tinha-o levado, subitamente e velozmente.
Tão rápido que não tivera a coragem de vê-lo na capela mortuária. Todavia agora estava diante de mim, como o recordava: ainda oliváceo, sempre activo, e com a preocupação de ver a neta tornar-se rapidamente uma jovem mulher.
Certo, uma mulher, dentro de mim teria me tornado uma mulher. Sentia-me inocente e ingénua, mas sabia que muitas coisas deveriam ainda acontecer comigo, que a vida era longa e cheia de perseguições, de chatices, chicote. O chicote é dado pela autoflagelação e esta última tem um nome: para mim, chama-se sentimento de culpa.
Os sentimentos de culpa tinham me provocado sempre os pesadelos, e, efectivamente, ter sido sempre, durante a minha vida, muito compreensiva com as crianças, levara-me ao sucessivo pesadelo com olhos abertos.
As pupilas viam materializar-se uma criança que me seguia, mas não era uma criança sorridente: tinha unhas e dentes, garras que podiam morder e rasgar. A pequena criatura podia dilacerar-me. Chorava mas o seu choro era quase um horrível latido, e eu ficava aterrorizada, transpirava e tremia. Tinha sido sempre emotiva, efectivamente representava-me bem a descrição do feeler, neste caso apavorada.
Os feeler são emotivos e empáticos. Amam a vida tranquila, os sorrisos e as crianças; afectos dos sentimentos de culpa, evitam todo contacto com os outros dentro de si.
Eu não podia fechar-me dentro de mim mesma porque a criança enfurecida seguia-me e chorava, gritava como o uivar do vento.
Tinha medo de enfrentar o bicho e a minha inocência que não tinha preservado. Não tinha salvado o que deveria salvar e a minha consciência me molestava e me seguia, e eu não podia fazer nada se não fugir, uma outra vez.
Não teria tido o coração de dar murros a uma criança, assim corria, mas encontrava-me a correr com as botas altas com biqueiras desconfortáveis. Estas provocaram-me uma dor surda a cada passo, dilaceravam-me atormentando a minha pele e abriam-me velozmente as chagas. Eram uma tortura sem fim.
Depois caí de cotovelos e comecei avançando com ainda mais fadiga no pavimento de madeira castanho-escuro, escorregadio e hostil, gélido como os olhos da criança que me seguia. Sabia que os merecia, aqueles olhos, não tinha defendido suficientemente as crianças na vida, não os tinha amado o suficiente e através deste infinito monstro eles voltavam visitando-me. Uma visita amarga mas construtiva: devia pagar o preço dos meus erros e estava pronta para reconhecê-los.
Depois daquela perseguição houve uma outra perturbante visão: uma criança que ressaltava contra as paredes e eu não conseguia evitar que se fizesse mal. Era repugnante, coberta de ódio, e mudava de direcção. Era imprevisível.
Representava exactamente a confusão que tinha dentro.
Não sabia se pudesse proteger a ela ou salvar-me do monstro que estava ainda a seguir-me, a criança que uivava questionando-me o porquê, tentando agarrar-me e me chamando MAMÃ.
Assustadora palavra para mim que, se bem que amo as crianças, não considerei seriamente por acaso a possibilidade de ser mãe e de construir uma família. Vi-a sempre como uma coisa distante no futuro, distante de mim, limitadora para a minha possibilidade e mesmo, ódio tê-lo de admitir, destrutiva para o corpo feminino tão delicado. Tenros são as crianças que necessitam de cuidados, e cada vez mais que via as filhas das minhas amigas mover os primeiros passos circundava-me pensativa, temendo que a peste de cada vez quebrasse ou se fizesse mal; depois existem crianças e crianças. Existem crianças que não nascem normais.
Quer dizer, todos temos a nossa individualidade, mas existem crianças que maltratam os animais e este é um primeiro sinal preocupante. Muitos seriais killer desde criança maltratavam os animais, e era certamente o caso da criança que me perseguia naquele lugar imundo, aquela barraca lenhosa cheia de cubículos.
Percebia pela sua violência, pelo modo com o qual quebrava as coisas, que não tinha recebido amor, mas sentia mesmo que a semente do mal estava enraizado nela: tinha sido abusado e agora se divertia abusando. Era o mal que se expandia como uma doença que não deixava salvação, que te perseguia e que acabaria por destruir-te lentamente somente tocando-te. Era atormentador e sempre presente. Não podia continuar a fugir, tinha que reagir, todavia não sentia ainda as pernas suficientemente fortes, embora que, antes ou depois, uma decisão tinha que ser tomada.
A decisão era vital, não podia deixar que a criança me destruísse, mas tinha mesmo de fazer parar a criança que continuava a resvalar-me e a ressaltar contra nas paredes.
Tinha que esboçar um plano, uma estratégia para tornar inofensivo o monstro e salvá-la.
Entretanto me causavam mesmo dor nos ombros; era uma minha típica reacção ao stress.
A tensão nervosa, por exemplo, antes dos exames na universidade, levava-me a contrair os músculos dos ombros com resultados péssimos para as omoplatas e para os membros cervicais.
Todavia tinha que fazer algo, devia horrivelmente fazer alguma coisa.
Afastei-me, de forma que a criança não esbarrasse contra a parede mas contra a minha pessoa; esperava que algum tempo depois com a inércia teria cessado. As cordas rasgadas que a agitavam estavam desarticuladas, em parte arranhadas e não íntegras; todavia eram resistentes. Tentei cortá-las com um canivete apanhado na minha sacola, mas ela tendia escapar-me da mão e era muito viscoso por causa do óleo espesso e impenetrável. Uma substancia oleosa semelhante ao betume.
Estava escuro e aquele negócio causava-me fadiga. Sentia-me observada pela criança que estava a perseguir-me, sentia os calafrios nas costas e temia a morte em cada momento, em cada minha única respiração… a criança era a minha consciência e não me dava paz.
A consciência é aquela coisa que te mantém acordado de noite e te faz observar durante muito tempo um tecto sempre igual.
Faz-te percorrer o passado e o futuro num instante, vês toda a vida num instante e depois deves decidir, tens de decidir segundo a consciência.
E decidido: teria tentado de salvar a criança. Eu podia morrer, podia ser despedaçada mas devia superar o teste; devia mudar e ser mais forte.
A força aprende-se mesmo criando o caminho e eu queria que fosse assim para a minha vida, não queria mais fugir se não quando tivesse sido extremamente necessário, algo em mim estava a mudar e no fim, talvez, era justo assim. Era um desejo de paz e justiça que paradoxalmente forçava-me a lutar, um misto de bondade e dignidade que está enraizado nos bons guerreiros das histórias que me narravam desde criança.
Era a não-aceitação do mal, nunca e sem nenhum compromisso, porque de compromissos por demasiada bondade tinha possuído bastantes e tinha recorrido à fuga, à humilhação e a um depressivo sentimento de baixa auto-estima. A depressão não a queria mais, queria combatê-la. Queria salvar a criança que baloiçava, porque naquele pêndulo de incertezas via eu mesma, a balançar entre uma decisão e outra, confusa e insegura.
Devia agir instintivamente quando a criança teria chegado no meio percurso. Teria tentado com o canivete com o qual cortava a carne seca ou então ramos das plantas de baga onde andava muito ávida. Era uma pequena navalha e estava suficientemente em mau estado… portanto tinha que agir apressadamente e ser precisa, porque tinha um outro monstro não distante de mim.
Atirei-me de cabeça baixa, pensando que podia ser minha filha e que tinha o dever moral de salvá-la, ou pelo menos de tentar. A faca cortou rapidamente a primeira parte da corda pois que macilenta, mas depois parou.
Mais tentava e menos conseguia cortar.
Sentia que estivesse a rir nas minhas costas e sentia um gelo dentro de mim, um calafrio que me percorria a coluna deixando-me tremer os braços. Os meus ombros tremiam mas não a minha vontade, e percebi que a obscura criança era a criança que me perseguia e que naquele momento apresentava-se diante de mim, os olhos verdes e terríveis.
Tinha escondido na corda uns pequenos alfinetes.
Estando furioso comecei a tirá-los, procurando de equilibrar a rotação com o meu peso. Estava desesperada, mas tentei e tentei de novo, furando-me as mãos e praguejando pelas picadas.
E a corda cedeu. A criança caiu no chão mas pelo menos podia dizer que o seu eterno baloiçar tinha cessado.
Acabado de ver aqueles horríveis olhos verdes ficara confusa, mas ganhei força e comecei a gritar contra o monstro, não tinha outra coisa que a minha voz. Lhe disse, mostrando a criança que jazia no chão: «eis o que fizeste, não me resta mais nada, NADA! Tiraste tudo de mim porque sei que esta criança teria sido ligada a mim num futuro. Agora acaba comigo se te convém… faz aquilo que queres, o que queres ainda, o meu sangue?»
Desafiava-o como uma doida, mas ele tinha mudado. Apertou-me a mão e me disse que tinha feito a coisa certa, que tinha superado o teste e que estava tornando-me mais forte.
A força a tinha temperado dentro de mim forjando-a com a paciência, como os ferreiros quando batem o ferro e o moldam até obter uma espada afiadíssima e objectos de raro valor. Mas também quem forja, espreme e dedica-se pode falhar, e é talvez esta a origem de toda a insegurança que nos obrigam a fugir ou a atacar; a render-se ou a vencer.
Desta vez vencido, mas a viagem devia continuar e outros desafios se teriam apresentado diante de mim. Dum lado não via a hora de bater-se com eles, mas do outro sentia outra vez o calafrio gélido do medo para com o desconhecido. Apesar disto prossegui com as minhas botas altas consumidas para outros desafios e outros territórios.
Os territórios atormentados típicos duma tundra nórdica pareciam estar nas costas, com o seu denso cheiro de bétula e os altos pinheiro-alvar acossados pela neve do inverno. As sempre-verdes, que antes estavam todos ao meu redor, dispersaram-se para dar espaço a um misterioso labirinto. Encontrei-me de repente próximo das emaranhadas ruínas que carregavam muitos anos tanto que eram as camadas de líquenes que as cobriam. Estavam em más condições mas desenhavam ainda os seus contornos. Se queria embrulhar-me no labirinto, devia seguir a direcção daquelas ruínas; pacientemente, com afinco e com espírito de sacrifício, devia curvar a minha vontade àquela do destino. O destino não devia ter sido muito generoso até agora visto a sequência dos desafios que tinham endurecido o meu espírito e a minha pele, fortalecendo o meu físico mas cansando-me terrivelmente.